Saturday 25 March 2023

Novas Fronteiras (XV) - Bukhara, Uzbequistão



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17/8/2018

Uma vasta necrópole devorada pelo sol da tarde.

As fachadas dos mausoléus com cor de areia ao meu redor têm detalhes feitos com azulejos azuis desgastados pelo tempo. Têm portas de madeira ricamente esculpidas. Algumas delas são tão velhas que é difícil acreditar que ainda não tenham virado pó. Em cada canto, há uma dessas portas ou uma passagem, um corredor. É como um labirinto.

Não via ninguém por perto naquele momento. O sol estava diretamente à frente, num céu totalmente sem nuvens. De um lado e do outro, só os mausoléus ocres, as portas, as passagens, os azulejos azuis.

Completamente de surpresa, fui ultrapassado por uma senhora em silêncio. À medida que ela se distanciava, eu focava o olhar no véu vermelho cobrindo sua cabeça. Atravessou meu campo de visão como um cometa, tirei uma foto e então ela desapareceu em uma das misteriosas passagens.

Uma tumba com azulejos em forma de estrela. Segui um corredor ao lado dela. Então achei sepulcros quase demolidos pelos elementos, cujas paredes um dia foram tesouros, mosaicos belíssimos, e, hoje, estão peladas, só ficaram nelas as marcas de onde estavam os azulejos.

Um pingo de suor caiu de minha testa. Eram duas da tarde. Vespas passaram voando, me assustando, perto da minha orelha, saíram de um corredor, entraram por uma fresta em uma porta. Estou traumatizado com vespas, mas curioso demais.

Empurrei a porta. Entrei. Era um pequeno labirinto dentro do labirinto.

Este complexo, incluindo os mausoléus e um grande prédio, mesquita e khanaka, chama-se Char Bakr. Fica na periferia de Bukhara. Enquanto legiões de turistas se divertem na Labi-Haus, ao chegar por aqui não vi nenhum visitante de terras distantes. Difícil acreditar, sendo este um lugar incrível. Um dos motivos pode ser a localização. Sem ter um guia, encontrar o Char Bakr é uma aventura, ainda mais de transporte público, como foi meu caso.

Comecei o dia preguiçosamente. Acordei mais tarde do que o habitual e fui para um dos grandes mercados modernos de Bukhara. Como todos os outros, um local barulhento, em boa parte a céu aberto, sujo e, sobretudo, confuso. De lá, eu sabia que havia uma linha de lotação que me levaria até a porta do Char Bakr. Mas onde ficava a parada? Demorei mais de uma hora para descobrir. Perguntei a um sem número de pessoas, ninguém sabia. Parei para comprar uma grande garrafa de água, a bebi quase inteira, tive que procurar um banheiro, voltei a perguntar. Os pontos de lotações ficavam espalhados à beira de uma avenida que cortava o mercado. Nenhuma indicação, nenhum cartaz, apenas amontoados de veículos com suas placas afixadas no lado interno dos para-brisas indicando seus destinos, estacionados ou parando rapidamente para pegar passageiros antes de seguir viagem. Poeira, buzinas. Coletei pequenas pistas das pessoas com quem falei, palpites-esmolas para o pobre do estrangeiro que foram me levando a uma esquina. Lá chegando, me garantiram que eu estava no lugar certo. Mas tive mais meia hora de espera até que uma única lotação aparece. Desembarcaram dela umas dez pessoas com sacolas de compras vazias e embarcaram eu, uma senhora idosa com seu netinho e um casal, claramente nem um pouco turistas. Todos me olharam com muita curiosidade menos o motorista, totalmente indiferente enquanto partia e procurava não nos matar ao enfrentar as manobras suicidas de outras lotações ziguezagueando à sua frente.

Era sexta-feira, e cheguei ao Char Bakr no momento exato em que estavam acabando as orações da hora do almoço. Como previsto, a lotação parou bem à frente do lugar e, ao colocar os pés no chão, vi que estava no meio do caminho de dezenas de homens, apenas homens, todos saindo do complexo. Pareciam estudantes deixando a escola depois de mais um dia de aulas. Me esgueirei entre eles e já estava passando pelos jardins da entrada quando ouvi uma senhora me chamando. Ela estava sentada à uma mesa embaixo do portal de acesso. Eu sequer a tinha visto, só havia enxergado a multidão saindo e o contorno dos prédios do lugar, um pouco ainda distantes de mim. Ela acenou para que me aproximasse e, para minha grande surpresa, me disse que eu tinha que pagar uma entrada. No final das contas, o Char Bakr era, sim, um lugar visitado ocasionalmente por turistas, e ela tinha a missão de tirar deles a contribuição necessária, e justa, para a manutenção do lugar.

A história do Char Bakr tem séculos e ilustra bem a força do sufismo em Bukhara, particularmente o da irmandade Naqshbandi, e sua forte associação com as dinastias que viriam a governar a cidade até a conquista russa no século XIX. O lugar surgiu ao redor do mausoléu de um teólogo do século X, Abu Bakr Ahmad ibn Sad; seus descendentes, responsáveis por manter o mausoléu, eram naqshbandis que caíram nas graças de uma dinastia de monarcas de Bukhara, até o século XX um país independente. Desses reis, eles receberam doações e investimentos com o objetivo evidente de garantir a simpatia e apoio dos sufis que frequentavam o local. Os investimentos se fizeram especialmente vultuosos no século XVI, e os descendentes de Abu Bakr começaram a usar parte do dinheiro que recebiam para diversificar suas fontes de renda, como bons capitalistas (muito antes do termo existir). O investimento em comércio os faria enviar emissários a lugares tão distantes quanto Moscou. Ao mesmo tempo, o embelezamento do Char Bakr não parou, e sua influência como centro de sufismo sobreviveu aos soviéticos e permanece até hoje.

Após atravessar o jardim, cheguei ao pátio à frente da mesquita e khanaka, um único conjunto unido, o centro do lugar, de onde partiam caminhos levando aos mágicos jazigos decorados da necrópole em volta da edificação. Estavam naquele momento recolhendo uma cobertura de lona que havia sido esticada sobre o pátio. Os últimos fiéis ainda saiam da mesquita. A cúpula azul em cima do prédio brilhava com o sol.

Na parede do complexo do lado de fora havia uma pequena porta. Provavelmente por descuido, foi deixada aberta. Entrei. não havia ninguém por perto para me ver ou me impedir. Ela me levou a um estreito túnel escuro com uma íngreme escada de pedra. Subi e encontrei, no primeiro andar, uma série de quartos, usados, imaginei, por peregrinos sufis. Estavam vazios, sem camas ou móveis, sendo restaurados. Pó de gesso pelos cantos, tinta, um cheiro de construção, mas nenhum pintor ou pedreiro por perto. A escada continuava mais um andar.

De repente, estava no teto da mesquita. Estava justo ao lado da grande cúpula que vi de longe, a cúpula azul, azul como a da madrassa Mir-i-Arab, o domo dos sonhos. Mas, neste, eu consegui tocar. Até abraçar. E inspecionar com cuidado os dizerem em árabe de sua decoração, as linhas esguias, enfeitiçadas, lindas.

O azul da cúpula se misturava com o azul do céu, tinham o mesmo tom. Minha mão em dado momento estava entre os dois. Não era possível saber onde terminava o humano e começava o divino.

Passei meia hora naquele teto, tirando fotos, sentindo a textura dos azulejos e admirando a vista do Char Bakr, dos mausoléus e das ruelas entre eles.

Após descer, novamente sem ser interpelado por ninguém, segui em direção à necrópole em si e foi então que cruzei com a senhora-cometa com o véu vermelho e a vespa que me tentou a empurrar uma porta. O labirinto atrás dela combinava salas cobertas, partes ao ar livre, corredores e passagens, portais como os de pequenas madrassas e mais tumbas, perdidas em cada canto. Havia alguns poucos escritos em alfabeto árabe nas sepulturas.

Encontrei um canto muito especial, nem sei como; era uma pequena sala após um pórtico. Uma minimesquita. Lá dentro, no coberto, foram colocados alguns acolchoados no chão. Tinha vista para um pequeno pátio. Um local aconchegante, que parecia represar uma brisa fresca, oferecendo grande contraste ao calor brutal da tarde. Sentei-me. Passarinhos pousando nos galhos das árvores vizinhas, fazendo algazarra, e logo só o vento leve. Rapidamente a excitação de explorar o Char Bakr deu lugar a um imenso relaxamento.

Mais vinte minutos.

Voltei ao labirinto e uns minutos depois estava no mesmo ponto onde o "cometa vermelho" passou por mim. Parei. Vi novamente algo vermelho, estava se aproximando.

Era uma turista. Acho que ficou tão espantada de me ver quanto eu. Foi se acercando devagar, sem falar nada. Eu também não falei nada. Quando ela estava a um metro de mim, perguntei em inglês se estava perdida. Deu uma risada. "Ia te perguntar a mesma coisa", rebateu.

Era uma garota alemã de uns 20 anos. O vermelho era seu cabelo, ruivo, e do tom da pele do rosto, tostado pelo sol. Calça de tecido leve, solta no corpo. Uma camiseta simples. Uma bolsa de pano a tiracolo, um chapéu de abas curtas, azul bem escuro. Só perguntaria seu nome, ML, muito depois de submetê-la, coitada, a um verdadeiro interrogatório. Ela disse que adorava história, que tinha ouvido falar do Char Bakr, que estava explorando sem destino o Uzbequistão sem data para sair. Sem falar russo, sem falar uzbeque. Gastava o pouco dinheiro que tinha indo para as cidades principais, sem reservar hotéis, sem saber o local onde passaria cada noite. Era uma espécie de hippie, um eco dos anos 1960, quando o Afeganistão, aqui perto, era ainda parte de um conhecido roteiro para essa tribo. Um roteiro despojado e livre, de pouco dinheiro, de natureza e de paz. O Uzbequistão então estava fechado pela URSS, o Afeganistão, aberto. Hoje, é o oposto, com o Afeganistão fechado pelo caos e pela violência.

Conversando, exploramos juntos os cantos que ainda não tínhamos visto do Char Bakr. Tiramos fotos mútuas e a convidei para dividir o transporte para Bukhara, onde ela estava hospedada num albergue. ML recusou; queria ficar até o anoitecer no Char Bakr. Me disse, porém, que certamente iríamos nos encontrar — meu roteiro e o dela seriam exatamente o mesmo por pelo menos mais uma semana: Khiva, Mar de Aral. Aperto de mãos e acenos.

De volta ao local onde a lotação me deixou, fiquei refletindo sobre o desafio que seria para aquela menina conseguir voltar a seu hotel. Não havia nenhuma lotação esperando do lado de fora do Char Bakr. Não havia sequer carros passando na rua: foram-se três minutos até aparecer o primeiro veículo, uma perua em velocidade que não parou, nem acho que era uma lotação. Não era de se surpreender, já que o Char Bakr estava vazio naquele momento, descontando os dois turistas, eu e ML, e alguns trabalhadores fazendo obras no complexo. Certamente não havia demanda de transporte do complexo para a cidade, visto que era o fim da tarde de sexta-feira, dia santo e de folga para os muçulmanos. E não havia alternativa para mim a não ser esperar que alguma lotação aparecesse. Mas, se agora já parecia improvável que eu encontrasse transporte facilmente, o que se poderia esperar quando escurecesse? Boa sorte à alemã. Pelo menos, e isso é um fato sobre a Ásia Central, mulheres viajando sozinhas podem ficar sossegadas. A criminalidade é baixíssima, e as turistas são em geral respeitadas. Segura, ML estaria. Mas quando chegaria à sua pousada? Eis a questão.

Uns moradores vizinhos do Char Bakr, um senhor e sua esposa, de repente abriram a garagem de sua casa e tiraram de lá um furgão. Me vendo parado no meio da rua, entenderam que eu estava esperando por transporte e, sem sequer eu pedir, ofereceram de me dar uma carona. Estavam indo para o centro de Bukhara. Agradeci efusivamente.

O caminho passou voando. Conversamos com muita alegria. Depois de me perguntar o de praxe (de onde eu era, para onde ia, o que fazia), o simpático casal começou a fazer piadas ("Viajando sozinho? Mas ainda não arranjou uma esposa por aqui?"), e eu fui devolvendo com mais piadas. Demos muitas risadas.

"Aqui está! A cidade velha! A grande cidade velha! Nossa Bukhara" disse o simpático senhor, que aparentava ter 50 anos, quando nos aproximávamos da Labi-Haus. Naquele momento, com aquela declaração, senti que o humor leve e hospitaleiro cedia lugar para algo mais sombrio. Seu sorriso virou um meio sorriso. Mudou o tom de sua voz. No seu semblante havia uma mistura de orgulho, mas, ao mesmo tempo, sarcasmo. Como se ele considerasse que a cidade velha era, de fato, uma joia, uma maravilha, mas que, infelizmente, ela sozinha não seria suficiente para trazer-lhe felicidade. Era um lugar lindo, era parte de sua vida, mas... e daí? Que a aproveitassem os turistas como eu, os emissários de sonhos que nunca iriam se concretizar para ele, imerso na brutalidade do dia a dia que vivia, saindo para trabalhar em plena sexta-feira. Não perguntei o que passava por sua cabeça. Mas, quando eu estava me despedindo, prestes a sair do furgão, seu sorriso voltou a sua plenitude. Só senti dele carinho.

"Aqui, um presente para você", me surpreendeu. Estava me oferecendo um melão. Um melão imenso, do tamanho de uma melancia. "Leva! Presente!" Como em ocasiões anteriores em que vivenciei a hospitalidade centro-asiática, fiquei boquiaberto. Mas tive que declinar. O melão estava com aparência maravilhosa, certamente doce, bem doce, como todos os melões da Ásia Central. Mas não havia jeito de levá-lo em minha mochila. "Tá bom, mas, se não pode levar o melão, leve ao menos um non". O pão circular tinha uns 30 centímetros de diâmetro. Esse, não consegui encontrar uma boa desculpa para recusar. Iria dar para enganar a fome nas horas vazias rumo ao oeste do Uzbequistão por pelo menos uns três dias.

Agradeci, desci do carro. Fecharam a porta, acenei adeus. A mulher continuou acenando de volta, visível através da janela de trás do furgão, até o veículo desaparecer em uma esquina.

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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