Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
O dia havia começado em busca de um tesouro perdido de Ulugh Bek, neto de Tamerlão.
Meu destino matutino era uma cidade perto de Bukhara, a cerca de 40 km dela, certamente não tão próxima quanto o local onde encontrei o Char Bakr. Para chegar, era necessário enfrentar estrada, novamente a estrada que eu tinha usado para vir de Navoi. A cidade se chamava Gidjuvon. De novo, absolutamente nenhuma palavra no meu guia sobre ela. A única coisa que eu sabia sobre Gidjuvon, a partir de pesquisas na internet, era que lá ficava a terceira madrassa construída por Ulugh Bek. Duas, quase todos os turistas que vêm ao Uzbequistão conhecem. A mais conhecida é uma das três do complexo do Registan, em Samarkand. A segunda, fica em Bukhara, entre a antiga fortaleza do emir e a Labi-Haus. Sobre esta terceira em Gidjuvon, eu nada havia lido a respeito, o que me estranhava bastante — como um importante resquício arquitetônico do período timurida pode não ser um local de visitação obrigatória para todos os turistas? Estaria o local destruído? Seria Gidjuvon um local perigoso, fora de alcance para estrangeiros?
Empolgante explorar. Mas a empolgação, no início, deu lugar à irritação. Por culpa minha.
As lotações para Gidjuvon saiam de um mercado chamado Karvon, um lugar imenso na periferia da cidade e de onde saiam quase todos os transportes rodoviários para outras cidades. Ir a pé do centro velho de Bukhara era impraticável e não quis pegar um táxi porque havia muitos ônibus circulando por perto, passando pelo centro histórico, com destino ao mercado. Peguei um deles num ponto ao lado da Labi-Haus. Na placa na frente do ônibus estava escrito "mercado Karvon". Sentei e relaxei. Nem me ocorreu checar se era realmente para lá que o coletivo se dirigia. É o tipo de coisa que é bem importante fazer na Ásia Central.
De fato, o ônibus ia para o Karvon. Mas na volta. Quando subi, ele se dirigia ao outro ponto final da linha. A placa no ônibus indicava o nome do mercado, mas esse era o nome da linha, que não mudava dependendo do destino. Como eu não sabia o caminho que o ônibus faria até o mercado, e como, além disso, eu não tinha pressa e estava com preguiça de ficar perguntando aos outros passageiros ou mesmo ao motorista, sentei-me num banco ao fundo e me deixei levar, olhando a janela, vendo o tempo passar. Meia hora, quarenta minutos, o ônibus foi se esgueirando por ruas labirínticas em uma zona rural. Ruas de terra, pequenas chácaras, casinhas humildes. Finalmente, o ônibus parou, chegando no destino final, e o motorista veio me perguntar por que eu não descia. Expliquei, ele riu e disse para eu esperar. Mais meia hora, o ônibus partiu de novo, mais quarenta minutos, finalmente eu estava no mercado. O motorista também me disse que, em linha reta, do centro de Bukhara, teria sido uma jornada de dez minutos.
No mercado, realmente grande, mais complicação. Nenhuma indicação sobre onde paravam as lotações para Gidjuvon (de novo, como no caso do mistério sobre o ponto de parada das lotações para o Char Bakr, tudo parecia ser feito de propósito para os turistas não usarem o meio mais barato para chegar aos locais de interesse). Após muito perguntar, encontrei a parada do outro lado da rua e nem sombra de turistas por perto. Ao subir na van, tive a já familiar sensação de ser visto como um alienígena pelos outros passageiros.
A jornada foi rápida, a toda velocidade. Fui desembarcado em outro mercado sem nada de mais, e o motorista, desconcertado com meu interesse pela madrassa de Ulugh Bek, apenas indicou por onde eu deveria ir caminhando, descendo uma avenida, num trajeto de uns cinco-dez minutos. Algumas lojas na avenida, fechadas para clientes, estavam sendo lavadas. As pessoas fazendo a faxina paravam para me observar passar, falando algo em uzbeque, imagino que se perguntando que diabos eu poderia estar fazendo ali.
Mais para a frente, no meu caminho, mas ainda a uns 100 metros de mim, na mesma calçada, vejo um grupo de uns três homens conversando em frente de uma loja. Um deles estava bem bêbado. Olhos vermelhos, pele suada, roupa suja. O sujeito me viu e imediatamente começou a gritar algo em russo em minha direção, mas sem sair do lugar. Bem hostil. "O que você está fazendo? O que você está fazendo aqui? Fora, fora daqui, aqui não é lugar para você."
Olhando fixamente para o chão, segui em frente, ignorando o bebum, rezando em silêncio para que ele não me perseguisse e a madrassa chegasse. Calculei que aquela era apenas uma oportunidade para o sujeito alcoolizado exibir sua masculinidade aos outros colegas.
Os gritos eram altos. Passei ao lado de onde estavam. Senti o sujeito dar uns dois passos em minha direção. Parecia um cachorro latindo.
Não olhei para ele.
Ele continuou berrando. A voz foi ficando mais distante. Desapareceu quando, de repente, à minha esquerda, do outro lado da rua, surgiu um parque e, no fundo dele, não muito distante... uma cúpula azul.
A madrassa estava lá. Claramente, uma madrassa antiga, com a aparência, sim, semelhante às das madrassas de Ulugh Bek em Bukhara e Samarkand. Mas a cúpula azul não era da madrassa. O domo ficava sobre um telhado erguido imediatamente à frente do prédio, no alto de dez colunas de madeira esculpida, cobrindo um mausoléu marcado por uma tumba de mármore e inscrições em árabe estilizado. O conjunto estava sendo reformado, por isso estava cercado por tapumes de plástico branco, tonando impossível se aproximar para ver melhor a tumba. Havia muita gente por perto; um bom número delas estava parado em frente ao mausoléu, isolada pela barreira branca, rezando. Umas poucas pareciam entrar na madrassa, mas ela não era, claramente, a principal atração. Eu não tinha a menor ideia do que estava vendo do lado de fora do prédio. Felizmente, ainda no parque, havia uma placa em inglês e russo, colocada pelas autoridades para explicar as obras. Abdulkhalid Gidjuvoni (1103-1179?) era o ocupante do mausoléu.
O oásis de Bukhara, que inclui várias cidades, é conhecido por sua longa associação com as irmandades sufis, como ficou claro já na visita ao Char Bakr. A mais conhecida das irmandades surgidas por aqui é a influente Naqshbandi, cujo centro é um outro mausoléu, o de seu fundador Bahauddin — também não muito longe da Labi-Haus, mas longe o suficiente para estimular a preguiça dos turistas. Gidjuvoni foi o fundador de outra irmandade sufi, chamada Khojagan, que antecedeu e influenciou a Naqshbandi. Nascido na era de domínio dos turcos seljúcidas, que controlaram boa parte da Ásia Central a partir de sua capital em Merv por volta do século X, Gidjuvoni seguiu o caminho de outros sábios islâmicos da época. Viajou pelos territórios do império, chegou a viver na Síria, e, durante suas andanças, conquistou um grande número de seguidores para sua ordem sufi. Tamanha era sua fama que, após sua morte, seu local de enterro, na sua cidade natal, passou a ser um ponto de peregrinação. E os timuridas eram conhecidos patronos de santos sufis desde os tempos do próprio Tamerlão, que iniciara a construção do gigantesco mausoléu para Khoja Ahmed Yassawi na cidade cazaque de Turkistan, visitada por mim em 2012. No caso de Ulugh Bek, seu interesse pelas ciências o tornou um alvo fácil dos radicais religiosos da sua própria corte, que conspiravam contra ele. A construção da madrassa em Gidjuvon, em frente ao mausoléu, se deu entre 1432 e 1433. Com ela, como no caso das outras que construiu, o neto de Tamerlão esperava apaziguar a febre radical dos que achavam que ele não se interessava por religião.
Outro que procurou explorar a popularidade de Abdulkhalid Gidjuvoni, muito mais tempo depois da morte do líder sufi, foi Islam Karimov. O agora "santo" primeiro presidente do Uzbequistão visitou Gidjuvon em 2002, ano em que a cidade comemorou seus supostos 900 anos de existência. Para marcar a visita, a grande reforma de todo o complexo foi ordenada. A cobertura com colunas de madeira e a cúpula azul foram contruídos e elementos que haviam sido enterrados durante os anos soviéticos, como uma pequena piscina ao lado do mausoléu, foram recuperados.
A madrassa, simplesmente chamada de Madrassa Ulugh Bek, é pequena se comparada às erguidas pelo neto de Tamerlão em Bukhara e Samarkand, mas igualmente com o principal detalhe característico das outras: os mosaicos simples, feitos com azulejos em dois tons de azul. O pórtico é delicadamente trabalhado, mostrando o que aparenta ser ramos de plantas se entrelaçando, fazendo nós elegantes, desabrochando flores como mandalas.
Teorizei o motivo da raiva da qual fui alvo no caminho para cá. Para os mais puritanos, é uma alegria que este local seja pouco conhecido e assim pouco visitado pelos turistas estrangeiros e não muçulmanos. Afinal, diferentemente das outras madrassas de Ulugh Bek, a de Gidjuvon permanece recebendo serviços religiosos correntemente, grupos de oração, como uma mesquita. O local aliás faz parte de um roteiro religioso conhecido muito além das fronteiras uzbeques, um pequeno hajj que atrai peregrinos de longe, o chamado "Circuito dos Sete Pirs (ou santos sufis)". São sete locais na região de Bukhara onde estão os memoriais de importantes sábios sufis, fundadores de ordens. O mais importante dele é Bahauddin Naqshbandi. Em cada um desses locais, o memorial ou mausoléu é circundado por madrassas, khanakas e cemitérios, sempre com lindas arquiteturas, afirmando o poder econômico dessas ordens.
Na madrassa Ulugh Bek, logo na entrada, os fiéis são conduzidos a uma sala onde um mulá conduz orações periodicamente à medida que chegam mais e mais visitantes em busca de uma bênção de Abdulkhalid Gidjuvoni. Novamente, notei terem estranhado minha presença, mas, para minha felicidade, em nenhum momento me senti intimidado como ocorreu na rua, com o bêbado e seus gritos. Pelo contrário. Eu estava tirando fotos do mausoléu e da madrassa, a uma boa distância, procurando não incomodar nenhuma das pessoas que estava rezando em frente ao mausoléu. Naquele momento, percebi um grupo de quatro senhoras caminhando mais ou menos na minha direção. Todas com seus véus coloridos e vestidos, como reza a tradição centro-asiática. Continuei tirando minhas fotos enquanto se aproximavam. Pensei que pudessem reclamar, incomodadas com os meus cliques que, então, claramente, eram delas com o céu azul intenso e o lindo complexo ao fundo. Não reclamaram. Desviaram um pouco da minha direção, mas acenando para a foto, sorrindo para mim, como um grupo de adolescentes envaidecidas pelo flerte bobo de um desconhecido. Acenaram mais, sorriram mais. Agradeci com um longo sorriso e acenos.
Que lindas.
Tudo lindo.
Na santa Gidjuvon, como no Char Bakr, vi mais uma vez o coração pulsante do Uzbequistão, tão machucado para estimular os turistas a gastarem seu dinheiro. Tão desfigurado por lojas, shoppings, ônibus de excursão. O tesouro não está perdido, está escondido, basta procurar um pouco.
Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
As fachadas dos mausoléus com cor de areia ao meu redor têm detalhes feitos com azulejos azuis desgastados pelo tempo. Têm portas de madeira ricamente esculpidas. Algumas delas são tão velhas que é difícil acreditar que ainda não tenham virado pó. Em cada canto, há uma dessas portas ou uma passagem, um corredor. É como um labirinto.
Não via ninguém por perto naquele momento. O sol estava diretamente à frente, num céu totalmente sem nuvens. De um lado e do outro, só os mausoléus ocres, as portas, as passagens, os azulejos azuis.
Completamente de surpresa, fui ultrapassado por uma senhora em silêncio. À medida que ela se distanciava, eu focava o olhar no véu vermelho cobrindo sua cabeça. Atravessou meu campo de visão como um cometa, tirei uma foto e então ela desapareceu em uma das misteriosas passagens.
Uma tumba com azulejos em forma de estrela. Segui um corredor ao lado dela. Então achei sepulcros quase demolidos pelos elementos, cujas paredes um dia foram tesouros, mosaicos belíssimos, e, hoje, estão peladas, só ficaram nelas as marcas de onde estavam os azulejos.
Um pingo de suor caiu de minha testa. Eram duas da tarde. Vespas passaram voando, me assustando, perto da minha orelha, saíram de um corredor, entraram por uma fresta em uma porta. Estou traumatizado com vespas, mas curioso demais.
Empurrei a porta. Entrei. Era um pequeno labirinto dentro do labirinto.
Este complexo, incluindo os mausoléus e um grande prédio, mesquita e khanaka, chama-se Char Bakr. Fica na periferia de Bukhara. Enquanto legiões de turistas se divertem na Labi-Haus, ao chegar por aqui não vi nenhum visitante de terras distantes. Difícil acreditar, sendo este um lugar incrível. Um dos motivos pode ser a localização. Sem ter um guia, encontrar o Char Bakr é uma aventura, ainda mais de transporte público, como foi meu caso.
Comecei o dia preguiçosamente. Acordei mais tarde do que o habitual e fui para um dos grandes mercados modernos de Bukhara. Como todos os outros, um local barulhento, em boa parte a céu aberto, sujo e, sobretudo, confuso. De lá, eu sabia que havia uma linha de lotação que me levaria até a porta do Char Bakr. Mas onde ficava a parada? Demorei mais de uma hora para descobrir. Perguntei a um sem número de pessoas, ninguém sabia. Parei para comprar uma grande garrafa de água, a bebi quase inteira, tive que procurar um banheiro, voltei a perguntar. Os pontos de lotações ficavam espalhados à beira de uma avenida que cortava o mercado. Nenhuma indicação, nenhum cartaz, apenas amontoados de veículos com suas placas afixadas no lado interno dos para-brisas indicando seus destinos, estacionados ou parando rapidamente para pegar passageiros antes de seguir viagem. Poeira, buzinas. Coletei pequenas pistas das pessoas com quem falei, palpites-esmolas para o pobre do estrangeiro que foram me levando a uma esquina. Lá chegando, me garantiram que eu estava no lugar certo. Mas tive mais meia hora de espera até que uma única lotação aparece. Desembarcaram dela umas dez pessoas com sacolas de compras vazias e embarcaram eu, uma senhora idosa com seu netinho e um casal, claramente nem um pouco turistas. Todos me olharam com muita curiosidade menos o motorista, totalmente indiferente enquanto partia e procurava não nos matar ao enfrentar as manobras suicidas de outras lotações ziguezagueando à sua frente.
Era sexta-feira, e cheguei ao Char Bakr no momento exato em que estavam acabando as orações da hora do almoço. Como previsto, a lotação parou bem à frente do lugar e, ao colocar os pés no chão, vi que estava no meio do caminho de dezenas de homens, apenas homens, todos saindo do complexo. Pareciam estudantes deixando a escola depois de mais um dia de aulas. Me esgueirei entre eles e já estava passando pelos jardins da entrada quando ouvi uma senhora me chamando. Ela estava sentada à uma mesa embaixo do portal de acesso. Eu sequer a tinha visto, só havia enxergado a multidão saindo e o contorno dos prédios do lugar, um pouco ainda distantes de mim. Ela acenou para que me aproximasse e, para minha grande surpresa, me disse que eu tinha que pagar uma entrada. No final das contas, o Char Bakr era, sim, um lugar visitado ocasionalmente por turistas, e ela tinha a missão de tirar deles a contribuição necessária, e justa, para a manutenção do lugar.
A história do Char Bakr tem séculos e ilustra bem a força do sufismo em Bukhara, particularmente o da irmandade Naqshbandi, e sua forte associação com as dinastias que viriam a governar a cidade até a conquista russa no século XIX. O lugar surgiu ao redor do mausoléu de um teólogo do século X, Abu Bakr Ahmad ibn Sad; seus descendentes, responsáveis por manter o mausoléu, eram naqshbandis que caíram nas graças de uma dinastia de monarcas de Bukhara, até o século XX um país independente. Desses reis, eles receberam doações e investimentos com o objetivo evidente de garantir a simpatia e apoio dos sufis que frequentavam o local. Os investimentos se fizeram especialmente vultuosos no século XVI, e os descendentes de Abu Bakr começaram a usar parte do dinheiro que recebiam para diversificar suas fontes de renda, como bons capitalistas (muito antes do termo existir). O investimento em comércio os faria enviar emissários a lugares tão distantes quanto Moscou. Ao mesmo tempo, o embelezamento do Char Bakr não parou, e sua influência como centro de sufismo sobreviveu aos soviéticos e permanece até hoje.
Após atravessar o jardim, cheguei ao pátio à frente da mesquita e khanaka, um único conjunto unido, o centro do lugar, de onde partiam caminhos levando aos mágicos jazigos decorados da necrópole em volta da edificação. Estavam naquele momento recolhendo uma cobertura de lona que havia sido esticada sobre o pátio. Os últimos fiéis ainda saiam da mesquita. A cúpula azul em cima do prédio brilhava com o sol.
Na parede do complexo do lado de fora havia uma pequena porta. Provavelmente por descuido, foi deixada aberta. Entrei. não havia ninguém por perto para me ver ou me impedir. Ela me levou a um estreito túnel escuro com uma íngreme escada de pedra. Subi e encontrei, no primeiro andar, uma série de quartos, usados, imaginei, por peregrinos sufis. Estavam vazios, sem camas ou móveis, sendo restaurados. Pó de gesso pelos cantos, tinta, um cheiro de construção, mas nenhum pintor ou pedreiro por perto. A escada continuava mais um andar.
De repente, estava no teto da mesquita. Estava justo ao lado da grande cúpula que vi de longe, a cúpula azul, azul como a da madrassa Mir-i-Arab, o domo dos sonhos. Mas, neste, eu consegui tocar. Até abraçar. E inspecionar com cuidado os dizerem em árabe de sua decoração, as linhas esguias, enfeitiçadas, lindas.
O azul da cúpula se misturava com o azul do céu, tinham o mesmo tom. Minha mão em dado momento estava entre os dois. Não era possível saber onde terminava o humano e começava o divino.
Passei meia hora naquele teto, tirando fotos, sentindo a textura dos azulejos e admirando a vista do Char Bakr, dos mausoléus e das ruelas entre eles.
Após descer, novamente sem ser interpelado por ninguém, segui em direção à necrópole em si e foi então que cruzei com a senhora-cometa com o véu vermelho e a vespa que me tentou a empurrar uma porta. O labirinto atrás dela combinava salas cobertas, partes ao ar livre, corredores e passagens, portais como os de pequenas madrassas e mais tumbas, perdidas em cada canto. Havia alguns poucos escritos em alfabeto árabe nas sepulturas.
Encontrei um canto muito especial, nem sei como; era uma pequena sala após um pórtico. Uma minimesquita. Lá dentro, no coberto, foram colocados alguns acolchoados no chão. Tinha vista para um pequeno pátio. Um local aconchegante, que parecia represar uma brisa fresca, oferecendo grande contraste ao calor brutal da tarde. Sentei-me. Passarinhos pousando nos galhos das árvores vizinhas, fazendo algazarra, e logo só o vento leve. Rapidamente a excitação de explorar o Char Bakr deu lugar a um imenso relaxamento.
Mais vinte minutos.
Voltei ao labirinto e uns minutos depois estava no mesmo ponto onde o "cometa vermelho" passou por mim. Parei. Vi novamente algo vermelho, estava se aproximando.
Era uma turista. Acho que ficou tão espantada de me ver quanto eu. Foi se acercando devagar, sem falar nada. Eu também não falei nada. Quando ela estava a um metro de mim, perguntei em inglês se estava perdida. Deu uma risada. "Ia te perguntar a mesma coisa", rebateu.
Era uma garota alemã de uns 20 anos. O vermelho era seu cabelo, ruivo, e do tom da pele do rosto, tostado pelo sol. Calça de tecido leve, solta no corpo. Uma camiseta simples. Uma bolsa de pano a tiracolo, um chapéu de abas curtas, azul bem escuro. Só perguntaria seu nome, ML, muito depois de submetê-la, coitada, a um verdadeiro interrogatório. Ela disse que adorava história, que tinha ouvido falar do Char Bakr, que estava explorando sem destino o Uzbequistão sem data para sair. Sem falar russo, sem falar uzbeque. Gastava o pouco dinheiro que tinha indo para as cidades principais, sem reservar hotéis, sem saber o local onde passaria cada noite. Era uma espécie de hippie, um eco dos anos 1960, quando o Afeganistão, aqui perto, era ainda parte de um conhecido roteiro para essa tribo. Um roteiro despojado e livre, de pouco dinheiro, de natureza e de paz. O Uzbequistão então estava fechado pela URSS, o Afeganistão, aberto. Hoje, é o oposto, com o Afeganistão fechado pelo caos e pela violência.
Conversando, exploramos juntos os cantos que ainda não tínhamos visto do Char Bakr. Tiramos fotos mútuas e a convidei para dividir o transporte para Bukhara, onde ela estava hospedada num albergue. ML recusou; queria ficar até o anoitecer no Char Bakr. Me disse, porém, que certamente iríamos nos encontrar — meu roteiro e o dela seriam exatamente o mesmo por pelo menos mais uma semana: Khiva, Mar de Aral. Aperto de mãos e acenos.
De volta ao local onde a lotação me deixou, fiquei refletindo sobre o desafio que seria para aquela menina conseguir voltar a seu hotel. Não havia nenhuma lotação esperando do lado de fora do Char Bakr. Não havia sequer carros passando na rua: foram-se três minutos até aparecer o primeiro veículo, uma perua em velocidade que não parou, nem acho que era uma lotação. Não era de se surpreender, já que o Char Bakr estava vazio naquele momento, descontando os dois turistas, eu e ML, e alguns trabalhadores fazendo obras no complexo. Certamente não havia demanda de transporte do complexo para a cidade, visto que era o fim da tarde de sexta-feira, dia santo e de folga para os muçulmanos. E não havia alternativa para mim a não ser esperar que alguma lotação aparecesse. Mas, se agora já parecia improvável que eu encontrasse transporte facilmente, o que se poderia esperar quando escurecesse? Boa sorte à alemã. Pelo menos, e isso é um fato sobre a Ásia Central, mulheres viajando sozinhas podem ficar sossegadas. A criminalidade é baixíssima, e as turistas são em geral respeitadas. Segura, ML estaria. Mas quando chegaria à sua pousada? Eis a questão.
Uns moradores vizinhos do Char Bakr, um senhor e sua esposa, de repente abriram a garagem de sua casa e tiraram de lá um furgão. Me vendo parado no meio da rua, entenderam que eu estava esperando por transporte e, sem sequer eu pedir, ofereceram de me dar uma carona. Estavam indo para o centro de Bukhara. Agradeci efusivamente.
O caminho passou voando. Conversamos com muita alegria. Depois de me perguntar o de praxe (de onde eu era, para onde ia, o que fazia), o simpático casal começou a fazer piadas ("Viajando sozinho? Mas ainda não arranjou uma esposa por aqui?"), e eu fui devolvendo com mais piadas. Demos muitas risadas.
"Aqui está! A cidade velha! A grande cidade velha! Nossa Bukhara" disse o simpático senhor, que aparentava ter 50 anos, quando nos aproximávamos da Labi-Haus. Naquele momento, com aquela declaração, senti que o humor leve e hospitaleiro cedia lugar para algo mais sombrio. Seu sorriso virou um meio sorriso. Mudou o tom de sua voz. No seu semblante havia uma mistura de orgulho, mas, ao mesmo tempo, sarcasmo. Como se ele considerasse que a cidade velha era, de fato, uma joia, uma maravilha, mas que, infelizmente, ela sozinha não seria suficiente para trazer-lhe felicidade. Era um lugar lindo, era parte de sua vida, mas... e daí? Que a aproveitassem os turistas como eu, os emissários de sonhos que nunca iriam se concretizar para ele, imerso na brutalidade do dia a dia que vivia, saindo para trabalhar em plena sexta-feira. Não perguntei o que passava por sua cabeça. Mas, quando eu estava me despedindo, prestes a sair do furgão, seu sorriso voltou a sua plenitude. Só senti dele carinho.
"Aqui, um presente para você", me surpreendeu. Estava me oferecendo um melão. Um melão imenso, do tamanho de uma melancia. "Leva! Presente!" Como em ocasiões anteriores em que vivenciei a hospitalidade centro-asiática, fiquei boquiaberto. Mas tive que declinar. O melão estava com aparência maravilhosa, certamente doce, bem doce, como todos os melões da Ásia Central. Mas não havia jeito de levá-lo em minha mochila. "Tá bom, mas, se não pode levar o melão, leve ao menos um non". O pão circular tinha uns 30 centímetros de diâmetro. Esse, não consegui encontrar uma boa desculpa para recusar. Iria dar para enganar a fome nas horas vazias rumo ao oeste do Uzbequistão por pelo menos uns três dias.
Agradeci, desci do carro. Fecharam a porta, acenei adeus. A mulher continuou acenando de volta, visível através da janela de trás do furgão, até o veículo desaparecer em uma esquina.
Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
"Se você quiser, te passo o telefone", disse o uzbeque barbado, safado, em russo, me oferecendo uma mulher como se fosse seu proprietário.
Ele estava com dois amigos de infância, acabava de chegar à sua cidade natal, Bukhara, para passar férias, e nela me encontrou. "Esta é minha cidade", disse, "mas moro em São Petersburgo". É um dos milhões de centro-asiáticos que ganha o dinheiro lá para viver o sonho da boa vida nos curtos momentos de férias, quando vem para cá. Os três amigos tinham à frente uma garrafa de vodka que estava sendo esvaziada rapidamente. Eu, sentado à mesma mesa, ficava só na cerveja.
Estávamos todos na Labi-Haus, o lugar mais agitado de Bukhara, jantando ao lado da piscina de séculos de história. Tinham me visto sentado ao lado deles, sozinho em outra mesa, e então insistiram para que eu me juntasse a eles. Pela vodka, pela camaradagem, me senti na companhia de russos. Mas eram uzbeques, inegavelmente uzbeques, na aparência. Por algum motivo começaram a falar de mulheres. E aí me tornei ainda mais o centro dos holofotes.
"Te passo o telefone. Liga para ela! De graça! De graça!", disse o imigrante radicado em São Petersburgo. Todos riram, menos eu. Estava envergonhado. Entendi que aquilo era uma mistura de brincadeira ou piada (queriam ver minha reação) com hospitalidade (o lado mais tipicamente centro-asiático da equação) e talvez interesse (queriam que a mulher em questão casasse com um estrangeiro, aparentemente endinheirado, para ganhar o mundo? Talvez ela fosse parente de um deles?) Ou talvez quisessem simplesmente dividir comigo a "descoberta" de uma triste mulher solitária que costuma se entregar em troca de companhia? Nunca vou saber ao certo, mas não parecia que eles estavam me oferecendo uma prostituta, afinal, era "de graça". Nem me passou pela cabeça aceitar a indecorosa oferta, deixei claro, e, para meu alívio, eles logo pararam.
No grupo, um amigo do imigrante falava um inglês perfeito. Havia morado nos Estados Unidos, em Pittsburgh, Pensilvânia. Logo a conversa fluiu com uma mistura de inglês e russo, com as pausas ocasionais de uzbeque entre os amigos. Falamos de Pittsburgh, disse que conheci a cidade muitos anos atrás, compartilhei minhas poucas lembranças. O sujeito abriu um imenso sorriso nostálgico ao falar da cidade americana. "Mas por que você decidiu voltar? ", arrisquei perguntar. "Você parece ter sido muito feliz por lá..." Ele parou um pouco de sorrir, ficou reflexivo, olhando para a piscina da Labi-Haus. Uns dez segundos se passam. "Minha família, meus amigos. Todos estão aqui. Minha vida é aqui. Seria muito difícil largar tudo e ficar lá de vez, assumir uma nova vida. Ali, o que eu era? Aqui, sou professor de inglês. Amo meu trabalho. Lá, trabalhava em um restaurante. Amava estar em Pittsburgh. Mas quase não via a cidade. Aqui, olha", disse, sorrindo novamente, olhando para a Labi-Haus, agitada, colorida.
Ao redor da piscina que vi pela primeira vez em 2003, os restaurantes estavam agora cheios de neons brilhantes e piscantes. Havia mesas e mais mesas de restaurantes, alto-falantes com música e até um palco, em um dos restaurantes, onde se apresentava naquele momento um jovem com um violino, acompanhando gravações de pop uzbeque. Nos seis anos desde minha mais recente visita, e ainda mais desde a primeira, a Labi-Haus evoluiu rapidamente para se tornar a atração turística que merece ser. Eu nem julgava que isso seria possível na escala que ocorreu. Bukhara tem um centro histórico bem compacto e delimitado. Isso restringe seu crescimento, limita a oferta de hotéis, a chegada massiva de ônibus com visitantes. Mas os anos recriaram o espaço. Prédios antigos foram convertidos em lojas e em hotéis. Restaurantes, pousadas e comércios se estendem além da Labi-Haus, em direção à cidade nova, ocupando agora uma área que há seis anos não tinha nada a não ser moradias. Estou feliz que a economia esteja aproveitando os visitantes, estou feliz com a Labi-Haus. Não me causa tristeza vê-la tão alegre, cheia de gente.
Mas há, sim, o lado triste. O mesmo de outras cidades uzbeques. O processo de "sanitização", impulsionado pelo governo, também se faz sentir no coração ancestral de Bukhara. O novo presidente deu sua bênção para a demolição de toda uma vasta área, labiríntica como são os bairros tradicionais uzbeques, entre a Labi-Haus e a antiga fortaleza do emir, a Ark, e a linda madrassa Mir-i-Arab. Onde, em vezes anteriores, eu me diverti tentando encontrar o caminho certo, tirando fotos de portões e me orientando pela visão fugaz do minarete da mesquita Kalon ao lado da Mir-i-Arab, tudo foi ao chão. Um cartaz orgulhosamente informa o financiamento de um banco para a construção de uma área destinada a turistas, basicamente um shopping center ao céu aberto. A história que existia aqui, à sombra de monumentos de sonho, está sendo apagada. Vejo metros e metros de tapumes perto das cúpulas azuis da Mir-i-Arab. Em um trecho lembrei que antes existiam casas e lojas construídas em um nível mais elevado do que o da rua e com varandas incomuns. O teto das varandas era suportado por colunas de madeira. Era peculiar, diferente, a adaptação de imóveis antigos para virarem lojas pareciam ser de muito antes da vinda em massa dos turistas. O que vai virar, não tenho ideia, mas temo pelo pior. Em uma outra parte desta área, perto do trecho em construção, as mudanças já aconteceram. Os tapumes foram retirados e uma rua só com comércios de bugigangas, exclusivamente isso, apareceu do nada. As lojas são perfeitamente arrumadas, com os suvenires à mostra de forma organizada, em tabuleiros, em cabides. Chaveiros na certa fabricados na China. Criaram uma praça nova, nem sei o que havia nesse lugar antes. A mudança foi tão radical que, ironicamente, voltei a me perder como me perdia antes neste mesmo trecho. Se antes era porque ele tinha um labirinto de casas tradicionais, todas parecidas, agora é porque as lojas novas todas se parecem. Nos dois casos, fico igualmente sem referências.
Os turistas que nunca estiveram por aqui antes e vão embora amanhã, claro, se divertem. Estão em toda a parte. Vejo franceses, japoneses.
Os argumentos dos que defendem a destruição desses bairros sempre são os mesmos — que, antes, as casas eram ruins, precárias, intimidavam os turistas, eram sujas, eram velhas. Que o turismo é fonte crucial de divisas para o povo daqui. Que é preciso evoluir, crescer.
Limpando o passado, esteriliza-se o presente.
Me veio de repente um ataque de depressão, uma súbita vontade de chorar. Por que tudo pode e costuma ser sacrificado em troca de dinheiro?
Esses tapumes. Os canalhas estão desfigurando Bukhara.
Então, puxei uma força de mim e me virei. Para ver as cúpulas azuis.
E me convenci que nada, nada, jamais, irá tirar a magia da madrassa Mir-i-Arab, o monumento mais lindo da Ásia Central.
Fui até ela, me sentei à sua frente. Contemplei. Conversei com as cúpulas, ouvi as velhas histórias, as histórias que não mudam. Acho que vou ouvi-las e contá-las ainda muitas vezes, muitas, e se um dia não puder mais é porque já terei morrido. Eu morrerei, Bukhara, nunca.
A vontade de chorar passou. Senti um calor no peito, uma alegria imensa.
* * *
Linhas de Nazca. Círculos de pedra no interior da Inglaterra. Comparações esdrúxulas vieram à minha cabeça durante um passeio logo de manhã numa área desértica perto de Nurata, a caminho de Bukhara.
Eu e um suíço, ambos hóspedes da mesma pousada de Nurata, fomos guiados pelo dono da pousada em pessoa, Q. Nosso anfitrião vive com sua família dentro do próprio estabelecimento, que fica perto da fortaleza de Alexandre e da fonte sagrada das trutas, e aluga os quartos sobressalentes para os visitantes, que se beneficiam da excelente localização. Além da pousada, ele também organiza passeios, entre eles uma expedição para o lago ao norte, o Aydarkul. Segundo Q, é um passeio muito popular, especialmente entre os interessados em ter a experiência surreal de aproveitar uma praia no meio da Ásia. Q me lembrou GS, o dono da pousada onde fiquei nas montanhas Fan. Olhos cansados, cerca de 40 anos, simpático e educado, mas sempre parecia estar escondendo algo, como que eternamente tentando calar seus pensamentos e opiniões sobre os turistas, muitas vezes arrogantes, muitas vezes sem nenhum interesse em conhecê-lo ou mesmo conhecer melhor sua Nurata. Não era meu caso. Pareceu extremamente contente de conversar comigo. O cobri de elogios sinceros principalmente pela sua habilidade incrível em falar outras línguas. Não apenas as centro-asiáticas, com exceção do tajique todas parecidas, mas as línguas europeias. Dizia falar inglês, francês, russo, além de uzbeque e um pouco de cazaque e tajique. Testei seu inglês e era muito bom. Foi quando surgiu o convite para ir ao Aydarkul, que lamentavelmente tive que recusar por falta de tempo, e para a visita às incomuns marcas na terra perto da cidade.
Antes de sair da pousada, por volta das 8h, Q nos ofereceu uma breve explicação sobre o que ele definiu como um sistema muito antigo de captação de água. Segundo ele, o sistema foi crucial para que, antigamente, Nurata pudesse enfrentar os verões horrorosamente quentes que sempre teve. Nos mostrou fotos aéreas, pouco úteis, pois era difícil imaginar exatamente como aquelas linhas de círculos na terra eram na realidade, suas dimensões. Disse isso a ele, e ele concordou. Arranjou um motorista com um carro e partimos em seguida.
Descemos do veículo uns 15 minutos depois em uma área de mato rasteiro não longe de um braço das colinas por onde eu tinha caminhado no dia anterior após ver a fortaleza de Alexandre. Nada de mais, à primeira vista. Alguns montes que pareciam ser de terra escavada e acumulada. Então, fomos nos aproximando, olhando para o chão perto da terra acumulada. E lá estavam. À frente, um grande buraco, de uns 5 metros de diâmetro por uns 3 de profundidade. Parecia uma pequena cratera. Ao lado dele, alinhado rumo às montanhas, outro buraco muito parecido. Depois, outro, depois, outro, depois, outro, fazendo um caminho até perder de vista de buracos subindo a montanha. E, do outro lado, seguindo a linha reta, muitos mais após o buraco perante do qual estávamos. Nessa direção seguiam em direção a Nurata. Uma impressionante sequência de dezenas ou centenas, separados com precisão matemática a cada dez ou quinze metros. E, não muito longe, paralelamente, era possível ver outras linhas de buracos semelhantes descendo das montanhas. Uma vasta rede cuja construção deve ter demorado anos, exigindo um esforço imenso para ser concluída.
Trata-se, na verdade, de algo que eu havia ouvido falar em minha visita ao Irã em 2005. A rede, um eficientíssimo sistema de gerenciamento de água em climas desérticos, chama-se qanat ou kariz. No Irã, eu não havia visto os buracos e tudo me pareceu muito abstrato, enquanto que, em Nurata, finalmente tudo fez sentido. A ideia do criativo sistema é que um primeiro túnel, extremamente profundo e em algum ponto no aclive das colinas, encontre um veio d'água no subterrâneo. A partir desse ponto, é construído um "aqueduto subterrâneo", levando a água daquele ponto até o ponto de saída do sistema, aproveitando a gravidade da colina descendo. Os buracos adicionais além do inicial dão acesso à galeria, permitindo alcançar a água corrente e fazer reparos no aqueduto, se for o caso. É um sistema muito bom em desertos porque a água é transportada por longas distâncias sem o risco de evaporação, já que não está exposta ao sol infernal. Além disso, a água chega ao seu destino fresca e pura. O sistema teria tido sua origem na Pérsia espantosamente ainda antes de Cristo; ao Uzbequistão, ele poderia ter sido trazido pelo próprios persas antes de Alexandre, o Grande, pelo próprio Alexandre ou mesmo pelos invasores árabes do século VIII, juntamente com o Islã. Mas, enquanto que no Irã os qanats ainda são razoavelmente comuns, no Uzbequistão existe apenas uma rede conhecida, a de Nurata.
Muitos dos túneis que vi pareceram completamente abandonados, tomados por terra, apenas pegadas na areia onde, outrora, havia um caminho profundo até a água subterrânea. Fui andando de um buraco a outro, analisando-os e me afastando do suíço e de Q. Nas paredes das crateras, ainda é possível ver outros orifícios onde antigamente ficavam fixadas toras de madeira para ajudar as pessoas a chegar ao túnel lá embaixo. Pergunto a Q se os buracos e todo o sistema de transporte de água estão ligados a uma cisterna como a sardoba que vi ontem perto de Navoi. "Não. São ideias diferentes", explicou. "Aqui, a água flui permanentemente, sendo coletada diretamente da saída, sem um reservatório." Não me pareceu ser possível que, após tanto tempo em uso, o sistema ainda forneça água a Nurata. Mas, segundo Q, até hoje os locais se aproveitam dele.
Que sensação estranha a de caminhar ao lado dos buracos do qanat de Nurata. Sensação de visitar um campo de pouso de naves extraterrestres, que usariam os buracos como referência como nos aeroportos os aviões se guiam por luzes piscantes na pista.
Hora de ir. Nosso motorista passou rapidamente na pousada para deixar Q e o suíço. Eles iriam agora para o lago Aydarkul. Depois de nos despedirmos, o carro, só comigo e o motorista, foi enfrentar o sol da estrada para a Labi-Haus.
O motorista, que já era uma pessoa calada, com um russo limitadíssimo, se fez ainda mais mudo. Q havia pedido a ele que me deixasse em um certo ponto da estrada onde um primo do próprio Q passaria mais tarde com um táxi compartilhado levando gente para Bukhara. Um assento estava reservado para mim. Mas, antes, o motorista também tinha combinado com Q de me levar a outro local incomum e pouco conhecido dos turistas. Um vilarejo num pequeno desvio da estrada principal, a um terço do caminho entre Nurata e Navoi.
Logo na entrada da vila deu para imaginar parte do que viria a seguir. Ao lado do asfalto havia grandes escavadeiras. "Kamen", disse o motorista. Era a palavra para pedra em russo. "Pedras e mais pedras", completou. O russo do motorista, falado em palavras que saiam bruscamente de sua boca e mal pronunciadas, soava como algo animalesco, primitivo. Da idade da pedra, combinando com o substantivo. "É tudo por aqui. Pedras. É a riqueza de Gazgan. Mas não tem água."
Fomos entrando com o carro, devagar. A quentíssima, sequíssima cidadezinha é um lugar que dizem ser único no Uzbequistão. O modelo de casa uzbeque é com grandes pátios sombreados escondidos atrás de muros sem nenhum atrativo externo, geralmente com fachada de concreto, tijolos ou barro nos locais mais pobres. Em Gazgan, porém, o padrão é modificado. A pedra mais valiosa encontrada por aqui é o mármore, mas outras pedras ornamentais, ardósias e granitos, são também tão comuns e de tão boa qualidade que casas no centro da vila têm suas fachadas todas cobertas com elas. As lâminas de pedra são fixadas como um quebra-cabeça, criando mosaicos para onde quer que se olhe. Não está claro quem começou com isso ou quando começou. Mas o que se vê hoje é um conjunto de moradas que me lembrou uma vila do norte do País de Gales, descontando o tempo úmido e instável de lá. Surreal, mas Gazgan guarda um quê de cidadezinha fria de montanha, com seus abrigos de pedra, ainda que estando no meio do deserto e sendo sufocada pela poeira e pela secura.
Nas ruas, em meio às casas de mosaico, pouquíssimas pessoas enfrentavam o sol. E essas eram velhos. O lugar parecia estar morrendo. Casas de vila galesa, realidade de povoado do sertão nordestino.
As moradas com as pedras na fachada foram ficando mais comuns à medida que avançamos pelas ruas, pelo coração de Gazgan.
Uma hora, o motorista parou. À nossa frente, estava o que parecia ser a entrada de um cemitério. Havia uma entrada, uma casinha com detalhes em mármore no mosaico de sua fachada e uma inscrição em cima da porta — Shohimardon, que identifico com sendo uma inscrição de origem persa significando Rei (shoh, xá) dos homens. Senti que já tinha visto esse nome antes.
"É aqui. Vamos entrar", disse o motorista. Surpresa para mim. Pensei que iríamos apenas visitar a vila.
Gazgan não é singular apenas pelas fachadas de pedra. Há algo mais, também interessante e incomum.
Atravessamos a entrada. Um curto caminho levava a uma mesquita e um mausoléu. O taxista se apresentou a dois guardiões, velhos com seus chapéus típicos uzbeques e rostos muito sérios, de pessoas que há décadas se dedicam aos estudos religiosos. Lhes perguntou algo. Responderam em russo: "Sim, é aqui. Ali..." e apontaram. Ali, neste caso específico, não é um advérbio de lugar.
Diz a lenda solidificada na crença local em Gazgan que lá está a suposta tumba de Ali, o genro do Profeta Maomé, o quarto califa dos sunitas e o nome mais santo para os muçulmanos xiitas. Mais uma tumba para Ali, das inúmeras que se espalham pela Ásia Central, misturando sua força com a de crenças locais ancestrais usando o sufismo como elemento unificador. No Pamir, em 2012, encontrei uma pequena tumba do Imã Ali em um lugar extremamente remoto, em Ishkashim, perto da fronteira afegã. Os locais acreditavam piamente que o local de descanso final do genro do profeta estava de fato lá, e que a crença da maioria dos xiitas, de que está enterrado em Najaf, no Iraque, era uma elaborada farsa destinada a enganar os inimigos do Islã. Não tão longe do Pamir, mas já no próprio Uzbequistão, fica outra suposta tumba de Ali. Tudo se encaixa ao me lembrar dela. Ainda não a visitei, mas li a respeito e lembrei que ela ficava na localidade de Shakhrimardan, um enclave do Uzbequistão no Quirguistão, no Vale de Fergana. Shohimardon, Shakhrimardan. É o mesmo nome.
Em Gazgan, a origem da tumba seria a lenda de que Ali teria vindo para a região de Samarkand enfrentar um mítico dragão. Nada que se possa ver nas escrituras.
Trata-se de um mausoléu simples. Em minha visita, estava vazio, completamente às moscas, embora limpo e com manutenção atenta. Do lado de fora, é uma casa de pedra, parecendo uma pequena igreja. Um conjunto de mastros vermelhos erguem bandeiras verdes, a cor associada ao Islã, indicando que, neste local, um ser iluminado está descansando. Dentro, uma câmara com paredes e teto sem decoração alguma. O caixão, como acontece no caso de tantos santos por aqui, têm uns dez metros. Na cabeceira, foi colocado outro mastro com uma bandeira verde.
O complexo fica à direita de uma pequena mesquita com a fachada em mosaico de pedra típica de Gazgan. Estava sendo fechada, mas os guardiões me deixaram entrar por um par de minutos. Arcos de pedra e extremos de luz e sombras. A luz intensa, branca, celestial, penetrando por janelas no teto, em contraste extremo com a escuridão entre os arcos. A impressão é que eu não estava em uma mesquita, mas em um templo grego, com pilastras lembrando colunas dóricas. Fresco, calmo, isolado.
Um desejo de me sentar no chão e perder meus pensamentos. Quando estava prestes a fazer isso, um guardião, com sua barba e olhar frio, me chamou. Tirou-me para fora e passou a corrente na porta. Invocou em silêncio as forças do seu Olimpo. Zelava para que seu Ali não fosse perturbado por mim, um infiel. Entendi.
Apontou para os mastros vermelhos. Me disse que estavam associados a uma crença de dar às mulheres fertilidade. A interessada deveria passar por entre os mastros; assim, seria abençoada com filhos saudáveis. Algo imemorial, bem anterior ao Islã e, novamente, sem nenhuma justificativa nos textos sagrados.
Ao ver as bandeiras verdes nos mastros, lembrei, pela segunda vez no dia (após a visita ao qanat de Nurata), do Irã, a maior nação de partidários de Ali, os xiitas. Os seguidores desse ramo do Islã são minoria nesta parte da Ásia Central, mas eles existem, muitos deles vindos do sul séculos atrás e conhecidos como Ironis, ou seja, do Irã. Segundo historiadores, o momento crucial que explica a presença dessas comunidades é uma ofensiva do emir de Bukhara contra a lendária cidade de Merv, cujas ruínas ficam no atual Turcomenistão, em 1785; a cidade pertencia aos persas e, após a vitória do invasor, ficou inabitável. Então os sobreviventes foram forçados a emigrar para o norte.
As comunidades xiitas estão espalhadas pelo Uzbequistão, onde preferem priorizar a discrição. Não duvidaria que Ironis frequentem este mausoléu, mas é difícil confirmar isso. Um artigo divulgado em uma publicação acadêmica em 2009 estimava que naquela época existiam cerca de 100 mil xiitas em Bukhara e 200 mil em Samarkand, embora não houvesse cifras oficiais. Os seguidores de Ali são obrigados a praticar sua fé na maior parte das vezes isoladamente, dentro de suas próprias casas. Em 2009, apenas três mesquitas para xiitas estavam registradas no país, duas em Samarkand e uma em Bukhara, e a comunidade se queixava de estar sob pressão das autoridades para desaparecer de vez, particularmente nas datas de celebração dos xiitas como a Ashura, o dia em que a comunidade lembra o martírio de Hussein, neto de Maomé e filho de Ali. Há registros de que repetidas vezes as autoridades negaram pedidos para que os xiitas abrissem mais mesquitas ou mesmo pudessem fazer a peregrinação a Meca. Os xiitas são vistos com um elemento de influência do Irã e são associados aos tajiques (que falam persa, mas são naturais da Ásia Central e em sua maioria, sunitas, com exceção dos moradores do Pamir). No nacionalista Uzbequistão, onde a questão da aceitação da identidade tajique de boa parte da população ainda não tem resposta, convém que a caixa de pandora do xiismo continue bem fechada. Seria uma surpresa, mesmo na fase de distensão capitaneada pelo novo presidente Shavkat Mirziyoyev, que o tema seja tratado com a transparência que merece e que os Ironis sejam reconhecidos e aceitos como é a maioria sunita e uzbeque da população.
O guardião desapareceu. Sou acordado de minhas reflexões pelo motorista. Hora de ir.
Local incomum, Gazgan.
Deixamos para trás a cidade, entramos na estrada e corremos para os turistas de Bukhara. Abri a janela do carro, o ar fervente do deserto veio me estapear. Ele levava para longe as pedras e o que nunca vou saber.
Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
O ônibus atravessou o rio Zerafshan e então a paisagem logo mudou; não mais as plantações de algodão que acompanharam todo o trajeto de Samarkand a Karmana. Agora, terra seca. Arbustos rasteiros, poucos deles verdes, a maioria cor de poeira. Um mundo ocre. O coletivo, como quase todos os intermunicipais na Ásia Central, estava superlotado. Eu estava sentado num banco bem no meio do corredor, na última fileira, no fundo do ônibus. Ao meu redor, havia sacolas imensas com cobertores, panelas, um fogão portátil, tudo o que as pessoas que moram nas vilas do interior compram na grande Navoi para levar para suas casas. Estiquei a cabeça e, entre as pessoas sentadas ao lado das janelas, consegui ver bem a paisagem: uma sequência de colinas que o ônibus foi galgando devagar, curvas e curvas. Depois, veio a descida e uma vasta área plana. Novamente, um calor atroz, uma luz cegante. Nesse caminho, as vilas que vão surgindo, na certa construídas ao redor de oásis, são ilhas verdes nesse oceano de secura.
Nurata chegou. Era maior do que eu imaginava, maior do que as outras vilas no caminho, mas não deixava de ser um mero pingo de vida nesta vastidão do deserto do Kyzylkum. As montanhas ao lado da cidadezinha são chamadas Nur Atau; são o que resta da serra Pamir Alai, um braço do Pamir. São as montanhas que vêm do Tajiquistão, onde nasce o rio Zerafshan, e aqui encontram sua morte no deserto. Neste mundo inóspito, já distante do Zerafshan, fiquei coçando a cabeça, me perguntando onde está a água que garante a vida de quem mora aqui. Não vi rio, não vi riacho, não vi lagos, sequer poços. Vi algumas ruas tomadas pela areia. Tudo torrando, secura, secura. E a luz imensa que está até no seu nome - Nur é "luz" em árabe e, por influência, em persa e, por fim, em tajique. Ota é "pai" em túrquico, a língua que está na raiz do uzbeque, do quirguiz, do cazaque. Pai da Luz. Luz, secura, calor, quase sem árvores. Como pode haver vida aqui?
E há vida, e muita. E cada vez mais.
A origem de Nurata, como a de muitas das cidades por aqui, estaria na conquista por Alexandre, o Grande. Ele teria fundado a cidade no século IV a.C., e o assentamento teria recebido o nome de Nur. Aqui, as forças de Alexandre construíram um forte, uma magnífica edificação que agora me saúda, milagrosamente de pé tantos séculos depois. Já é visível de longe. Uma estrutura de barro, praticamente uma extensão da argila do solo, rugas de terra com não mais do que a mais mísera vegetação rasteira. O forte tinha grande importância estratégica, impedindo a saída das estepes desérticas que se prolongam ao norte, antes do vale do Zerafshan, protegendo assim a vila de bandidos nômades que a ameaçavam. Protegendo o mais valioso tesouro da cidade: sua fonte de água cristalina, que posteriormente passaria a ser considerada sagrada pelos muçulmanos.
No violentíssimo passeio de Gengis Khan pela Ásia Central, no século XIII, Nurata foi um ponto de passagem destacado nas crônicas. Ela anunciou o destino que iria se repetir em tantas outras cidades a seguir:
Ele (Gengis) chegou em seguida a uma vila chamada Nur (...) Nur era uma espécie de cidade santa, contendo muitos locais sagrados que eram visitados por muitos peregrinos e outros devotos. O povo de Nur fechou os portões e por algum tempo se recusou a se render. Mas, por fim, descobrindo que era inútil tentar resistir, eles abriram os portões e permitiram a entrada dos mongóis. Gengis Khan, para punir os moradores, como disse, por apenas terem pensado em resistir a ele, separou um pouco de gado e outros mantimentos para evitar que (os moradores) morressem de fome e dividiu todo o resto, (inclusive) as propriedades da vila, entre seus soldados como pilhagem.
- Jacob Abbott, History of Genghis Khan (1860)
Com tanta história em Nurata, agora o governo uzbeque está apostando alto em seu potencial como um novo polo turístico. Mas, neste caso, o patrimônio cultural seria o secundário. A ideia é que Nurata seja um centro para algo ainda incipiente no Uzbequistão, o turismo de aventura. A cidade é uma base ideal para longas caminhadas exploratórias, para o contato com a natureza seca e remota dos limites do Kyzylkum, passando pelas montanhas Nur Atau, seguindo rumo a um imenso lago artificial na fronteira uzbeque-cazaque, o Aydarkul. Na estrada vindo para Nurata, o governo colocou outdoors propagandeando as oportunidades do turismo na região, incentivando os empreendedores a investir em negócios pensando em gente como eu, que vem de longe visitar Nurata. A prova mais evidente dessa estratégia para a cidade, porém, pode ser vista no centro histórico. Perto de onde o ônibus me deixou, encontrei um parque passando por uma cirurgia: calçadas sendo pavimentadas, árvores sendo plantadas, canteiros sendo ajeitados. Ao lado, duas mesquitas antigas, de valor histórico, pareciam recém-restauradas. Além das mesquitas, vi um portão que levava à baixa colina onde está o forte de Alexandre. Se não bastasse tudo isso para deixar claro que aqui é onde está o coração pulsante e o futuro de abundantes dólares turísticos de Nurata, vejo, ao lado do portão, seguindo na direção das duas mesquitas, a tal fonte de água, e dela corre como um riozinho, canalizado, ao ar livre.
A nascente é muito bonita, linda, realmente faz você pensar em Deus enxergá-la no meio deste deserto. Água limpa, transparentíssima, uma tentação, surgindo do nada. Primeiro num laguinho e depois nos canais, a água ganha uma tonalidade azulada. É a casa de inacreditáveis centenas de trutas. Elas brincam de apostar corrida contra a correnteza e de esconde-esconde com as pessoas que, com galões, levam água do canal para beber. É um lugar sagrado para os muçulmanos locais não apenas por representar esse milagre da vida brotando no meio da secura, onde não deveria haver vida. A água e suas trutas são o objeto de lendas que correm as estepes há séculos. A mais conhecida delas é a que explica o surgimento da fonte. Dizem que Ali, o genro do Profeta, teria em pessoa sido responsável pela sua existência; ele teria cravado no chão seu cajado e do buraco fez-se jorrar a água. Por isso, as trutas são sagradas, ninguém as tenta pescar, e todo o local se tornou um destino de peregrinação; há uma crônica do século X já testemunhando o grande número de viajantes que aqui vinham praticar sua fé.
As mesquitas históricas ao lado do aquário natural são bonitas e, claro, as visito. Contudo, parecem ter sido tão pesadamente restauradas, tão profundamente reconstruídas, que, ao menos para mim, perderam todo o encanto. As considero cópias modernas de algo que existiu. Quase nada nelas é realmente antigo. Uma delas, chamada Tchilustun e identificada como mesquita de sexta-feira (o que denota sua importância como centro de rezas no dia santo da semana) é apresentada em uma placa como originalmente do século IX, o que a colocaria como sendo dos primeiros anos de chegada do Islã à Ásia Central. Entretanto, os únicos elementos que realmente representam seu passado são a porta e o mihrab, o nicho na frente do qual fica o mulá que lidera as preces. A outra mesquita, chamada Panjbaka, é identificada como sendo do século XVI, ou seja, contemporânea dos shaybanidas, a dinastia uzbeque que sucedeu os descendentes de Tamerlão no controle desta região. Nesta, nada, nem sequer a porta, nem o mihrab, sugere sua longa história, sua ligação com a era de ouro da Ásia Central. Se há algo de original, está com tanta maquiagem que nem é possível dizer que é antigo.
Por outro lado, algo muito positivo: os dois templos não foram restaurados para permanecerem apenas como decoração em grande escala, aguardando os turistas. São mesquitas de uso corrente, procuradas pela população de Nurata que vem venerar a fonte sagrada. Não são apenas grandes suvenires. Com a proximidade do anoitecer, cruzo com grupos de senhoras, lindamente coloridas com suas sedas, algumas delas com bebês, que vêm rezar. Para elas, as mesquitas são o dia-a-dia, e isso lhes dá um valor que eu nunca poderia mensurar.
Mas meus olhos ficam constantemente sendo puxados para a fortaleza ancestral de Alexandre, no alto da colina.
Alcanço a escada que começa pouco depois das mesquitas, já ao pé do monte de terra batida. Dela, sai uma trilha que atravessa em aclive uma pequena área com barraquinhas vendendo lembranças, embaixo de algumas árvores. Logo se chega às ruínas de uma muralha. Ecos de Istaravshan, de Khojand. Como as cidades tajiques, este local também tem essa conhecida associação com Alexandre, que teria passado por aqui cerca de 2,4 mil anos atrás.
Uma das histórias contadas acerca da fortaleza de Nur é que Alexandre não testemunhou, em pessoa, sua construção. Ao passar por aqui, fundou o assentamento por sua posição estratégica e determinou a seus generais que erguessem a estrutura, que teria que ser robusta. Depois, seguiu com suas conquistas nesta terra distante. Quando voltou, não se sabe quanto tempo depois, encontrou uma edificação verdadeiramente intimidadora, com escarpas íngremes e grossos muros. Nem mesmo as tropas que levava consigo poderiam penetrar a fortaleza.
Pela antiguidade do sítio, não é surpreendente que o único elemento claramente identificável da fortaleza seja a muralha que a cercava. Mas há, em pelo menos três pontos dela, áreas que aparentam ter sido um dia aposentos ligados pela muralha. Talvez fossem os locais onde permaneciam as tropas ou os comandantes quando estacionados na fortaleza. Talvez um deles fosse o dormitório? Outro, o depósito de armas? As escavações já feitas não deixam claro o que foram, ou como foram, ou mesmo quando foram esses aposentos. Seria todo o conjunto parte da mesma fortaleza de Alexandre? Será que há partes onde foram erguidas outras construções posteriores aos tempos longínquos do conquistador macedônico, e que, hoje, confundimos, achando que são todas parte do mesmo todo, vindas do mesmo tempo? Eis a mesma, eterna dúvida que paira sobre outros sítios fantasmagóricos como as fortalezas de Alexandre em Khojand e em Istaravshan: quanto destas ruínas, em seu estado original, foi de fato testemunhado pelo conquistador ou mesmo por um de seus generais? Certamente, pouco. E ela foi feita e refeita, várias vezes. Então, nós também vemos hoje bem pouco dessa história distante, quase lendária.
O tempo indica tudo e confirma nada. Mais uma reticência do longo passado do Uzbequistão.
As perguntas, esse mistério, não deixaram minha cabeça quando acompanhei os raios de sol descendo lentamente no poente e continuei a trilha para além da fortaleza. Logo o caminho desapareceu. Não havia mais muralha, não havia mais ruínas. Mais um aclive e se descortinou um horizonte de colinas baixas, barro e pedra secos, mato torrado, tudo com uma coloração cinza e bege. À esquerda, estava a ponta da cidade de Nurata. À direta, o nada, apenas montanhas, uma atrás da outra, como ondas em um oceano de terra. Dizem que, seguindo por uma das trilhas invisíveis nestas colinas peladas, pode-se chegar a atraentes pinturas rupestres. Não havia placas, não havia pistas, então, não havia como sequer tentar chegar a essas pinturas sem um guia me acompanhando. Só havia vento, luz, poeira. Um vento crescente vindo do oeste, de onde o sol estava se despedindo.
Pode-se caminhar livremente. Irresistível. Perambulei por 40 minutos. Segui em linha reta, descendo, subindo os montes.
Quando finalmente olhei para trás, não via mais um sinal sequer de Nurata. Não via mais nada a não ser as colinas me cercando completamente. Muita luz. Nenhuma pessoa, nem mesmo à distância.
Sentei no chão.
Minha sombra estava longa. Imensamente longa. Como se o vento a esticasse.
Olhei as colinas. E a sombra. E o sol. E voltei às colinas, à sombra, ao sol.
Nenhuma pessoa. Nem eu.
Uma liberdade imensa.
* * *
Mais cedo, ainda em Karmana.
A festa de casamento no salão de festas do hotel acabou pontualmente às 22h55. O filme sem sentido na TV em branco e preto do meu quarto chegou a ter algum sentido, depois voltou a não fazer sentido nenhum. Eu estava tão cansado que havia escorregado para cochilos com a tela ligada em vários momentos, algo que não costumo fazer (geralmente a TV não me deixa dormir, e ainda mais quando estou num ambiente com muito barulho). O fim da festa foi uma alegria para mim e, quando desliguei a TV, tudo ficou absolutamente, completamente escuro. Ainda assim, não foi uma noite perfeita. Logo adormeci, mas aquele sepulcro me trouxe traumas do passado. Acordei sobressaltado no meio da noite. Tive a impressão de que estavam tentando abrir a porta do meu quarto, bem trancada, pelo lado de fora. Quase pulei da cama. E junto comigo, meu coração quase pulou da boca. A lembrança inevitável foi o maldito hotel em Khojand, no Tajiquistão, onde um mal-entendido fez os gerentes invadirem meu quarto no meio da noite. Em Karmana, porém, foi tudo um equívoco meu. O barulho que me assustou era de hóspedes nos quartos vizinhos, entrando tarde em suas habitações e trancando suas portas com força. As paredes finas demais ajudaram a criar a impressão de que eu estava dentro do quarto deles.
O mais cedo que consegui levantar for às 7h. Às 8h, eu já estava na rua procurando transporte não para Nurata, meu destino da tarde, mas para mais indícios da ancestral Rota da Seda na região de Navoi. Três taxistas pararam na rua para ouvir minha proposta, três disseram que era longe demais para eles. O quarto aceitou por 30 mil sum (cerca de US$ 3). O lugar ficava a uns 20 quilômetros do centro de Navoi, no caminho para Bukhara. Ao chegar, o motorista, sem paciência, queria me deixar numa vila próxima. Não, disse. Não estou indo para lá, quero visitar este outro local, e descrevi com detalhes o que era. O taxista nunca havia percebido que perto da vila havia tais ruínas. Não o culpo. Esses tesouros são como camaleões, da mesma cor do panorama, quase invisíveis para quem nasceu e viveu por perto toda vida. Na velocidade da estrada, eles simplesmente desaparecem. Ele finalmente achou o lugar, paguei, agradeci, joguei a mochila no chão, saí do carro e vi o táxi se juntar aos veículos indo para Navoi, caminhões, ônibus e carros, as modernas caravanas da Rota da Seta gerando o vento-chicote das rodovias. Tempo bom, ainda o frescor das primeiras horas de sol.
Na minha frente, estava o chamado Rabat-e Malik.
Trata-se de um prédio único, com uma história muito interessante, mais um elo perdido da história arquitetônica da Ásia Central. Segundo os estudos conduzidos primeiramente por arqueólogos soviéticos, esta estrutura, com um portal monumental que se assemelha ao de uma madrassa ou mesquita, mas praticamente destruído além disso, foi originalmente um palácio da dinastia turca kharakhanida, construído nos séculos XI como uma residência fortificada, possivelmente um recanto de veraneio, para os governantes da dinastia em Samarkand. Como tal, a construção tinha toda o luxo e contava com a proteção de grossas muralhas para evitar os ataques de bandidos do deserto. Após seu portal, havia antigamente um pátio interno com colunas e arcos que conduzia a quartos para serviçais, estábulos, cozinha e depósitos, além dos aposentos dos nobres; na parte dos ricos, os arqueólogos identificaram uma pequena mesquita e um banho turco. Eis a primeira razão de o prédio ser tão celebrado por estudiosos: dos resquícios arquitetônicos dos kharakhanidas, o que sobrou, em geral, foram mausoléus, como o famoso Aisha Bibi no Cazaquistão ou os de Özgön, no Quirguistão. Há a torre de Burana, perto da capital quirguiz. Mas não lembro de ter alguma vez encontrado um palácio kharakanida. Até o misterioso Kyrk Kyz, que recém visitei em Termez, talvez fosse um, mas não há nenhuma prova isso.
Essa, porém, foi a primeira encarnação da construção, e o que veio a seguir redobra seu fascínio. Os kharakhanidas foram logo sucedidos no poder da região por outras dinastias túrquicas, como os gaznévidas e os seljúcidas. Nesse período de decadência kharakhanida, no século XII, não é muito claro o que aconteceu com o prédio. O que sim se sabe é que, com a chegada dos mongóis no século XIII, trazendo seu peculiar apetite por destruição, milagrosamente a estrutura permaneceu de pé. Nos anos seguintes, deixaria de ser um palácio para assumir seu papel como estalagem de caravanas, ou caravançarai. Na Ásia Central, sobrevivem poucos rabats (como são chamadas tradicionalmente por aqui tais construções) da vasta rede que existia antes do século XVIII por toda a região para ajudar os comerciantes que faziam a longa travessia entre a China e a Europa. Um dos mais conhecidos hoje é sem dúvida o Tash Rabat, que visitei em 2012 na remota fronteira entre Quirguistão e China. Há outros que foram muito descaracterizados ou destruídos, remodelados, reformados e adaptados como restaurantes ou hotéis, e assim sobrevivem como caravançarais talvez só em nome − em Bukhara há alguns assim. Muitos outros foram desmantelados, suas pedras usadas para outras construções, como aconteceu com tantos prédios históricos na Europa também. Este seria um desses sobreviventes, hoje no meio do nada, à beira da estrada, a cerca de dois quilômetros ao sul de onde passa o rio Zerafshan.
Acredita-se que o Rabat-e Malik nessa segunda encarnação foi uma importante hospedaria neste trecho da "Rota Real", como costumam chamar a ligação entre Bukhara e Samarkand que seguia a Zerafshan. Provavelmente tão importante quanto o Tash Rabat, não puramente pela sua localização estratégica (neste caso, o Tash Rabat, que providenciava a proteção aos viajantes antes da difícil jornada entre as montanhas que marcam a fronteira da China, era mais essencial), mas por ser muito procurado, sendo um ponto de encontro dos mais ricos mercadores que se aproximavam de duas cidades centrais na rota.
Mas, na verdade, pouco resistiu até hoje. Aparentemente, quase tudo que sobreviveu de pé até o século XX foi obliterado por um terremoto em 1968 e pelos próprios soviéticos durante a construção da estrada que passa ao lado. Dizem que o caravançarai funcionou, o que é impressionante, até o século XVIII, quando as rotas comerciais com o oriente já eram firmemente por via marítima e toda a região entre os rios Amu Darya e Syr Darya já era o campo de batalha entre o débeis reinos de Bukhara, Khiva e Kokand, que seriam em algunas décadas engolidos pela Rússia imperial. Dizem que os locais, ainda no século XIX, já tinham até esquecido o que era aquele portal imponente e o chamavam de "portões de Bukhara", talvez por acreditarem que se tratava de um marco de entrada no território oficial do então emirado.
Hoje, além do portal, se encontram as bases das colunas, a área que seria do pátio de entrada, e as bases dos aposentos. Varridas pelo vento. Vazias. Secas. Ocupadas por fantasmas, os fantasmas de caravanas, os fantasmas de reis há muito apagados do mundo. Perambulo por uma hora na já contumaz tarefa de apenas imaginar o que foi aquele amontoado de pedras.
Do outro lado da rodovia, diretamente oposto ao Rabat-e Malik, está resposta à sede de todos os hóspedes do palácio-caravançarai. A construção se beneficiava de um engenhoso sistema de distribuição e armazenamento de água. O líquido era trazido do Zerafshan por um duto e armazenado em uma grande cisterna (sardoba) feita de tijolos. Neste caso, a construção, chamada Sardoba Malik, permanece, milagrosamente, inteira. Doze metros de altura. Talvez justamente por ser a diferença entre a vida e a morte para todos enfrentando a Rota Real, a cisterna tenha sido deixada de pé pelos que vieram a seguir, saqueadores ou inimigos em guerra eterna nas estepes: todos dela se beneficiavam, todos dela dependiam. Cisternas parecidas existem em outros lugares, como também existem rabats. Mas a Sardoba Malik é a maior e mais bem preservada que já vi.
É uma admirável obra de engenharia, especialmente levando-se em conta que foi construída no século XI. Do lado de fora, o prédio parece bem curioso. Se vê um pequeno portal que está ligado a uma cúpula que estranhamente cresce diretamente do chão. Pelo portal, se desce por uma escada ao reservatório em seu interior. Metade de toda a câmara, sob a cúpula, está debaixo do nível da terra. Três pequenas janelas fornecem um pouco de luz ao que do contrário seria um ambiente de caverna no meio do deserto, úmido, escuro, com a temperatura bem mais baixa do que no exterior. Embora há muito sem uso, a sardoba ainda tem água, uma camada rasa no fundo, esverdeada, aparentemente insalubre, provavelmente acumulada após alguma chuva recente. A luz que entra pelas janelas cria um ambiente caleidoscópico ao se refletir na água e, de lá, atingir as paredes. Impressionante ver que a água não se esvai entre os tijolos. Não vejo nenhuma rachadura nas paredes. A construção foi tão bem feita que ainda cumpre sua função, séculos depois.
É uma bênção no calor. Sentei-me na escada de entrada e descansei em sua sombra fresca, reconfortante. Fiquei hipnotizado com as luzes, com a água e os reflexos. Delirando mais um pouco na companhia de fantasmas. Imaginando a fila de viajantes esperando do lado de fora para encher seus cantis antes de seguir viagem para Samarkand. Vendo os andarilhos do deserto, chegando do nada, quase mortos de sede, se atirando nas águas e sendo chutados para fora.
Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.