Sunday, 17 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XXIII): Isfara

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17/9/2012

Estou em um ônibus velho. Ao lado da estrada esburacada, um vale, um lindo vale. Ao lado da estrada e do vale, montanhas, completamente peladas, lembram montes de terra. Em dado momento, a estrada se aproxima delas, e se vê uma superfície com muitas pedras e alguma grama seca. O vale é extremamente fértil, e por isso me chama a atenção tamanho contraste ao ver a terra ocre que surge nas alturas. Perto da estrada há plantações, milho, algodão, árvores frutíferas, algumas vezes tudo separado, algumas vezes tudo misturado. A cada 100 metros de caminho, vejo pela janela algo diferente plantado. Lá embaixo do vale, o rio, com força, vindo de algum ponto da serra, praticamente invisível atrás do verde. O Sol ainda está alto, são 15h30. Cá e lá, mulheres trabalham a terra com enxadas, revolvem o duro solo. Crianças conduzem as vacas. Meu ônibus quase atropela uma ovelha que cismou em atravessar o caminho. À beira da estrada, em vários lugares, há banquinhas com potes de vidro grandes, transparentes, que em princípio achei estarem cheios de mel. Depois descobri ao ver uma placa. Na verdade é gasolina, vendida a granel nesta região pobre e remota do misterioso Tajiquistão.

Me sinto distante de tudo de uma forma que nunca me senti antes.

O ônibus chega a Chorku, um vila quem nem aparece nos mapas a aproximadamente 40 minutos de Isfara, em si já uma cidadezinha isolada neste canto perdido em que três países se misturam - além do Tajiquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão. Isfara, onde tive que parar para pegar este ônibus para Chorku, é uma cidade majoritariamente uzbeque no pouco conhecido lado tajique do Vale de Fergana. A fronteira é por aqui um verdeiro inferno, uma maldição. Não só o território do Uzbequistão fica a poucos quilômetros de onde estou como também o do Quirguistão. Vilarejos irmãos, povos irmãos, são brutalmente separados pela burocracia irracional. Assim, há uzbeques vivendo aqui e tajiques vivendo do outro lado da fronteira. Quirguizes aqui, com seus lindos chapéus ak kalpak, e, lá no Quirguistão, uzbeques e tajiques.

Essa perversa situação, edificada por Stálin a partir de 1924 (num dos mais claros exemplos de sua estratégia de "dividir para conquistar" os povos de seu vasto território), evidentemente gera tensão. Embora Chorku e Isfara fiquem ligados fisicamente ao resto do Tajiquistão, há enclaves que pertencem oficialmente a um país dentro do outro. Ilhas de território completamente cercadas pelo território do país vizinho. Não que isso não exista em outras regiões do mundo, mas no Vale de Fergana essas ilhas são especialmente inconcebíveis. Para os povos daqui, foram séculos e séculos e séculos de união. Antes dos soviéticos, não existia na cabeça deles a identidade nacional - a ideia de ser uzbeque ou tajique ou quirguiz. Eram todos amigos, vizinhos, falando línguas diferentes às vezes, às vezes um pouco fisicamente diferentes, mas todos iguais, cumprindo suas funções na sociedade. Os mapas desenhado por Stálin criaram as repúblicas seguindo o aconselhamento de elites locais, que muitas vezes têm seus interesses mesquinhos, e tentando se basear nas línguas faladas em cada lugar. Nesta região de curvas e montanhas, era possível encontrar tajiques vivendo em um lado, quirguizes em um outro, uzbeques no meio. O que fazer? Qualquer divisão seria traumática. E foi.

Há três enclaves principais - Vorukh, que pertence ao Tajiquistão e fica quase ao lado de Chorku, mas é cercado pela terra do Quirguistão, e Sokh e Shakhimardan, uzbeques, também dentro do território quirguiz. Viajar entre os enclaves e o resto do país a que pertencem durante os tempos soviéticos, evidentemente, nunca foi um problema. Entretanto, com a independência em 1991, os vizinhos (agora com suas identidades nacionais artificialmente desenvolvidas) começaram a colocar para fora suas desconfianças mútuas e caiu por terra a tranquilidade soviética. Necessidade de vistos, papelada, postos de fronteira, guardas, guardas corruptos pedindo subornos, soldados, soldados bêbados, soldados entediados, armas, contrabando, guaritas fechadas, guaritas abertas, feriados de um lado impedindo cruzar a divisa, feriados do outro também fechando tudo. Imagine se você mora deste lado e sua mãe, depois do fim da URSS, ficou morando do outro. Imagine se o mercado mais próximo, aquele que você visitou toda sua vida para comprar pão, fica do outro lado da guarita. Ninguém avisou que a orgulhosa independência traria tanta dor de cabeça. E violência. Já ocorreu algumas vezes que grupos de um lado, movidos por ideais nacionalistas, se apossam de território do outro lado. Tropas dos dois lados são enviadas para a região, segue-se um nervosíssimo impasse, quase sempre resolvido de última hora nas capitais. Até agora, a tensão nunca descambou para uma guerra - provavelmente porque não seria interesse de ninguém em Bishkek ou em Tashkent ou em Dushanbe. Mas, para as criaturas daqui, que têm que amargar um dia a dia de complicações, a tensão vai continuar existindo, terreno fértil para nacionalistas de araque, até que uma solução seja encontrada. O que poderia ser? Troca de territórios entre os países envolvidos? Passe livre nas fronteiras para os moradores locais? Criação de corredores para ligar todos os enclaves ao resto de seus países? Cada solução implica em outros problemas, em resistência.


* * *

Se as fronteiras são artificiais, e as pessoas todas têm os mesmos traços físicos, pelo menos do lado tajique existem algumas diferenças visíveis e impressionantes que têm que ver com a história recente. O país ainda se recupera de anos de uma sangrenta guerra civil (1992-1997) que teve um efeito devastador sobre boa parte da herança infraestrutural soviética. As estradas estão ruins; não há postos de gasolina. Há muita, muita pobreza, mais do que no lado uzbeque, onde pastores e fazendeiros já não são tão abastados. Um regime linha dura como o que há no Uzbequistão, pelo menos neste canto esquecido no Tajiquistão, não está presente.

Tudo isso transformou este lugar em um terreno fértil para o que o Ocidente mais teme - o radicalismo islâmico. Isso realmente eu não esperava ver. Mas não há como esconder. A ironia é que, com as pessoas por aqui tentando se esconder, elas fazem com que esse fenômeno se veja mais claramente. Todas as mulheres em Chorku escondem a cabeça embaixo do véu islâmico, deixando o rosto à mostra. Outras, na verdade poucas, vão além, mas mesmo sendo poucas é algo notável de se ver - é a primeira vez que encontro na Ásia Central mulheres até mesmo com o rosto coberto, só deixando visível os olhos. É um sinal do forte conservadorismo desta região, mas algo que vai muito além do conservadorismo tradicional e entra pelo caminho do que foi trazido para cá por influência estrangeira, acima de tudo saudita, no período pós-independência. Outro sinal - vejo, com mais frequência do que em qualquer lugar em que estive nesta viagem até agora, mulheres sendo transportadas de carro, no banco de trás e inteiramente cobertas com suas vestimentas, pelos seus barbados maridos. Andando na rua, encontro algumas. Sinto-as desconfortáveis ao me verem, eu, claramente um estrangeiro. Fogem rapidamente de mim, me olham como se eu estivesse com alguma doença contagiosa e aceleram o passo. E puxam uma ponta do véu para cobrir o rosto ao cruzar meu passo.

Até mesmo as crianças têm que seguir as rígidas normas de vestimenta. Perambulando, com minha câmera à mão, encontro duas meninas muito sapecas em uma ponte. Me coloco do outro lado da rua - elas estão lá do lado oposto e rapidamente percebem minha presença. Eu me contagio com a alegria delas, rindo alto, olhando para mim. Parecem entender que eu as quero fotografar, e tentam se esconder, mas só de pirraça. Aliás, logo percebem que nem têm onde se esconder, só se saírem correndo. Então, riem mais. Têm uns sete, oito anos. Usam o véu cobrindo todo o cabelo e vestidos longos, coloridos. Acabam decidindo se esconder de mim atrás delas mesmas - usam as mãos para cobrir os olhos brevemente; em um segundo, olhando por entre os dedos, percebem que estou lá ainda e riem mais, como se dissessem que eu as havia descoberto. Brinco junto, tiro fotos. Em um desses momentos em que cobriam o rosto, de repente a câmera capta uma mulher mais velha. Ela passa com roupas negras, pesadas, indo até os pés, e o rosto inteiramente coberto. Apressada, corta minha visão das meninas por um milissegundo e segue pela calçada. Flutua. Não olha para os lados. É como um espectro, um fantasma. As meninas, se escondendo em alegria; a mulher, se escondendo em tristeza.

Senti tanto carinho por aquelas meninas. Quis abraçá-las por serem minhas amigas, por serem tão lindas, tão sorridentes.

Minha impressão é que Chorku é o lugar perfeito para ser o esconderijo de wahhabistas (adeptos de uma corrente ultraconservadora do Islã oriunda da Arábia Saudita, com frequência associada a extremistas) na Ásia Central. Tomado pela miséria, este lugar parece distante de tudo, esquecido pelo Estado. Também miseráveis e esquecidas pelo Estado, as favelas no Rio de Janeiro se transformaram em redutos de traficantes, que estabeleceram um governo paralelo, uma justiça paralela. Aqui, o poder paralelo e insidioso está no Islã radical. Ele dá um caminho para jovens sem futuro no período pós-guerra civil, dá preceitos morais quando tudo foi destruído e se tornou sem esperança, perdido. Um governo ditatorial pode fortalecer isso. O presidente tajique é um bom representante da elite pós-soviética que governa para manter o seu próprio poder, reprimindo vozes que ousam pensar em alternativas (como as propostas pelo Islã moderado e tradicional desta região). Tudo isso impulsiona os Wahhabistas, aumenta o número de pessoas que vê na radicalização a única saída.

Em Chorku, visito o Khazrati-Bobo.

Trata-se de um complexo arquitetônico antigo, escondido em algum ponto entre o vilarejo e as montanhas. O lugar hoje abriga uma mesquita, com um telhado de metal nada atraente cobrindo seu pátio externo. Você chega e não é possível entender por que o complexo é interessante. A mesquita não parece ter, à primeira vista, nada de especial. Mas, cruzando o pátio, atrás de uma porta, entre quatro paredes, como que propositalmente fazendo contraste com tudo, está um mausoléu de madeira do século X, guardando os restos de um santo local.

A penumbra torna mais difícil inspecionar o tesouro, mas aumenta o mistério.

Há sete colunas de madeira, cada uma feita de uma única árvore. Nelas, intricadas inscrições em alfabeto árabe, quase impossíveis de discernir de outros elementos decorativos esculpidos naquela madeira de séculos e séculos. Os detalhes são zoomórficos, animais desconhecidos, pássaros, peixes. São geométricos, são de plantas. Um capricho desgastado, mas lindo.

Embora as pessoas por aqui chamem o santo do mausoléu por vários nomes, o mais curioso é Amir Hamza Sokhibkiron. Significa "mestre na combinação auspiciosa de estrelas". Talvez tenha a ver com a lenda associada ao local. Dizem que o mausoléu foi erguido em apenas uma noite, uma noite mágica.

Descubro logo que a mesquita ao lado não é tão nova assim - é uma adolescente, do século XVIII. Adentro um de seus salões, aparentemente nunca restaurado. Suas paredes têm afrescos coloridos, desbotados pelo tempo, novamente tentando me contar histórias das quais ninguém mais se lembra.

O complexo certamente não é parte principal do circuito turístico centro-asiático. Eu mesmo o descobri por meio de relatos desencontrados que me levaram a uma pesquisa mais aprofundada na internet. Não havia nenhuma citação em meu livro-guia. E, como já me aconteceu antes nesta mesma jornada em Shakhrisabz, o fato de o local ser menos visitado aumenta exponencialmente o carinho dos meus anfitriões por mim. Fui tão bem tratado pelos funcionários da mesquita que senti envergonhado em não ter como retribuir. Os três senhores, com seus chapéus dope pretos, me espantaram dizendo que já receberam muitos visitantes, inclusive gente do Brasil. Tentando conversar com esses "guardiões" do mausoléu, basicamente estávamos trocando sorrisos, mímicas e simpatia. É um povo que te acolhe como você fosse um parente distante e morre de orgulho ao ouvir que alguém vêm de longe, enfrenta os vistos, as fronteiras e as estradas desgastadas para ver seu patrimônio.

Neste caso, o meu contato com os três funcionários me empolgou até mais do que visitar o mágico mausoléu. Em um reduto tão conservador, eles me surpreenderam pela simplicidade, pelo sorriso, pela imensa hospitalidade, oferecendo chá, convidando para adentrar seus domínios em pestanejar. Espero que meus compatriotas que tenham vindo aqui tenham, da mesma forma, abrido os olhos para o que está ao redor. A complicada viagem até Chorku vale menos pelo mausoléu secreto e suas estrelas do que por essas pessoas que você encontra, maravilhosas, encarnando o espírito ancestral da rota da seda.

Espero que a doença wahhabista nunca as faça mudar.


* * *

O Khazrati-Bobo foi de fato a conclusão de um dia longo e difícil. Do meu hotel em Kokand até o tenebroso quarto em Isfara, foram seis vans e ônibus.

A primeira das várias aventuras do dia foi a travessia entre Uzbequistão e Tajiquistão, em um posto de fronteira que eu já sabia que não era muito usado pelos turistas. No transporte até o posto, foram duas vans. Fiquei repetindo aos motoristas que ia para a Tamojnaia (alfândega em russo), como eles mesmos se referiam ao local de passagem entre as duas nações. O motorista da segunda van me deixou, juntamente com outro passageiro, no meio do nada - uma estradinha vazia, com pastos e plantações baixas dos dois lados e Sol a pino. Caminhamos uns 30 metros e encontramos a casa da guarda de fronteira uzbeque e cancelas. O único som que ouvimos na caminhada era o de um burro desesperado, berrando alto em algum lugar em casebres distantes à esquerda.

Esperava neste ponto encontrar, como é normal, algum lugar antes da fronteira para trocar dinheiro - eu levava ainda grossos maços da desvalorizada moeda uzbeque e não tinha nenhum centavo de somani, a moeda tajique. Mas não havia ninguém para trocar meus sums.

Após o encontro tranquilo com os policiais dos dois lados, em menos de uma hora eu estava do outro lado. Alguém já aguardava pelo senhor que atravessou comigo. Ele foi embora, e eu fiquei completamente sozinho. Também não esperava não encontrar nenhuma cidade, nenhum ponto de ônibus, nada, do outro lado. Só havia a estradinha e pasto, pasto dos dois lados e seguindo pela beira do caminho até se perder de vista.

Sem dinheiro, sem ideia da distância até a cidade mais próxima, fui em frente, caminhando. Pé na estrada, olho no horizonte.

A aventura incerta, porém, foi curta - em dez minutos, comecei a avistar algumas casas à beira do caminho, e uma van surgiu do nada com três pessoas a bordo. Acenei - o motorista parou. Com um sorriso só de dentes de ouro e o rosto brilhante de suor e fuligem, disse que me levaria a Kanibodom - e que (quanta felicidade!) aceitava sums uzbeques.

Cerca de 15 minutos depois, cheguei a Kanibodom, também transliterada como Konibodom. Adorei o som do nome da cidade - fiquei bobamente rindo, parecia uma onomatopeia para uma explosão. Logo vi uma imensa estátua soviética em homenagem a soldados mortos na Segunda Guerra Mundial e o primeiro retrato de Emomali Rakhmon, o ditador tajique, adornando um prédio. A cidade tem um mercado agitado onde (novamente para meu espanto) tive muita dificuldade em encontrar um quiosque que se dispusesse a aceitar meu saco com notas uzbeques. Só então imaginei que existia alguma lei que proibia levar sums para fora do país. Encontrei um único quiosque que aceitou trocar minhas pilhas de notas uzbeques. A taxa de câmbio era muito desfavorável, perdi muito dinheiro. Quanto arrependimento. Deveria ter trocado tudo no lado uzbeque.

Passado o sufoco cambial, procurei uma Coca-Cola para matar minha sede nos restaurantes e nas barraquinhas no mercado. Mas não só não encontrei nenhuma latinha de Coca, como também não achei Pepsi. Inacreditável.

Por outro lado, em vez das duas marcas que me acompanharam em todos os países que em estive em minha vida até então, encontrei uma bizarra marca produzida por um outro fabricante americano, mas da qual eu nunca havia ouvido falar. Trata-se da RC (Royal Crown), do Estado da Geórgia, sul dos Estados Unidos. Essa "poderosa" concorrente da Coca-Cola domina o mercado local. Além de fornecer um substituto do líquido preto e gelado, a RC também distribui em Kanibodom "genéricos" de Fanta, envasados no próprio Tajiquistão. Estranhíssimo. A Coca-Cola e a Pepsi desprezaram o mercado tajique por algum motivo, e a RC se aproveitou disso.

No almoço ao lado do ponto de ônibus para Isfara, pedi uma Coca RC para experimentar. Me trouxeram por engano uma garrafinha da RC diet. Ainda mais horrorosa que a Coca Diet original. Acabei tomando apenas um terço e pedindo uma garrafa d'água para ajudar a engolir a gordura do meu shashlik.

Meia hora depois, segui para Isfara e, de lá, para Chorku.


* * *

Após a visita ao Khazrati-Bobo, embarco em uma van de volta a Isfara. Novamente, o clima sinistro, nada mais contrastante do sentimento bom que senti conversando com os meus amigos instantâneos no mausoléu.

Apesar de haver outros homens na van, as passageiras me olhavam de um jeito estranho, extremamente desconfiado. Os olhares eram tortos, indiretos, os rostos, fechados, até mesmo enraivecidos. Uma delas, para quem sobrou se sentar no banco ao meu lado, está ocupando apenas a beirada do assento, o mais longe possível de mim, quase caindo com o traseiro no chão. Assim que outro banco da van ficou vago, foi com pressa se mudar para ele. A van está com todos os bancos tomados, menos o ao lado de mim. A princípio, me sinto igualmente desconfortável e estranhamente culpado de ser um estranho no ninho. Depois, entre as curvas e os solavancos do caminho, passo a achar engraçado. Fico imaginando que eles me acham um impuro ou um tarado simplesmente por ser estrangeiro, não muçulmano, ou se é 100% temor do desconhecido, o que, na verdade, sempre existe.

Em Isfara, me deparo com uma situação semelhamente à que vivi em Chorku: Não tenho nenhuma, absolutamente nenhuma, informação sobre a cidade em meu livro-guia, que sequer a cita. Não sei onde vou dormir e vasculho o centro atrás de um hotel. Na avenida principal da cidadezinha encontro uma velha construção de três andares, dos tempos soviéticos, que parece com um. Na entrada, não há nenhuma identificação, mas meu instinto me conduz para seu interior.

A primeira sensação ao entrar no pequeno saguão do hotel Isfara foi de medo. O lugar não é apenas velho - está evidentemente em péssimo estado de conservação -, ele parece ser um esconderijo para criminosos, onde nenhuma pessoa de bem sequer pensaria em entrar. Não vejo nenhum outro cliente, apenas percebo, de forma distante, os gritos de um homem discutindo com outro no primeiro andar. Em uma salinha que aparentemente é a recepção, vejo uma senhora russa, gorda, com seus 50 anos, com uma cara de imenso tédio. Diz que há dois quartos disponíveis - a suíte simples e a suíte "lux", mais cara. As duas ridiculamente baratas. Qual a diferença? "Lux, maior, melhor", diz a senhora, rosnando. Após lembrar de minha experiência no quarto dos horrores no hotel Turist em Shymkent, decido apostar que a tal "lux" seria mais tolerável que a outra. Paguei os 25 somanis tajiques, ou cerca de US$ 3, e subi ao terceiro andar sem imaginar exatamente o tamanho da encrenca.

Uma coisa ficou clara logo de cara - pelo preço, recebi espaço de sobra para uma pessoa. Encontrei um apartamento com sala de estar com sofá, poltrona e TV, além de um quarto separado com duas camas de solteiro e um banheiro. Havia espaço para pelo menos umas quatro pessoas, duas dormindo nas camas e mais duas com sacos de dormir, no sofá e no chão da sala.

Por outro lado, a suíte "lux" logo assumiu o primeiro lugar no pódio da lugares mais horrorosos e inóspitos em que eu passaria uma noite. Muito pior do que o quarto em Shymkent.

A "lux" cheirava a pó e mofo. Todos os móveis estavam velhos, carcomidos pelo tempo e sujos. A mesa que sustentava a TV tinha uma camada de pelo menos cinco milímetros de poeira. A TV, pequena e com imagens em branco e preto, ligava, mas não permitia sintonizar em nada, só estática. As paredes tinham papéis de parede brancos com manchas que pareciam criadas por vazamentos, há décadas precisando de troca, amarelecidos, tristes, tristes demais. Mas o pior, sem dúvida, era o banheiro - cheirava a urina envelhecida, com paredes escuras, um chuveiro só com água fria, um vaso sanitário cuja cor original era impossível saber. Um banheiro sem porta que só usei para urinar, rapidamente, com os olhos fechados.

Pensei em sair correndo, procurar qualquer outra coisa na cidade. Mas eu sequer tinha um mapa de Isfara, estava cansado e já havia anoitecido. Tranquei a porta, genuinamente com medo de aquele lugar ser invadido de madrugada por amigos da gorda russa. Coloquei meu pijama e decidi que era melhor tentar transportar minha mente para algum lugar distante, na esperança de dormir algumas horas e sair bem cedo pela manhã.

Embaixo do cobertor esburacado e gasto, passei muito frio. Nunca me senti tão sozinho.

Isfara, 18/9, 10h30

(Continua domingo, 21/1/2018)







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Wednesday, 13 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XXII): Kokand

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16/9/2012

É domingo, fim da manhã, muito Sol, voltou o meu otimismo. Reencontro o Uzbequistão. Reencontro a Ásia Central.

Em meio ao labirinto da cidade velha de Kokand, entre seus muros que escondem casas com grandes pátios e árvores carregadas de frutas, surge uma mesquita e uma casa de chá, uma em frente à outra. Ambas não têm importância histórica nenhuma. Ambas não têm importância arquitetônica nenhuma. São simples, estão sujas.

Um grupo de senhores idosos e de meia-idade senta, um ao lado do outro, em um banco do lado de fora da casa de chá. São seis. Todos uniformizados com o chapéu uzbeque, o dope, preto com detalhes brancos. Ao lado, o dono da casa de chá prepara uns espetinhos de carne numa grelha com carvão. Saúdo a todos, Assalamaleykum. Respondem com cordialidade e curiosidade. Dentro da casa de chá, mesas para se sentar, típicas daqui. Gastas pelo tempo. Cobertas com tapetes puídos. Nenhum conforto. As paredes, pintadas de vermelho-laranja. Um poste indica a direção da cidade de Meca. Luz, só a que entra pelas janelas.

Me sento em uma das mesas. E peço um chá.

E o chá vem; e os senhores também vêm, para perto de mim, com as orelhas em pé. Devo ser o primeiro turista a querer compartilhar alguns minutos com eles. A curiosidade os devora. De onde você é? O que faz aqui? O que faz da vida? Gosta daqui? E as eternas... você é casado? Por que não? (difícil de responder essa, em qualquer língua). Qual é o seu salário? (segue-se a conversão instantânea de cabeça entre reais e sums, que também não é nada fácil). E chá vai, chá vem, meu pouco russo aos trancos e barrancos cria um círculo de sorrisos.

Logo a casa de chá vira a mais rica de histórias do Uzbequistão. Falo onde estive, o que vi. Sinto que sou alvo de uma inveja boa da parte de todos os senhores. Que maravilha seria conhecer o Brasil, dizem.

O chá preto é o mais delicioso, fluindo com conforto da tigela para minha boca, lubrificando o bate-papo sem pressa. Posso ficar o dia inteiro aqui. Não tenho que correr. Esqueço os temores e desafios da minha viagem. E eles se tornam instantaneamente meus velhos companheiros. Eu os ajudo a sonhar. Eles viajam para muito longe, para onde, infelizmente, quase que com certeza nunca poderão viajar. Pela falta de dinheiro. Pela falta de saúde.

Eis a função do viajante, fazer os seus anfitriões viajarem. Assim o viajante paga pelo prazer de conhecer um outro mundo.

Eis a função do anfitrião, fazer o viajante se sentir em casa em outro mundo.

Quando uma hora e pouco se passam, me levanto, vou pagar. O preço é uma piada, baixíssimo, o preço que os locais pagam, não o que os turistas pagam. Apertos de mão, a mão esquerda tocando o peito na altura do coração, e mais sorrisos.

Ao sair da casa de chá, uma legião de outros senhores aparece de repente. Com seus chapéus preto-e-brancos. Estão todos saindo da mesquita. Pegam suas bicicletas estacionadas ao Sol. Ágeis, alguns com barbas brancas, se despedem uns dos outros e saem se equilibrando nas duas rotas, buscando a sombra.

Para onde vou agora? Não sei. Vejo uma esquina, vou por ali. Conhecer mais sorrisos.

Isso é a Ásia Central que mora em meu coração.

Isfara, 17/9, 19h

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Sunday, 10 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XXI): Kokand

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Este texto faz referência a minha visita anterior ao Vale de Fergana, descrita no capítulo X de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

15/9/2012

Sua capital é Kokand, ou Kokand-i-Latif ("Encantadora Kokand"), como é conhecida pelos nativos. Ela fica em um lindo vale e é em circunferência seis vezes maior que Khiva, três vezes maior que Bukhara e quatro vezes maior que Teerã.
- Arminius Vámbéry, Travels in Central Asia, 1864

Kokand. Fica no Vale de Fergana, na ponta leste do Uzbequistão, uma região que é tradicionalmente associada ao Islã mais conservador. Em minha viagem em 2003, havia muitas mulheres com o véu islâmico na rua. Fiquei com um gosto meio amargo na boca ao sair do Vale daquela vez: visitei na cidadezinha de Margilan uma inesquecível fábrica de artigos de seda e um impressionante mercado. Mas a segunda parada daquela visita, em Namangan, foi uma tristeza. Pouco vi na cidade, fiquei perdido, me senti deslocado. Na ocasião, na volta, a caminho de Tashkent após Namangan, parei por pouquíssimo tempo em Kokand, vi muito rapidamente o palácio e peguei o táxi para a capital. Precisava voltar, ver direito. Cá estou.

O palácio é o do antigo rei local, o khan. Kokand foi a capital do khanato do mesmo nome, um país independente entre os séculos XVIII e XIX, quando foi anexado pelo Império Russo. Era um dos três paisinhos da região (além de Kokand, havia o khanato e depois emirado de Bukhara e o khanato de Khiva) que sob a URSS se uniriam para formar o Uzbequistão. O khanato de Kokand foi o país que por último se formou, tendo se separado dos domínios de Bukhara em 1709, e o primeiro que caiu ao avanço formidável do imperialismo russo, que o transformou em um protetorado em 1868 - apenas quatro anos depois da visita de Arminius Vámbéry.

Kokand sempre foi um reino frágil, isolado, viável apenas por ficar em uma área de terras extremamente férteis próxima de vastos desertos e altíssimas montanhas. A fragilidade e o isolamento se davam também por causa dos poderosos vizinhos - ao norte, os russos, a leste, a China - e do igualmente fraco emirado de Bukhara, a oeste, que mantinha o desejo de reanexação do território. Logo no início, no final do século XVIII, Kokand se transformou por um breve período em um protetorado da dinastia Qing, chinesa. Depois, se libertou e até conseguiu se expandir, tomando Tashkent e Khojand (uma importante cidade no Vale de Fergana, mas no Tajiquistão). No Grande Jogo, foi o ponto de parada de Connolly antes de sua fatídica jornada para tentar salvar Stoddart em Bukhara. Em Kokand, Connolly havia tentado obter apoio do khan contra os russos. Mas o khan tinha problemas mais próximos para resolver com o seu vizinho de Bukhara, que o invadiu em 1842, assassinando o monarca. Os russos foram tomando territórios para si - Tashkent caiu em 1865, Khojand, em 1867. Veio a vassalização do pequeno reino pelo czar, permitindo que o então khan, Khudayar, terminasse de construir seu lindo palácio. Foi um período de extrema turbulência, em que o impopular monarca foi afastado do poder e voltou quatro vezes, só sobrevivendo justamente por sua aliança com os russos. Em 1875, quando o filho de Khudayar ascendeu ao trono em Kokand, ele adotou uma postura contrária à dominação dos estrangeiros, como se ele tivesse alguma escolha. Em 1883, São Petersburgo por fim anexa o khanato, e o último monarca foge para a Índia.

Não obstante, o povo de Kokand foi, quiçá, o que mais tempo permaneceu ativamente resistindo à dominação dos bolcheviques. Em dezembro de 1917, ainda na sombra dos eventos monumentais do mês anterior em São Petersburgo, aqui foi feita uma declaração de independência, surgindo uma administração para os nativos do Turquestão, fortemente influenciada por motivos religiosos - foi uma reação aos infiéis invasores e a sua arrogância ao lidar com as demandas muçulmanas. A resposta bolchevique foi rápida: em fevereiro do ano seguinte.

Percebendo que este era um sério desafio a sua própria reivindicação de controle nos ex-territórios czaristas, os bolcheviques de Tashkent imediatamente denunciaram o governo de Kokand como contrarrevolucionário e declararam guerra a ele. Eles então reuniram a unidade mais forte que puderam, incluindo muitos ex-prisioneiros de guerra (da Primeira Guerra Mundial), e cercaram a cidade velha (...) O número de muçulmanos sacrificados é colocado por historiadores em algo entre 5 mil e 14 mil. Estupros e saques ocorreram em uma escala aterrorizante contra um povo incapaz de se proteger sozinho. Casas, mesquitas e caravançarais foram queimados ou vandalizados nesta outrora próspera cidade produtora de algodão. Claramente a coisa toda saiu de controle (...)
- Peter Hopkirk, Setting the East Ablaze: Lenin's Dream of an Empire in Asia

A truculência irresponsável plantou uma semente. Opositores sobreviveram, mantiveram a revolta nos anos seguintes e reagiram durante a guerra civil que se seguiu no futuro território soviético. Esse movimento de resistência, chamado de movimento basmachi, chegaria, por exemplo, a ter cerca de 16 mil homens e a tomar áreas da nascente república soviética de Bukhara, de Fayzullah Khojaev (o da casa que visitei em Bukhara). Os bolcheviques redobraram seus esforços, retomaram os territórios, mas guerrilheiros novamente escaparam, desta vez, para remotos cantos dos atuais Tajiquistão e Afeganistão. Entrincheirados nas cavernas, ocultos nas florestas, eles sobreviveram para atormentar Stálin até os anos 30, quando os últimos focos rebeldes foram eliminados.

Ou não. O movimento teria sobrevivido até... hoje. Historiadores atribuem aos basmachis a origem dos Mujahedin que depois resistiriam aos soviéticos na Guerra do Afeganistão (1979-1989) usando táticas semelhantes e, posteriormente, viriam a dar origem ao Talibã. Logo influenciaram os jihadistas em outros confrontos que lembramos bem, como os na Chechênia, na Somália, na Síria.

E o símbolo mais visível dessa resistência, desse orgulho, é o palácio, chamado de "pérola de Kokand".

Foi inaugurado por Khudayar Khan em 1873. Extensivamente restaurada, parcialmente destruída e reconstruída, a edificação, apesar de tudo, ainda tem algo que remete a um passado selvagem, distante. Cerca de metade dela, salas e salas e salas, era ocupada pelo harém, e esta parte foi sem cerimônia reduzida a escombros pelos bolcheviques. Permanecem de pé 27 aposentos. Atravesso as salas, visito um pátio interno. Colunas de madeira esculpidas por artesãos sustentam o teto ao redor do pátio. As paredes apresentam intrincados padrões geométricos e caligrafia árabe. Mas nada supera a beleza da fachada, com seu familiar azul timurida, o azul que une este país há séculos. Apesar de tanta reconstrução e reinvenção.


* * *

Minha volta a Kokand foi a confirmação de minhas teorias a respeito de Karimov. Esperava encontrar por aqui mais ecos desse passado de forma mais clara, encontrar aqui mais muçulmanos visivelmente conservadores, um lugar de orgulho onde tudo que era ainda está presente. Queria ter aqui uma daquelas ansiadas viagens no tempo, procurando o espírito centro-asiático que ainda existe, como no meu encontro com Lutfollah em Shakhrisabz, ou no mausoléu de Aisha Bibi em Taraz. Afinal, este é o Vale de Fergana, o coração pulsante dos uzbeques. Um verdejante paraíso verde, fértil, cercado de montanhas por todos os lados.

Não foi isso com que me deparei, evidentemente.

Meu hotel, também chamado Kokand e um dos principais da pequena cidade, fica a 500 metros do histórico palácio. Chega-se a ele por uma rua chamada Istiqlol. A impressão que tive foi que a rua foi recentemente "embelezada" - de novo, o que vi em Samarkand e Tashkent. O resultado final parece conduzir o visitante para uma cidade americana (veja o vídeo abaixo). A fiação foi enterrada, os postes são lindos e tudo é esteticamente 100% ocidental. Bonito, claro, mas onde está Fergana? Já morei em Miami. Parecia que eu estava lá.



Também saindo do meu hotel, outra avenida leva até a estação ferroviária da cidade. Nessa avenida, me alivio ao encontrar inúmeros prédios mais antigos. Eles são a marca do czar - construídos antes da Revolução de Fevereiro de 1917, reformados e sobreviventes - ou dos bolcheviques. Entretanto, em algumas fachadas, eles trazem também a marca do mundo globalizado atual - logotipos conhecidos do exterior, acenando para os turistas, chamando-os para suas lojas nos mesmos prédios. Logotipos de marcas como Armani, Dolce & Gabanna, Nescafé. Referências muito distantes deste lugar, falando de produtos caros, inalcançáveis para a população pobre que toma a cidade. Difícil imaginar que muitos uzbeques de Kokand tenham poder aquisitivo para comprar um terno Armani. E Nescafé... as pessoas por aqui costumam tomar chá, não café. Não lembro de logotipos exibidos de forma tão chamativa e chocante em Bukhara ou Samarkand.

A ocidentalização é geral e evidente neste que deveria ser um bastião das tradições uzbeques. Neste preguiçoso sábado à tarde, as pessoas desfilam com jeans, camisas ou camisetas. Como eu me vestiria em São Paulo ou em Londres. As observo - muitas parecem tão à vontade neste ambiente, como se estivessem gratas pela linda cidade americana que receberam. E eis que, de repente, uma "anomalia" surge. Como se fosse um pouco da poeira varrida para debaixo do tapete que aparecesse, estragando a limpeza da sala. São três mulheres, todas vestidas com uma roupa de seda colorida e com véus cobrindo o rosto. Cruzam meu passo bem devagar, conversando baixinho. Suspiro de alívio. Lembro de Margilan, logo aqui ao lado.

Karimov persegue o modelo urbano do Ocidente bem mais que o Cazaquistão - que me pareceu seguir um modelo por vezes bizarro que está na cabeça de Nazarbayev, não uma cópia descarada de alguma cidade dos EUA. Isso está claro na língua também. Em Kokand, o inglês é tão comum nas placas quanto o russo. Encontrei gente jovem falando russo além de uzbeque, mas também falando melhor inglês que russo. No Cazaquistão, com tanto o russo quanto o cazaque tendo status de línguas oficiais, o russo ainda é mais presente que o inglês como segunda língua. Em algumas regiões, ainda seria inclusive a primeira língua (isso dizem sobre o norte, perto da fronteira russa, que ainda quero visitar). Tal divisão entre a língua local e o russo não é mais evidente no Uzbequistão, onde o russo não tem nenhum status, onde o alfabeto cirílico continua desaparecendo, onde milhares de turistas ocidentais realizam invasões por semana. Claro que a lei local e a indústria do turismo tornam naturalmente o inglês mais presente e impulsiona a "higienização". Mas o russo, por mais que seja herança do colonialismo, é parte da história desta terra. Troca-se um colonialismo por outro como se o atual fosse melhor que o anterior. Mas o anterior, por ser parte da história, é também uma parte da identidade local.

Ainda que ruas sejam limpas e lindas, nesse novo mundo uzbeque há uma tristeza no ar. Uma nostalgia. Um silencioso lamento nos passos de algumas pessoas, caminhando como se não fossem elas próprias. Em terras que foram só delas e hoje são e não são. Cada vez mais deixam de ser.


* * *

O Vale de Fergana, por sua efervescência islamista nos anos 90 e 2000, continua submetido a regras especiais de segurança. Na estrada, como estrangeiro, tive que me registrar num posto de controle militar antes de entrar na região. Não há ônibus de Tashkent a Fergana. O trem, demora muito. Sem essa concorrência, taxistas e motoristas de lotações que fazem a ligação podem faturar com tarifas altas - e não deixam de fazê-lo.

De Shakhrisabz a Tashkent, uma viagem longa, foram 40 mil sums (aproximadamente US$ 10). De Tashkent a Kokand, esperava pagar menos, pois o trajeto é menor. Trata-se de pura lógica. Mas quando comecei a discutir preços para a viagem até Kokand com os taxistas, às 11 da manhã, o primeiro me veio pedindo 120 mil sums (US$ 35). Dei uma risada. E o que se seguiu, num mercado na periferia da capital uzbeque, foi a mais dura negociação com taxistas que já tive até hoje na Ásia Central. O Sol já apontava o meio-dia quando eu consegui um motorista que pediu 30 mil sums, o que me pareceu o preço correto.

Fiquei amigo do motorista e dos outros dois viajantes dividindo o carro comigo. Durante todo o caminho, fui contando minhas histórias de viajante e de brasileiro, produzindo risadas, rindo junto. Não enjoei no caminho (como acontecera de forma inesquecível na minha primeira viagem ao Vale de Fergana em 2003), o tempo estava ótimo, não estava calor nem frio. O carro atravessou as montanhas e adentrou a planície verdejante de plantações, circundada de serras, uma verdadeira Shangri-lá. Me senti bem-vindo.

Mas pouco tempo antes de chegar a Kokand, a atmosfera dentro do carro mudou radicalmente. O motorista insistiu que o preço que tinha sido acertado comigo era 35 mil. Me mantive firme. Ele praguejou - juro que pensei que ele fosse me soltar no meio da estrada. Ele insistia, aos berros, que queria os 35 mil. Meu amigo de caminho, meu amargo inimigo do final da jornada. Xingou mais, gritou mais, mas me deixou no hotel que eu havia pedido. Agarrou o dinheiro e saiu voando com o carro. Fiquei pensando se eu não deveria ter cedido, afinal, 5 mil sums não é nada. Mas não. Muitos no Uzbequistão pensam que turistas são bobos e sempre cheios de dinheiro. Eu não vou compactuar com isso e deixar que me enganem, nem ser intimidado. Se fizer isso, prejudico todos os viajantes que vierem depois de mim.

A "inflação de Fergana" se refletiu também no preço dos hotéis em Kokand. Eu já sabia que teria alguma dificuldade em encontrar acomodação por US$ 15 como em Bukhara, por exemplo. O hotel onde o taxista me deixou, recomendado pelo meu guia, cobrava US$ 24, era longe do centro e, para piorar, estava lotado. Peguei um ônibus urbano e fui testar minha sorte bem no centro.

Lá encontrei o velho hotel Kokand, conhecido por todos na cidade. Estava sendo reformado, na linha do projeto higienista karimoviano. Espantosamente, consegui nele um quarto imenso, com cama de casal, por US$ 15 e café da manhã incluído. Obviamente, havia problemas - recentemente renovado, o quarto que me deram não tinha nenhum móvel, exceto a cama, e o banheiro, embora com chuveiro quente, não tinha pia. Pelo jeito, a reforma no quarto ainda não tinha terminado. Ignorei os problemas. Pensei em meu suplício no hotel em Shymkent e ergui meus braços aos céus em agradecimento.

Estranhamente para uma cidade que parece adaptada para o turismo, não encontrei opções de locais para comer algo. Jantei na avenida entre o hotel e a estação ferroviária, em frente a um velho prédio provavelmente czarista, reformado, vermelho. Não tive sorte na minha escolha. Mastiguei um churrasco grego vagabundo que me custou caro. Fui dormir com fome.

Kokand, 16/9, 9h24

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Wednesday, 6 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XX): Tashkent

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

14/9/2012

De acordo com a tradição conhecida pelos muçulmanos, o Profeta Maomé recebeu as revelações que formariam o livro sagrado do Islã entre 609 e 632, o ano em que morreu. Mas o caminho que levou esses ensinamentos até o livro grosso que hoje inspira os fiéis é ainda cercado de mistérios.

A chave para desvendá-los seria identificar qual é o Corão mais antigo do mundo. Há trechos de dizeres incluídos no livro que são muito antigos, anteriores ao que se acredita que tenha sido esse primeiro tomo. Se ignorarmos esses trechos e só levarmos em conta esse livro consolidado, o volume que seria a "versão definitiva" do Corão, chegamos ao provável ano de 651. Foi quando ele foi encomendado por Uthman, o terceiro dos quatro Califas, ou líderes, que se seguiram a Maomé e são venerados pelos muçulmanos sunitas. Uthman teria pedido a escribas seis cópias do Livro. Cinco foram enviadas a grandes centros urbanos islâmicos da época e uma, mantida por ele, para seu uso pessoal.

O tempo se mostraria inclemente com os seguidores do Profeta, levando-os a sucessivas divisões, começando pela que gerou os sunitas e xiitas. Novamente segundo a tradição, Uthman teria sido assassinado em 656 no exato momento em que lia seu Corão. Seu sucessor, Ali, teria levado o precioso Livro para Kufa, no Iraque. Vieram os séculos. O Califado ruiu, guerras, brigas, confrontos, conquistadores e impérios se seguiram. E o livro de Uthman, manchado pelo que acredita-se ser o sangue do próprio Califa, foi passando de mãos. Hoje, esse tesouro está não em Meca, ou no Cairo, mas na Ásia Central, em Tashkent, em um pequeno museu em um complexo com prédios estilo timurida, inaugurado não muito tempo atrás.

Lembro-me de minha visita a Tashkent, em 2003. Este novo complexo não existia; em seu lugar havia ruelas estreitas e casas antigas, a cidade velha da capital uzbeque. Naquela ocasião cheguei a procurar o local que guardava o tomo; me perdi nos labirínticos becos e caminhos. Encontrei, enfim, um conjunto de prédios islâmicos perdidos entre aquelas casas, chamado de Khast Imom, onde estava o livro, mas escondido, sem que eu pudesse vê-lo. Khast Imom é justamente o nome deste complexo novo onde estou. Mas é algo completamente diferente. O que restou daquele bairro ainda é visível, logo aqui ao lado.

Acredita-se que o fato de o livro ter parado aqui seja obra, novamente, de Tamerlão. Ele o teria trazido após uma de suas conquistas no oeste. Posteriormente, com a fome do Império Russo, o Corão foi transportado de Samarkand para uma biblioteca em São Petersburgo por decisão de outro general, Konstantin von Kaufmann, responsável por reclamar boa parte da Ásia Central para o czar, tornando-se o primeiro governador russo do Turquestão. Após a Revolução de Outubro, Lênin decidiu que era hora de devolvê-lo aos muçulmanos, como um sinal de que iria cumprir sua promessa de respeitar a autodeterminação dos povos soviéticos. O que viria em Stálin seria menos tolerância. A prática religiosa seria severamente reprimida, centenas de mesquitas seriam convertidas em depósitos ou usadas para outros fins. De volta a Tashkent em 1924, o manuscrito sobreviveu na capital uzbeque, milagrosamente, até os dias de hoje.

O tomo é uma visão realmente impressionante. Com cerca de um metro de comprimento quando aberto, tem as páginas ainda brilhantes, frescas, e essa caligrafia intrigante, evocativa de algo sobrenatural, além do humano, que é a caligrafia cúfica - o mais antigo estilo de caligrafia da língua árabe. As letras estão perfeitamente visíveis, em preto, nenhum sinal de estarem gastas ou desaparecendo por efeito dos anos. As páginas são de pele de veado e mostram a passagem do tempo principalmente em suas bordas.

A aglomeração de turistas europeus, japoneses, chineses, dos Estados Unidos e da Austrália ao redor lembra a agitação em torno da Mona Lisa no Museu do Louvre, em Paris. Em meio a tanta gente, fico me perguntando quantos realmente entendem a real importância deste tomo para a história da humanidade. A real importância das manchas escurecidas do que seria o sangue de Uthman. Fico me perguntando para quantos este é apenas um livro velho que, precisamente e exclusivamente pela sua antiguidade, se tornou valioso e merece ser visto, tão somente um objeto curioso que entedia o observador em três minutos. Olho ao redor: seria capaz de apostar alto que, tirando os seguranças e os guias das excursões, não há nenhum muçulmano aqui. Nenhum sinal de veneração. Nenhum sinal de honra, de afeto. Puro turismo massivo.

Ao sair do museu, finalmente encontro uma senhora claramente muçulmana e uzbeque, com seu vestido colorido e seu véu, adentrando o recinto. Penso - para esta senhora, para os locais e para os muçulmanos em geral, deveria ser prioritário ver tamanho tesouro. Eles deveriam passar na frente e receber tempo para observar com calma, refletir, rezar. Se a história que contam é realmente verdade, e há historiadores que a contestam, este é o livro que ainda existe que esteve mais próximo do Profeta, o que esteve mais próximo de seu tempo. Imagine o que significa isso para um muçulmano praticante.

Vou para o hotel pensando que o sistema em vigor em 2003, quando procurei pelo livro e não achei, talvez fosse melhor: o livro estava lá, acessível a todos que o conseguissem achar. O difícil era mesmo encontrá-lo, chegar na hora em que a visitação era possível, convencer os religiosos a deixar você a vê-lo. Era preciso insistir e se esforçar, e essa penitência tornava vê-lo um privilégio. Eu não consegui em 2003, mas encontrá-lo então, no fundo, não era uma prioridade. Se fosse, eu teria movido o céu e a terra para vê-lo. Outra solução seria mantê-lo mais acessível, mas em uma mesquita ou uma madrassa, onde pudesse ser honrado como são as relíquias dos santos católicos em igrejas ou catedrais. Onde imãs pudessem falar sobre sua história com orgulho para os fiéis. Era assim até os russos o levarem para São Petersburgo.

Hoje, ver o Corão de Uthman parece ser apenas algo que existe para ser incluído nas excursões dos visitantes, que precisam ter algo interessante para ver e fazer em Tashkent.


* * *

A grande visão de Islam Karimov, esse "embelezamento" de seu país, essa "higienização" de toda a confusão, desorganização, sujeira e algazarra, criando ambientes "europeus", me deprimiu bastante na capital uzbeque, como ocorrera em Samarkand. O complexo onde Karimov plantou o museu com o Corão de Uthman, o novo Khast Imom, é de fato muito bonito. Há uma imensa mesquita, uma "madrassa" (um prédio que copia o de uma madrassa, ocupado por lojas de suvenires), um mausoléu e alguns escritórios ligados ao governo. A análise inevitável é que Karimov tentou criar seu Registan.

Se é lindo, por outro lado, o novo Khast Imom não combina em nada com o resto da cidade velha que sobrou por perto. A proximidade das casas antigas reforça o quanto é artificial, sugere como ele foi imposto de cima a baixo, forçado. As crianças já tomaram o espaço - com suas bicicletas e bolas, jogando futebol, repetindo "hello" a todos os visitantes -, mas mesmo a apropriação infantil parece incômoda, pouco natural. É como se este complexo não devesse estar aqui.

Mais no centro da cidade é ainda pior. Ainda mais para quem, como eu, viu como a cidade era antes. Quando estive aqui em 2001 e 2003, vi a praça Tamerlão, com a estátua do conquistador. Ela era um oásis, tomada por lindas árvores de poderosas sombras, um deleite nas tardes de terrível calor no verão. Quando volto agora ao local, o que encontro é devastação - todas as árvores foram cortadas. O objetivo evidente foi permitir ao pedestre ter uma visão clara de um grandioso prédio construído por Karimov do outro lado da praça. E, claro, ver a estátua de Tamerlão, no centro da mesma.

A "Broadway", como é apelidada uma rua de pedestres que dá acesso à praça - e que estava fervilhante de barraquinhas, gente rindo e pequenos restaurantes em 2001 e 2003 -, nesta tarde ensolarada estava quase deserta, nem sombra do que vi no passado. Tudo foi ajeitado, ajeitado demais. Sobraram alguns artistas vendendo seus quadros e outros que fazem retratos dos transeuntes (um deles me pegou pelo braço e quase me sentou em um banquinho à força).

Talvez eu tenha tido azar, talvez tenha visitado a Broadway na tarde errada, numa tarde de muito pouco movimento. Talvez seja minha idade, acho que todos temos uma tendência de achar que o passado é melhor que o presente (ah, nostalgia). Talvez não. Mas o que é certo é que Karimov tirou um pouco da alma deste local, transplantou em seu lugar algo que julga ideal e deixou para os moradores da cidade se adaptarem à nova realidade.


* * *

Perto da Broadway e da Praça da Independência - notável pela sua sequência de jatos d'água formando uma grande cachoeira em frente ao prédio do Senado - fica o Museu de História do Uzbequistão. Fascinante. Ele oferece uma fartura de informações e muitas delas em inglês. E, é claro, mostra claramente a manipulação da história, sustentando a criação do Uzbequistão de Karimov.

A parte do museu sobre história antiga apresenta artefatos ancestrais incrivelmente preservados. Muitos deles foram trazidos de Termez, uma cidade na fronteira com o Afeganistão, na estrada que segue além de Shakhrisabz. Um Buda retirado do sítio arqueológico de Fayaztepa, de entre os séculos I e III, parece tão completo em seus detalhes que se me dissessem que era mil anos mais novo, eu acreditaria. Outro artefato, a cabeça de uma divindade hindu, de entre os séculos VI e VII, causa calafrios com seus caveiras, constituindo o que parece ser uma coroa. Queria saber uzbeque para ler como o museu narra o complicado período da história do país entre Alexandre, O Grande, em 329 a.C., e o início das invasões árabes, entre os séculos VII e VIII d.C. Os textos parecem curtos, com tanta complicação para explicar.

Na ala sobre a história mais recente do país, a partir do século XIX, começa a manipulação descarada da história. O museu destaca com fotos e documentos as revoltas na região em 1898, na cidade de Andijan, e em 1916. Em ambos os casos, as revoltas são apresentadas como movimentos contra o colonialismo russo, sem citar em nenhum momento a importância do Islã na mobilização dos locais. Em grande parte, essas revoltas foram de natureza religiosa. Certamente não em busca da "libertação nacional" - "nacional", aliás, é um termo só adotado na Ásia Central por Stálin e que tanta importância tem para Karimov. Ao falar do período soviético, ainda que destacando a evolução da indústria na época, o tom do museu é claramente negativo: o impacto ambiental, o fato de Moscou castrar o desenvolvimento da identidade nacional uzbeque, levando a uma sede por independência. Mas em nenhum lugar se vê que o Uzbequistão, até o fim, hesitou em se declarar fora da URSS, assim como o resto das nações da Ásia Central. A maioria não queria o fim do grande país. A independência se tornou a única opção com o desmoronar da velha ordem, e Karimov soube identificar isso melhor do que ninguém, tomando para si, juntamente com a elite ligada a ele, o domínio sobre esta terra. De forma até agora indestrutível.

Na parte ligada ao Uzbequistão hoje, há bem menos fotos de Karimov do que qualquer museu cazaque que visitei tem de Nazarbayev. Não vi fotografias do líder uzbeque jogando tênis, andando a cavalo... Mas há sim a galeria de imagens dele com chefes de Estado de vários países. E, a cereja no bolo, uma linda foto de Karimov com um simpático Henry Kissinger, o controvertido (acusado de crimes de guerra) secretário de Estado de Richard Nixon. Na foto, Karimov aparece abraçando Kissinger após ter recebido uma comenda por ser um "excepcional líder internacional", concedida "pelo público americano e ONGs", em virtude de sua "excepcional contribuição no esforço contra o terrorismo internacional". Evidentemente, no entender dos EUA, o mundo precisa de mais líderes como Karimov. Espanta-me que não tenha sido indicado ao Nobel da Paz.

Outro destaque curiosíssimo do museu é uma exibição de cartões de crédito do "Banco Nacional para Atividade Econômica Estrangeira" do Uzbequistão. Fiquei pensando se algum outro museu o mundo apresentaria cartões de crédito Visa nacionais como parte de seu acervo. Deve ser um grande orgulho para Karimov ter esses cartões por aqui...

Saio do Museu, ainda tenho tempo de me espantar mais um pouco com as avenidas e as árvores, tudo parece estar em fluxo, mudando, ficando mais europeu ou americano. O Uzbequistão está sendo transformado em outro país.

É minha última noite em Tashkent. No hotel, hora de checar emails e cuidar do meu joelho esquerdo. Tropecei e machuquei ele de novo, pela segunda vez nesta viagem. Sangue, anticéptico, band-aid. Nada pode me afastar da estrada.

Tashkent, 15/9, 8h31

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Sunday, 3 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XIX): Shakhrisabz

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

13/9/2012

Línguas. Buchos rugosos, negros, marrons. Algum tipo de víscera não identificável por mim. Patas decepadas, ensanguentadas, com pele, carne, ossos e tendões. Um açougueiro com gotas de suor pingando na matéria vermelha, trabalhando sob o sol ardido das nove horas da manhã na calçada destroçada, ao lado do asfalto com seus furgões e buzinas e poeira. Ele usa um toco de madeira como mesa. Uma faca suja. Sobe e desce com golpes violentos, rasgando músculos, separando fibras. A cada movimento, abrindo caminho entre as moscas que sugam o sangue escuro e morno, escorrendo lentamente para o chão. Os carrinhos com os miúdos estão à sua frente e pertencem a ele e a outros açougueiros vizinhos.

Este é o mercado de Shakhrisabz. Há muita gente por perto, passando, olhando, pessoas carregadas de sacolas com frutas, pães. As mulheres com seus vestidos e véus multicoloridos. Os homens, quase todos com o chapéu negro uzbeque, o dope. E há quase tantas moscas quanto pessoas. Melhor não respirar pela boca. Sente-se bem o cheiro, uma mistura de gordura fresca, sangue, uvas doces, melões maduros, gás dos escapamentos dos carros e poeira.

Se Otyrar foi o fim, Shakhrisabz foi o início de Tamerlão. O conquistador teria nascido por aqui em 3 de abril de 1336, embora, como é comum ocorrer, estudiosos discordem a respeito da data correta. O historiador Arabshah, uma das principais fontes sobre as origens de Tamerlão, narra a lenda: fala-se que, quando nasceu, de uma mãe descendente de Genghis Khan, ele encontrou o mundo com as mãos cobertas de sangue, e o significado do presságio foi claro, anunciado o sangue que iria derramar. Veio a conquista de um território imenso, da Ásia Menor às portas da China, da Sibéria à Índia. Um império que ousou se comparar ao de Genghis, ainda que nunca tenha sido tão extenso quanto o do grande líder mongol.

Muito embora tenha transformado Samarkand na capital de seus domínios, embelezando-a para ofuscar quaisquer conquistadores que a viessem a cortejar, Tamerlão sempre manteve Kesh (o nome ancestral de Shakhrisabz) como o seu lar espiritual, mantendo com a cidade uma relação muito mais pessoal. Aqui, construiu ainda em vida palácios e mesquitas imensos e até mesmo sua própria tumba, que acabou, contrariando seu desejo original, sendo preterida pelo grande mausoléu Gur-i-Emir em Samarkand. Aqui, enterrou seu mais amado filho, o primogênito, Jahangir. Aqui, permanece ainda mais vivo que na famosa cidade mais ao norte.

Um raro registro histórico, com os nomes em grafias antigas, descreve a cidade em 1404, quando Tamerlão ainda caminhava sobre a Terra:

Se chama Quex: a tal cidade estava em uma planície, e por todas as partes por ela passavam arroios e fontes de água, e havia muitas hortas e casas ao redor delas (...) e desta cidade de Quex era o senhor Tamurbec, e daqui era seu pai. E nesta cidade havia grandes edificações de casas e mesquitas (...)
- Embajada a Tamerlán, Ruy González de Clavijo (narrativa de viagem feita entre 1403 e 1406)

Shakhrisabz me impressionou por razões diferentes das que esperava. Não são apenas os fantasmas timuridas. O mercado, agitadíssimo, margeia a via principal da cidade (a estrada ligando Samarkand a Termez, na fronteira afegã), tomando a calçada e uma área coberta específica para ele, como em outras cidades centro-asiáticas. Ele é uma oportunidade maravilhosa em termos de visualização da cultura uzbeque. Não encontrei turistas como eu, vindos de longe. Encontrei uma orgia de cores, as cores dos vestidos das mulheres, de seda pura, com mil tons que rutilam no Sol. Quase todas usam véus também coloridíssimos e de seda, mas há algumas que exibem o chapéu típico uzbeque para mulheres, pequeno como o dope, frequentemente dourado e com cordões como franjas. Chapéus uzbeques na cabeça da maioria dos homens, mas um ou outro usando turbantes e longas barbas. Essas exceções, tanto no caso das mulheres quanto no dos homens, são bastante incomuns nas grandes cidades do Uzbequistão, e me sinto privilegiado de ainda poder testemunhá-las, verificando um aspecto de séculos de tradição local.

Outra orgia de cores, a das frutas. E quantas frutas. Melões do tamanho de melancias. Vendedores de sucos coloridos que não me atrevi a experimentar; mesas com hortaliças, legumes, roupas e bugigangas chinesas. Mas, sem dúvida nenhuma, os reis da feira livre são os vendedores de carne. A carne é realmente exposta com completa naturalidade no meio da rua, ficam em carrinhos de mão, como os usados em construções no Brasil. Nada de refrigeração. Os vendedores de miúdos são disputados. Os compradores simplesmente espantam a frota de moscas para ver a mercadorias. Vendedores de coalhada - o que julgo ser coalhada, uma pasta de leite - também não se importam com a refrigeração. Os montinhos de pasta ficam expostos em uma mesa, no calor, aos insetos.

Tudo isso sob o olhar de Tamerlão. Os monumentos que ele ergueu são hoje molduras para o mercado. Ou seria o mercado a moldura para estes espectros?

Duas foram as edificações principais, hoje em ruínas. Acredita-se que tanto o Ak Sarai ("Palácio Branco") quanto o Dorussiadat ("Trono do Poder e Força") foram tão impressionantes quanto o mausoléu de Yassawi, em Turkistan. O que sobra do Ak Sarai são os restos de cerca de 40 metros de torres no seu pórtico, cobertas com os familiares mosaicos azuis. É necessário inclinar bastante a cabeça para enxergar até onde no céu vai a construção. O que se vê é o mesmo que exploradores russos e britânicos viram no final do século 19, ou antes, o que me enche de alegria. Até agora, Shakhrisabz ainda não foi atingida nem pela sanha higienista de Karimov nem por delírios de reconstrução que algum maluco possa ter.

Mais - para se ver as duas ruínas bem de perto não se cobra ingresso, o que afastaria a população local e tornaria as construções sem vida, isoladas da rotina diária, Esse é o problema que hoje enfrentam o Registan em Samarkand ou Ichon-Qala em Khiva, que visitei em 2003. De fato, o Ak Sarai fica em um parque público e é parte do cotidiano de Shakhrisabz. Às 6h40 da manhã, com o Sol acordando e eu também, tentando aproveitar as cores da luz matutina, vejo um grupo de velhinhas se aproximando da grandiosa edificação. Todas com seus vestidos coloridos. No perímetro do palácio, eu as vejo fazendo alongamentos. Exercitam-se em grupos, esticam as costas, os braços, as pernas.

Mesmo estando o Ak Sarai incompleto, com a imaginação é fácil encontrar mais alguns pedaços que faltam ao quebra-cabeça da ruína. O difícil mesmo é visualizar a construção como um todo, como ela poderia ter sido. Assim o eternizou o visitante Ruy González de Clavijo:

Nesses palácios havia uma entrada muito longa e um portão muito alto, e aqui, na entrada, havia arcos de tijolos nos lados direito e esquerdo, decorados com azulejos apresentando diferentes padrões. E, debaixo destes arcos, havia como que pequenos quartos sem portas, com o chão coberto de azulejos, e isso foi feito para que as pessoas pudessem se sentar lá quando o senhor estivesse no palácio. E logo depois desses quartos havia outra porta, e atrás dela um grande pátio pavimentado com lajes brancas e todo cercado por portais ricamente decorados; e há uma grande lagoa no meio do pátio, e este pátio ocupa trezentos passos de largura, e por esse pátio se entrava em um grande conjunto de casas no qual havia uma porta muito grande e alta, decorada com ouro, azul e azulejos, trabalhados com grande beleza. E acima da porta havia a figura de um leão dentro do Sol, e nas bordas, a mesma imagem. Era o brasão do senhor de Samarcante.
- Embajada a Tamerlán, Ruy González de Clavijo

Não longe dali, no Dorussiadat, destinado a ser o complexo de mausoléus de Tamerlão e sua família e concluído em 1392, sobrou ainda menos. Foi um conjunto descrito por Clavijo em seu diário como "mesquita e capelas muito ricas e muito bem ornadas de ouro e azul e azulejos". Hoje, há pouco mais do que algumas manchas cor turquesa numa alta parede, a tumba de Jahangir, as fundações das construções... e um segredo.

Escondida nessas fundações expostas ao céu, há uma porta misteriosa. Ela leva ao subterrâneo e está fechada. Um zelador que controla o acesso, de olho em uns trocados, me encontra e me convida para entrar. Diz que é muito interessante. No Sol destruidor, me sinto atraído pela escuridão fresca.

É a cripta, descoberta apenas nos anos 60, em que Tamerlão teria planejado ser enterrado. Um lugar úmido, fantasmagórico. E espantosamente modesto. Nas paredes nuas de pedra, apenas inscrições do Corão. Dentro da grande tumba, embaixo da pesada tampa de pedra, foram encontrados pelos arqueólogos os restos de dois corpos não identificados. Em Samarkand, Tamerlão foi alvo de uma exumação em 1941. Os cientistas soviéticos confirmaram que uma das pernas do esqueleto era mais curta do que a outra - como já se sabia, essa era uma característica peculiar do impiedoso líder. Ou seja, tudo leva a crer que os restos no mausoléu em Samarkand eram mesmo dele, o que só manteve o mistério: de quem eram os esqueletos encontrados em sua cripta em Shakhrisabz? Quem teria se dado ao trabalho de erguer a cobertura de pedra para lá depositar os cadáveres?

Atrás do terreno do Dorussiadat, novos indícios do Tamerlão mecenas, o que conquistou e matou milhares, mas poupou os artistas e os enviou a suas queridas cidades. A mesquita Kok Gumbaz foi construída em 1437 por Ulugubek, o neto de Tamerlão, o mesmo que deu o nome a uma das madrassas do Registan de Samarkand. Vê-se de longe o porquê do nome - Kok Gumbaz significa "cúpula azul". Lindas cúpulas, a grande e principal, acompanhada de outras duas menores. Linda mesquita, ainda hoje usada pelos fiéis, claramente restaurada e mantida com esmero. Sua construção usou a mão-de-obra trazida de longe. Nas brancas paredes internas do templo, ilustrações representam palmeiras - árvores alienígenas na Ásia Central. Possivelmente são criações de artistas deportados de pontos distantes do império, onde tais árvores são comuns. Pérsia? Índia? O conjunto da mesquita é muito bonito. Internamente, as paredes, com a luz da manhã suavemente entrando pelas frestas das janelas, criam um mundo completamente isolado do movimentado mercado, a dois passos dali.


* * *

Novamente, a pousada onde fiquei em Shakhrisabz se superou. O café da manhã farto, magnífico, à sombra da parreira e do caquizeiro, com o paparico constante do pai de Lutfollah.

Me entendi bem com o velhinho, ainda que só falando com ele em russo. Seus olhos eram permanentemente lacrimejantes, meio esbranquiçados. O rosto, escuro e enrugado pelo Sol de décadas e décadas. Seu chapéu uzbeque, sempre na cabeça. Muito curioso, muito carinhoso. Constantes perguntas: tudo bem? Quer mais chá? O que você vai fazer hoje? De repente, entra no quarto onde passei a noite; de lá, de uma prateleira que eu nem tinha visto, tira uma pequena pilha de fotos tiradas com ex-hóspedes, enviadas a ele da França, da Alemanha. Ele, de braços dados com uma linda jovem suíça. Outra foto, com um jovem em um piquenique nas montanhas das redondezas.

O pai de Lutfollah me adotou de tal forma que fez questão de ir comigo à parada de táxis, onde eu ia pegar um por volta do meio-dia para seguir de volta para Tashkent. Me ajudou a negociar um bom preço, me deu um abraço, um aperto de mão. Ofereço dinheiro a ele em agradecimento, ele recusa. Mais um abraço. Volto um dia, prometo. Pode contar com isso, pode preparar a mesa de frutas secas.

Já no caminho, coloco as duas mãos no rosto. Nunca sequer perguntei o nome do senhor. E ele me tratou, este desconhecido, como um filho. Torturo-me de dor de consciência e de amor pelo idoso por longas horas, chacoalhando no carro, na infinita estrada.

O motorista, por outro lado, se mostra um maníaco. Testemunho-o ultrapassando caminhões em curvas fechadas nas montanhas, as mesmas nas que, na ida para Shakhrisabz, as vacas se mostraram tão à vontade passeando no asfalto.

Após Samarkand, a rodovia atravessa longas e entediantes plantações de algodão. As plantas estão carregadas e por toda parte se vê grupos na colheita, caminhões levando as nuvens brancas para processamento. No céu, as nuvens de verdade não aparecem há dias.

Em Tashkent, chego lá pelas nove da noite, moído. Encontro o albergue, um local bem simples, onde eu havia reservado uma cama, louco de vontade de deitar nela e desmaiar. Mas um grande grupo de turistas havia se hospedado nele e decidido de surpresa ficar mais uma noite. Nessa, eu fui solenemente esquecido pela gerência do estabelecimento. Não havia cama para mim. Eles me jogam num canto, no chão de uma sala ao lado de um pátio iluminado e barulhento, ao lado de outros mochileiros. Fico irado (reservei uma cama justamente para evitar uma situação como essa), mas estou cansado demais para ir para outro lugar ou mesmo para brigar. Sou obrigado a tomar remédio para dormir, para vencer o ruído.

Sinto falta do paparico de Shakhrisabz.

Tashkent, 14/9, 12h45

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