O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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21/9/2012
No caminho de Istaravshan para Dushanbe atravesso pela primeira vez as famosas montanhas tajiques.
O carro leva eu, dois senhores de uns 60 anos, um deles com o típico chapéu preto com bordados brancos, uzbeque-tajique, e uma mulher com um bebezinho de uns seis meses. Mal embarco, com a brisa fria das seis da manhã, desmaio, pegando num sono intenso. Apesar de ter ficado 10h na cama, descobri só indo dormir que o colchão da que escolhi, como o da outra cama do quarto, estava deformado. No meu caso, torto para a direita. A noite inteira lutei para não cair no vão da direita entre a cama e a parede com a tinta descascando. Ainda assim, passei a noite suspirando de alívio, lembrando das noites que passei em outros hotéis desde que cheguei ao Tajiquistão. Também parece que estou um pouco melhor da gripe. De manhã, minha urina ainda estava escura, mas acho que meu fígado deve estar vencendo o que quer que seja eu comi de venenoso para ele. Minha garganta ainda está me matando. Por outro lado, pelo menos eu não tenho mais febre.
Quando acordo, estou numa região de picos altos, estrada por asfaltar e muita, muita poeira. As montanhas, como sempre, completamente nuas. Pedra pura. O carrinho Lada, valente, sobe pela estrada sinuosa entre os paredões de pedra. Curva após curva, vence os buracos e ultrapassa uma dezena ou mais de caminhões com placas... da China, o que me deixa bastante curioso.
Poeira, poeira cinza, cascalho espirrando e batendo na lataria. As janelas do carro estão bem fechadas, mas, apesar do Sol glorioso lá fora, nem penso em tirar meu casaco de lã. Ainda está frio. E o ar é sequíssimo. De vez em quando, minha tosse vem como um dragão, expelindo como fogo essa secura de meus pulmões.
O carro sobe, sobe, sobe. Devagar, encontrando seu caminho no universo sufocante de pó de terra. Segue até um ponto em que os cumes dos colossos de rocha calcária ao nosso redor parecem estar na mesma altura que as rodas do pequeno Lada. Uma ou outra montanha no meu campo visual ainda tem neve do inverno passado. Vejo então uma placa ao lado da estrada: estou no passo Shakhristan, a 3.378 metros, o meu novo recorde pessoal de altitude.
Depois o carro começa a descer, descer, descer. Avisto um vale profundo no caminho ziguezagueante. O motorista vai milimetricamente escapando dos precipícios. Lá embaixo, encontramos a razão de tantos caminhões chineses. A China está construindo um túnel que vai permitir aos motoristas evitar essa maravilhosa aventura do passo Shakhristan. Maravilhosa, na verdade, para mim. Imagino o suplício que é para o motorista e para os passageiros que têm que regularmente enfrentar essa poeira e esse medo de alturas.
É interessante perceber a presença chinesa na Ásia Central por meio de grandes projetos de infraestrutura como este, enquanto que os russos, referência desde os tempos dos czares, parecem não estar envolvidos nesse tipo de iniciativa na região. O que leva à reflexão de como Rússia e China estão travando um "novo Grande Jogo" - uma "disputa" pela supremacia política e econômica na Ásia Central.
Essa é provavelmente a grande discussão no campo da geopolítica quando se analisa, atualmente, os países da Ásia Central. Inúmeros acadêmicos já dedicaram seus anos de mestrado e doutorado em entender se as duas potências - que a primeira vista mantêm relações cordiais e cooperativas em oposição aos interesses de potencias ocidentais na Ásia - estão na verdade travando um conflito velado nos cinco países da ex-União Soviética no coração do continente. Uma análise superficial indica que não. Na verdade, o que transparece é que China e Rússia agem de forma coordenada e não antagônica, defendendo seus interesses, e que não haverá tensão enquanto esses interesses não se chocarem.
Para a China, o mais importante tem sido o desenvolvimento econômico. Trazer suas mercadorias para os mercados europeus com mais velocidade beneficia o país. Ao mesmo tempo, desenvolver economicamente seus vizinhos do oeste tem importância porque uma das grandes preocupações em Pequim é a animosidade em sua região mais ocidental, Xinjiang, historicamente mais ligada ao Turquestão russo do que ao resto da China. É lá que sobrevive, nas sombras, um movimento que aspira criar um estado independente para o povo uigur, que habita a região há séculos, é muçulmano e fala uma língua parecida com o uzbeque. Manter a China unificada é um dos grandes vetores da política externa chinesa (afetado temas como Taiwan e Tibete também). Dessa forma, o governo de Pequim tem procurado desenvolver Xinjiang, e trazer mais prosperidade e riqueza aos vizinhos da província é parte da equação para tentar diminuir a força dos separatistas. A lógica é que a prosperidade pode dissuadir a violência. Além disso, a China quer contar com os países vizinhos para caçar os extremistas que venham a montar bases além da fronteira. Tirando isso, porém, as ambições chinesas de influência política na Ásia Central (na figura clássica de "zonas de influência", adotando modelos institucionais e de desenvolvimento político ditados por Pequim) parecem não existir. Isso é consistente com o outro grande vetor da política externa chinesa, a não-interferência em assuntos internos de outros países.
Para a Rússia, porém, um tema importante é justamente esse. Nos últimos anos, tanto o presidente Vladimir Putin quanto seu antecessor, Dmitry Medveded, indicaram em declarações públicas que um dos vetores da Federação Russa nas relações externas seria manter suas "esferas de influência privilegiada" no exterior, além de defender os interesses das comunidades russas vivendo nessas esferas. A Rússia persegue o alinhamento dos países nessas esferas, quer que eles sejam aliados fieis em quaisquer temas que surjam na arena internacional. Em contrapartida, a Rússia oferece incentivos econômicos diferentes dos que a China oferece. O grande projeto russo na Ásia Central é a criação da "União Econômica Euroasiática", uma organização que ambiciona ser semelhante à União Europeia, com uma união alfandegária. Mas há outras regalias à vista: por causa do passado soviético, a Rússia ainda é um imã para imigrantes econômicos de todos os países da região - muitos ainda falam russo. Milhares de centro-asiáticos ainda se mudam todos os anos para a Rússia para tentar a vida, e isso empresta a Moscou um grande poder sobre esses países. As remessas anuais dos imigrantes são, no caso do Tajiquistão, provavelmente a maior fonte de divisas do país. Moscou pode sempre impor restrições a esses imigrantes para submeter os países da região a seus interesses.
Assim, é claro que China e Rússia têm interesses diferentes, mas que não se chocam na região. Entretanto, isso pode mudar. Enquanto que o projeto da China é basicamente fundamentado na economia globalizada - grandes rotas comerciais, integração com o mundo Ocidental - no caso da Rússia a União Euroasiática é um projeto que tende a fomentar o desenvolvimento econômico apenas entre os próprios membros. Enquanto que Moscou busca um modelo em que se coloca como o centro e referência para instituições, a China foca no econômico, mas nada impede que no futuro venha a mudar isso. Mas é improvável nesse momento.
Comendo pelas bordas, outros povos também ambicionam, em menor escala, abocanhar um pouco de influência e apoio geopolítico na Ásia Central. É o caso dos iranianos, irmãos de língua e de história dos tajiques, que usam uma estratégia de investimento em infraestrutura, como os chineses, para ampliar seu soft power. Isso ficou claro a seguir na minha viagem.
Enquanto estou vendo pela minha janela os chineses (homens de capacete de operário, muito sérios e compenetrados, estudando rolos de papel), eu volto a cair no sono. Quando acordo, sei lá quanto tempo depois, estou ainda nas montanhas. Desta vez, elas não são totalmente peladas, há algumas árvores, e a altitude parece ser bem menor. Aqui entramos em um túnel construído por iranianos. Em teoria, me dizem, está terminado. Não parece. É assustador - longo, com muitos trechos sem nenhuma iluminação, buracos dolorosos no pavimento, cheios de água, com diâmetro e profundidade para destruir qualquer suspensão de carro e as costas dos passageiros. Enfrentá-lo durou uns longos cinco ou dez minutos e foi um verdadeiro rali. Fico pensando se os iranianos não esqueceram de alguma coisa na hora do projeto. Uma porcaria. Se alguém precisar parar por um problema mecânico no meio deste túnel, está completamente perdido. Se isso é de fato uma tentativa dos iranianos de seduzir os tajiques, não sei até que ponto pode ser bem-sucedida. Com um túnel desses, quem sabe tivesse sido melhor manter a estrada anterior, por cima...
Após o sofrimento, o Lada segue paralelo a um lindo rio que surge, o Varzob. Inúmeras mansões no vale, algumas até com piscina. Ao redor, as montanhas, as lindas árvores. O rio vai cheio de corredeiras, fazendo bolhas e espuma branca, molduras para a água verde.
E então, Dushanbe chega de surpresa. Uma avenida, paramos e somos descarregados pelo motorista ao lado de um mercado.
Com mapa e bússola, demoro pouco para encontrar o hotel. Quando eu entro nele, percebo que estou em um albergue de mochileiros. Viajantes como eu, europeus, americanos e asiáticos, falando idiomas familiares. Internet de graça, banheiros limpos e novos. Camas inteiras e colchões sem deformidades, ambientes luminosos, sem poeira ou buracos nas paredes, sorrisos, nenhum móvel decrépito da era soviética, mapas em quadros na recepção, folhetos em inglês.
Conforto de verdade, no estilo dos albergues europeus. Nossa. Parece que faz tanto tempo.
* * *
Como é cedo, o tempo está ótimo, estou me sentindo bem e meu entusiasmo foi renovado pelo hotel, depois do check-in vou para o museu mais importante de Dushanbe, o Museu Nacional de Antiguidades. Achei interessante saber mais, logo de cara, sobre a história milenar deste lugar. Logo descubro que estou ao lado de uma das principais avenidas da cidade, a Rudaki, que conduz diretamente ao museu. Desço ela a pé, com prazer, passando perto do nababesco palácio presidencial, que prometo ver direito amanhã.
É um pouco longe. Quando chego finalmente ao museu, antes de mais nada vou ao banheiro. Apesar de eu sentir muita vontade de urinar, o que vejo sair de mim são poucas gotas. Desta vez, bem vermelhas.
Entro em parafuso. Piro. Me sinto bem, sem dores. Minha garganta continua ruim. Mas sangue na urina não é sintoma de algo que me atacou o fígado nem de uma gripe. Jamais tive isso. Que diabos está acontecendo comigo? O que pode acontecer comigo? O que me passa pela cabeça: estou absolutamente sozinho. Não falo a língua daqui. Não tenho nenhum consulado por perto, nem embaixada. Não conheço a cidade. Estou muito, muito assustado. Fechos os olhos e só vejo o sangue saindo de mim.
Saio imediatamente do museu. Me enfio num internet-café, o primeiro que encontro. Escrevo um email para minha embaixada mais próxima - é a milhares de quilômetros daqui, em Astana, capital do Cazaquistão. Recebo uma resposta imediata de alguém, para meu alívio. A funcionária me acalma e diz que vai me mandar a sugestão de uma clínica para que eu possa visitar, uma clínica onde se fale inglês.
E manda. Vou direto para lá. Marco uma consulta para amanhã de manhã. Não pode ser nada grave, repito comigo mesmo. Não pode ser, pois estou bem, aliás estou louco para ver Dushanbe direito. Contudo, minha cabeça está criando todo tipo de cenário.
Volto rapidamente ao hotel, para beber muita água, me aquecer. E torcer para que minha urina não seja o que irá me impedir de realizar meu sonho de chegar ao Planalto de Pamir.
Dushanbe, 21/9, 21h
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