Tuesday, 28 March 2023

Novas Fronteiras (XVI) - Bukhara, Uzbequistão



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O dia havia começado em busca de um tesouro perdido de Ulugh Bek, neto de Tamerlão.

Meu destino matutino era uma cidade perto de Bukhara, a cerca de 40 km dela, certamente não tão próxima quanto o local onde encontrei o Char Bakr. Para chegar, era necessário enfrentar estrada, novamente a estrada que eu tinha usado para vir de Navoi. A cidade se chamava Gidjuvon. De novo, absolutamente nenhuma palavra no meu guia sobre ela. A única coisa que eu sabia sobre Gidjuvon, a partir de pesquisas na internet, era que lá ficava a terceira madrassa construída por Ulugh Bek. Duas, quase todos os turistas que vêm ao Uzbequistão conhecem. A mais conhecida é uma das três do complexo do Registan, em Samarkand. A segunda, fica em Bukhara, entre a antiga fortaleza do emir e a Labi-Haus. Sobre esta terceira em Gidjuvon, eu nada havia lido a respeito, o que me estranhava bastante — como um importante resquício arquitetônico do período timurida pode não ser um local de visitação obrigatória para todos os turistas? Estaria o local destruído? Seria Gidjuvon um local perigoso, fora de alcance para estrangeiros?

Empolgante explorar. Mas a empolgação, no início, deu lugar à irritação. Por culpa minha.

As lotações para Gidjuvon saiam de um mercado chamado Karvon, um lugar imenso na periferia da cidade e de onde saiam quase todos os transportes rodoviários para outras cidades. Ir a pé do centro velho de Bukhara era impraticável e não quis pegar um táxi porque havia muitos ônibus circulando por perto, passando pelo centro histórico, com destino ao mercado. Peguei um deles num ponto ao lado da Labi-Haus. Na placa na frente do ônibus estava escrito "mercado Karvon". Sentei e relaxei. Nem me ocorreu checar se era realmente para lá que o coletivo se dirigia. É o tipo de coisa que é bem importante fazer na Ásia Central.

De fato, o ônibus ia para o Karvon. Mas na volta. Quando subi, ele se dirigia ao outro ponto final da linha. A placa no ônibus indicava o nome do mercado, mas esse era o nome da linha, que não mudava dependendo do destino. Como eu não sabia o caminho que o ônibus faria até o mercado, e como, além disso, eu não tinha pressa e estava com preguiça de ficar perguntando aos outros passageiros ou mesmo ao motorista, sentei-me num banco ao fundo e me deixei levar, olhando a janela, vendo o tempo passar. Meia hora, quarenta minutos, o ônibus foi se esgueirando por ruas labirínticas em uma zona rural. Ruas de terra, pequenas chácaras, casinhas humildes. Finalmente, o ônibus parou, chegando no destino final, e o motorista veio me perguntar por que eu não descia. Expliquei, ele riu e disse para eu esperar. Mais meia hora, o ônibus partiu de novo, mais quarenta minutos, finalmente eu estava no mercado. O motorista também me disse que, em linha reta, do centro de Bukhara, teria sido uma jornada de dez minutos.

No mercado, realmente grande, mais complicação. Nenhuma indicação sobre onde paravam as lotações para Gidjuvon (de novo, como no caso do mistério sobre o ponto de parada das lotações para o Char Bakr, tudo parecia ser feito de propósito para os turistas não usarem o meio mais barato para chegar aos locais de interesse). Após muito perguntar, encontrei a parada do outro lado da rua e nem sombra de turistas por perto. Ao subir na van, tive a já familiar sensação de ser visto como um alienígena pelos outros passageiros.

A jornada foi rápida, a toda velocidade. Fui desembarcado em outro mercado sem nada de mais, e o motorista, desconcertado com meu interesse pela madrassa de Ulugh Bek, apenas indicou por onde eu deveria ir caminhando, descendo uma avenida, num trajeto de uns cinco-dez minutos. Algumas lojas na avenida, fechadas para clientes, estavam sendo lavadas. As pessoas fazendo a faxina paravam para me observar passar, falando algo em uzbeque, imagino que se perguntando que diabos eu poderia estar fazendo ali.

Mais para a frente, no meu caminho, mas ainda a uns 100 metros de mim, na mesma calçada, vejo um grupo de uns três homens conversando em frente de uma loja. Um deles estava bem bêbado. Olhos vermelhos, pele suada, roupa suja. O sujeito me viu e imediatamente começou a gritar algo em russo em minha direção, mas sem sair do lugar. Bem hostil. "O que você está fazendo? O que você está fazendo aqui? Fora, fora daqui, aqui não é lugar para você."

Na minha cabeça, surgiram as memórias arrepiantes do incidente em Taraz, no Cazaquistão, em 2012, quando fui ameaçado e perseguido por um sujeito claramente embriagado e tive que implorar ajuda para alguém me esconder.

Olhando fixamente para o chão, segui em frente, ignorando o bebum, rezando em silêncio para que ele não me perseguisse e a madrassa chegasse. Calculei que aquela era apenas uma oportunidade para o sujeito alcoolizado exibir sua masculinidade aos outros colegas.

Os gritos eram altos. Passei ao lado de onde estavam. Senti o sujeito dar uns dois passos em minha direção. Parecia um cachorro latindo.

Não olhei para ele.

Ele continuou berrando. A voz foi ficando mais distante. Desapareceu quando, de repente, à minha esquerda, do outro lado da rua, surgiu um parque e, no fundo dele, não muito distante... uma cúpula azul.

A madrassa estava lá. Claramente, uma madrassa antiga, com a aparência, sim, semelhante às das madrassas de Ulugh Bek em Bukhara e Samarkand. Mas a cúpula azul não era da madrassa. O domo ficava sobre um telhado erguido imediatamente à frente do prédio, no alto de dez colunas de madeira esculpida, cobrindo um mausoléu marcado por uma tumba de mármore e inscrições em árabe estilizado. O conjunto estava sendo reformado, por isso estava cercado por tapumes de plástico branco, tonando impossível se aproximar para ver melhor a tumba. Havia muita gente por perto; um bom número delas estava parado em frente ao mausoléu, isolada pela barreira branca, rezando. Umas poucas pareciam entrar na madrassa, mas ela não era, claramente, a principal atração. Eu não tinha a menor ideia do que estava vendo do lado de fora do prédio. Felizmente, ainda no parque, havia uma placa em inglês e russo, colocada pelas autoridades para explicar as obras. Abdulkhalid Gidjuvoni (1103-1179?) era o ocupante do mausoléu.

O oásis de Bukhara, que inclui várias cidades, é conhecido por sua longa associação com as irmandades sufis, como ficou claro já na visita ao Char Bakr. A mais conhecida das irmandades surgidas por aqui é a influente Naqshbandi, cujo centro é um outro mausoléu, o de seu fundador Bahauddin — também não muito longe da Labi-Haus, mas longe o suficiente para estimular a preguiça dos turistas. Gidjuvoni foi o fundador de outra irmandade sufi, chamada Khojagan, que antecedeu e influenciou a Naqshbandi. Nascido na era de domínio dos turcos seljúcidas, que controlaram boa parte da Ásia Central a partir de sua capital em Merv por volta do século X, Gidjuvoni seguiu o caminho de outros sábios islâmicos da época. Viajou pelos territórios do império, chegou a viver na Síria, e, durante suas andanças, conquistou um grande número de seguidores para sua ordem sufi. Tamanha era sua fama que, após sua morte, seu local de enterro, na sua cidade natal, passou a ser um ponto de peregrinação. E os timuridas eram conhecidos patronos de santos sufis desde os tempos do próprio Tamerlão, que iniciara a construção do gigantesco mausoléu para Khoja Ahmed Yassawi na cidade cazaque de Turkistan, visitada por mim em 2012. No caso de Ulugh Bek, seu interesse pelas ciências o tornou um alvo fácil dos radicais religiosos da sua própria corte, que conspiravam contra ele. A construção da madrassa em Gidjuvon, em frente ao mausoléu, se deu entre 1432 e 1433. Com ela, como no caso das outras que construiu, o neto de Tamerlão esperava apaziguar a febre radical dos que achavam que ele não se interessava por religião.

Outro que procurou explorar a popularidade de Abdulkhalid Gidjuvoni, muito mais tempo depois da morte do líder sufi, foi Islam Karimov. O agora "santo" primeiro presidente do Uzbequistão visitou Gidjuvon em 2002, ano em que a cidade comemorou seus supostos 900 anos de existência. Para marcar a visita, a grande reforma de todo o complexo foi ordenada. A cobertura com colunas de madeira e a cúpula azul foram contruídos e elementos que haviam sido enterrados durante os anos soviéticos, como uma pequena piscina ao lado do mausoléu, foram recuperados.

A madrassa, simplesmente chamada de Madrassa Ulugh Bek, é pequena se comparada às erguidas pelo neto de Tamerlão em Bukhara e Samarkand, mas igualmente com o principal detalhe característico das outras: os mosaicos simples, feitos com azulejos em dois tons de azul. O pórtico é delicadamente trabalhado, mostrando o que aparenta ser ramos de plantas se entrelaçando, fazendo nós elegantes, desabrochando flores como mandalas.

Teorizei o motivo da raiva da qual fui alvo no caminho para cá. Para os mais puritanos, é uma alegria que este local seja pouco conhecido e assim pouco visitado pelos turistas estrangeiros e não muçulmanos. Afinal, diferentemente das outras madrassas de Ulugh Bek, a de Gidjuvon permanece recebendo serviços religiosos correntemente, grupos de oração, como uma mesquita. O local aliás faz parte de um roteiro religioso conhecido muito além das fronteiras uzbeques, um pequeno hajj que atrai peregrinos de longe, o chamado "Circuito dos Sete Pirs (ou santos sufis)". São sete locais na região de Bukhara onde estão os memoriais de importantes sábios sufis, fundadores de ordens. O mais importante dele é Bahauddin Naqshbandi. Em cada um desses locais, o memorial ou mausoléu é circundado por madrassas, khanakas e cemitérios, sempre com lindas arquiteturas, afirmando o poder econômico dessas ordens.

Na madrassa Ulugh Bek, logo na entrada, os fiéis são conduzidos a uma sala onde um mulá conduz orações periodicamente à medida que chegam mais e mais visitantes em busca de uma bênção de Abdulkhalid Gidjuvoni. Novamente, notei terem estranhado minha presença, mas, para minha felicidade, em nenhum momento me senti intimidado como ocorreu na rua, com o bêbado e seus gritos. Pelo contrário. Eu estava tirando fotos do mausoléu e da madrassa, a uma boa distância, procurando não incomodar nenhuma das pessoas que estava rezando em frente ao mausoléu. Naquele momento, percebi um grupo de quatro senhoras caminhando mais ou menos na minha direção. Todas com seus véus coloridos e vestidos, como reza a tradição centro-asiática. Continuei tirando minhas fotos enquanto se aproximavam. Pensei que pudessem reclamar, incomodadas com os meus cliques que, então, claramente, eram delas com o céu azul intenso e o lindo complexo ao fundo. Não reclamaram. Desviaram um pouco da minha direção, mas acenando para a foto, sorrindo para mim, como um grupo de adolescentes envaidecidas pelo flerte bobo de um desconhecido. Acenaram mais, sorriram mais. Agradeci com um longo sorriso e acenos.

Que lindas.

Tudo lindo.

Na santa Gidjuvon, como no Char Bakr, vi mais uma vez o coração pulsante do Uzbequistão, tão machucado para estimular os turistas a gastarem seu dinheiro. Tão desfigurado por lojas, shoppings, ônibus de excursão. O tesouro não está perdido, está escondido, basta procurar um pouco.

Khiva, 20h, 18/8

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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3 comments:

  1. No Recife também é assim, por exemplo: o CDU Boa Viagem tem sempre esse nome. Precisa perguntar pra que lado tá indo, ter bússola, olhar no mapa, ou conhecer bem a cidade;)

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