O que é "Novas Fronteiras"?
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9/8/2018
Levantei com o Sol. Muita expectativa. Iria cruzar uma fronteira que vinha ansiando em cruzar desde 2003.
Mesmo chegando ao Registan antes das 7h da manhã, já havia turistas. Tiveram certamente a mesma ideia que eu — se deliciar com os monumentos antes do dia entrar em seu ápice e serem atropelados pelas legiões de visitantes e pelo sol de rachar. Os poucos madrugadores, porém, não atrapalharam minha contemplação e minhas fotos do lindo conjunto. Fiquei apenas cinco minutos. Então, parei um táxi. Empurrei a mochila para dentro. Seria uma jornada de mais dez minutos até um mercado próximo, onde então subi em uma van que me levaria por uma estradinha onde eu jamais estive, em rota de colisão com o sol.
O caminho estava dourado, o dourado delicado da manhãzinha.
Estava indo para a luz.
O vento entrava pela janela, fresco. Um cheiro de mato molhado. Atravessei áreas de pastos, pequenas vilas. A van chegou ao ponto final em uns 20 minutos. "É para lá, só seguir", disse o motorista.
Pé na estrada, contra o doce sol.
Vi a cancela, a casinha da nova fronteira se aproximando lentamente.
Eu estava tenso. O cenário me lembrou a travessia do Vale de Fergana uzbeque para o Tajiquistão em 2012; a mesma situação ocorreu, tive que caminhar os últimos metros pela estrada em uma área rural, sem ter ideia do que me esperava do outro lado. Daquela vez, do outro lado, não havia nada, apenas mais estrada e pasto dos dois lados — tive sorte de encontrar transporte pouco depois. E aqui, o que iria acontecer? Como seria a famosa divisa que ficou fechada por anos por causa da briga entre o finado presidente uzbeque Islam Karimov e seu vizinho, o presidente tajique Emomali Rakhmon? Karimov, que era conhecido pelo isolacionismo, não teve muito pudor em se afastar de Rakhmon, particularmente depois dos ataques no final dos anos 1990, no Uzbequistão, de um grupo islâmico baseado no Tajiquistão. A relação nunca melhorou de verdade. Dizem que há até hoje minas colocadas pelos uzbeques em trechos remotos da fronteira. Só com a morte de Karimov haveria distensão.
Esta é uma fronteira-chave, ao lado de Samarkand, uma das principais cidades uzbeques. Reabriu há alguns meses apenas. Eu esperava ver nela dezenas de pessoas, famílias divididas há anos, que deviam estar ansiosas para se rever. Acreditava que tudo seria especialmente rigoroso por aqui, na já compreensivelmente complicada burocracia de fronteiras, para evitar que contrabandistas aproveitassem o momento. Respirei fundo.
Ao lado da casinha da alfândega, em um muro, uma foto imensa saudava os visitantes. Eram os dois presidentes, Rakhmon e o sucessor de Karimov, Shavkat Mirziyoyev, se cumprimentando, sorrindo, com dizeres embaixo da foto exaltando a amizade entre os dois povos-irmãos. Nunca deveriam ter sido separados, mas, nos anos de Karimov, estavam mais distantes do que nunca.
Na pequena fila, tanto do lado uzbeque como do tajique, um clima que não era apenas cordial. Era leve, era alegre. As pessoas, esperando sua vez, estavam sorridentes, conversando entre si e com os guardas que as atendiam e verificavam seus documentos. Nunca vi uma fronteira assim. Passo a passo, fui contagiado. Quando chegou a minha vez, arrisquei algo que não conheço ninguém que tenha feito em sã consciência ao cruzar as temíveis linhas internacionais do Turquestão: simplesmente decidi oferecer ao guarda uzbeque que me atendeu um comentário sem ser convidado a fazê-lo. Seu uniforme não me intimidou em nada enquanto olhava meu passaporte. Aliás, ele sequer pediu os comprovantes de registro nos hotéis onde me hospedei no país, uma relíquia burocrática da URSS que o Uzbequistão ainda formalmente exige que o turista exiba na sua saída, mas que na prática está caindo em desuso.
"Nossa! Que maravilha que esta fronteira está aberta agora!", disse eu ao guarda, com um sorriso misturando incredulidade e alívio.
O guarda, que estava sério, olhando meu documento, levantou os olhos na minha direção. Seu rosto inteiro se iluminou, sorriso de orelha a orelha: "Sim! Não é mesmo uma beleza?"
O processo todo, nas duas fronteiras, não durou nem 15 minutos, nem mesmo o mesmo tempo da caminhada a pé desde o ponto final da van até o posto uzbeque da divisa. E, do lado tajique, um grupo pequeno e civilizado de taxistas esperava os que chegavam. Um deles me levou por mais 20 minutos até a cidade de Penjikent. Isso me impressionou. A cidade é tão perto de Samarkand! Tão perto! E tão longe das maiores cidades tajiques! Durante toda a história, os moradores de Penjikent sempre se deslocaram a Samarkand para fazer compras, para passear, para encontrar parentes, para viajar para outros pontos da região. Não consigo nem imaginar o suplício que era para seu moradores com a fronteira fechada. De Penjikent a Dushanbe, a capital do Tajiquistão, são pelo menos quatro horas de carro enfrentando montanhas altíssimas, buracos, curvas perigosas e enjoativas.
Reabrir as fronteira foi, enfim, uma festa: uma medida fácil para Mirziyoyev ganhar popularidade. A euforia tomou a capa dos jornais e sites. Eu mesmo fui procurado por jornalistas uzbeques, meus amigos, que quiseram me entrevistar para entender o que a mudança significava para um estrangeiro que viaja pela região. Minha reação: "Finalmente vou conhecer Penjikent!", disse, erguendo os dois braços e provocando risadas nos meus amigos.
* * *
Passada a alegria que mudanças bem-vindas trazem, sinais sinistros e familiares na volta ao feudo de Rakhmon.
"Assalam Aleykum", me surpreendeu um velhinho, repentinamente, quando eu estava prestes a atravessar a avenida Rudaki, a principal de Penjikent. Ele me desejava paz na saudação típica dos muçulmanos. Era mais baixo que eu; se vestia com um estilo claramente antiquado, saído dos anos 70, mas elegante: calça social cinza, camisa social sem gravata, colete marrom, uma boina. Impecável. Um olhar estranho, febril, fixo demais. Talvez tivesse problemas mentais. Evidentemente me reconheceu como estrangeiro, o que a mochila nas minhas costas não se preocupava em absoluto em esconder. Me pegou pelo braço, me afastou da beira da rua. Fiquei assustado, primeiramente, depois apenas curioso. Será que ele queria praticar o inglês dele? Me perguntar de onde eu sou? Contar (sempre bem-vindas) histórias do seu passado glorioso nos tempos soviéticos?
Uma vez que estávamos seguros na calçada, ele largou meu braço e colocou a mão dentro de um bolso no peito da camisa, atrás do colete de lã. Tirou dele uma carteira. A abriu. "Olha, olha isso!", disse, com uma excitação que impulsionava um leve tremor. De dentro da carteira com mirrados trocados amassados, tirou uma foto de seis por cinco centímetros, um santinho, de um homem de meia idade, com sobrepeso e semblante sério e orgulhoso, meio sorriso, terno e gravata. "Quem é ele? Quem é ele?", perguntou o velhinho para mim. "Ah! É o presidente do Tajiquistão!", respondi. "Muito bem!", reagiu, com um sorriso agora triunfal no rosto. Guardou o santinho na carteira, guardou a carteira no bolso. "Para onde você vai? Vai para as montanhas? É só seguir reto, descer a avenida. É só não sair dessa direção", disse, sem esperar nem eu perguntar. E antes que eu pudesse lhe agradecer da forma que gostaria, ele deu as costas e saiu andando na direção contrária. Nem se despediu.
Passos depois do insólito encontro introdutório, encontrei à beira da Rudaki um banco, um prédio de uma repartição do governo e outro prédio que nem sei do que era. Todos com grandes, imensos retratos de Rakhmon na fachada. Como em 2012 em Khojand e Dushanbe, como até em Khorog, no coração do Pamir. Ele é o dono e senhor desta terra. E ganha pontos o tajique que lembrar aos visitantes estrangeiros esse fato inescapável da vida no país. Afinal, sabe-se lá quem os estará vigiando.
Contudo, dizer que as coisas permaneceram exatamente as mesmas provavelmente é errado. Pioraram. De 2012 até agora, a já então massacrada oposição tajique sofreu um golpe ainda maior. Após a guerra civil que destruiu o país entre 1992 e 1997, um dos elementos-chave do acordo de paz era que uma agremiação chamada Partido do Renascimento Islâmico (PRI) seria incluída no governo do país. Uma número de cadeiras no parlamento estaria reservado ao partido. Era e é, até hoje, o único partido islâmico autorizado a operar legalmente em um país da Ásia Central da ex-URSS. Com o passar dos anos, Rakhmon foi aos poucos ampliando seu controle sobre o governo, estabelecendo cada vez mais o domínio absoluto das instituições. Até que, em 2015, após uma clara campanha de descrédito que alimentou o medo da população, o PRI foi declarado uma organização terrorista e jogado na ilegalidade. No exterior, o governo tajique tem pressionado nações com as quais mantém relações a entregar simpatizantes e membros do PRI. Dentro do próprio país, a obsessão com o secularismo leva policiais periodicamente a barbear à força homens que insistem em usar barba, mesmo que isso, usar barba, não seja necessariamente um sinal de ativismo islâmico. Prisões lotadas são palcos de massacres. A população do Pamir continua isolada, alvo da desconfiança do presidente. Enquanto isso, o líder prepara a perpetuação de sua dinastia, após ter conduzido o filho Rustam Emomali em 2017 à prefeitura de Dushanbe.
Segui para o mercado de Penjikent para almoçar, trocar dinheiro, comprar água e... procurar um banheiro. A última tarefa não foi tão complicada quanto eu esperava. Bastou encontrar um restaurante, no caso, uma casinha humilde na Rudaki que servia samsas, uma espécie de pastel local. Perguntei para a garçonete onde ficava o local do alívio. Ela sorriu, deu as costas, voltou com a chave, um rolo de papel higiênico que parecia uma lixa de parede e me indicou uma porta no fundo. Ela dava para o quintal, onde duas crianças de uns quatro anos brincavam com um velocípede sob o chão de terra batida. Não é à toa que a porta do banheiro era trancada: a latrina era um buraco no chão com excrementos quase até o topo. O fedor era tão imenso que quase me fez desmaiar.
Sob o lindo sol, o mercado não era nada como o de Samarkand, que havia sido completamente reformado e "higienizado" há alguns anos para que atrair os turistas. Era como o de Margilan, mas mais pequeno. Um bazar centro-asiático como deve ser: cores por todas as partes, nos véus e vestidos das mulheres, nas frutas, nas especiarias amontoadas nos pratos. Vi, por outro lado, certos detalhes que não cheguei a ver nem em Margilan, raridades nos tempos de hoje: um velhinho muçulmano com turbante e barba branca, indicando que fizera a peregrinação a Meca, saudado com reverência pelos mais jovens; duas meninas, de uns sete anos, usando chapéus coloridos típicos e inteiramente vestidas de seda (ou tecido copiando seda) colorida do tipo khan-atlas, desfilando sob o olhar orgulhoso dos locais entre as barracas, alegres, pululando, com duas tranças longas de cabelo negríssimo saindo de debaixo do chapéu. Circulavam olhando tudo, mas procurando especificamente material escolar. Passaram pela minha frente, nem perceberam minha existência. O mercado, como Penjikent, evocava o passado perdido da vizinha Samarkand: sem turistas, sem maquiagem, muito mais autêntico. Parei num canto, ao lado do velhinho com o turbante, que conversava animadamente com outro idoso, vozes finas, enquanto meus olhos fitavam as meninas que atravessavam o portão principal do mercado e lentamente desapareciam do meu campo de visão, pipocando entre os carrinhos cheios de vegetais. Aproveitei para tomar um pouco de água e encontrar a ladeira, à direita, onde eu teria que procurar o próximo transporte.
Havia um estacionamento poucos metros para baixo, à direita. Muitas pessoas vinham de carro até o mercado e o deixavam lá, mas o local também era usado como rodoviária informal de furgões que levam e trazem os moradores das vilas nas chamadas Montanhas Fan, que ficam por perto, e dos povoados no vale do rio Zerafshan (um afluente do grande rio Amu Darya que passa por Samarkand e à beira do qual fica também Penjikent). A principal linha de transporte público para as vilas das montanhas, a linha mais regular e confiável, usada pela maioria das pessoas, sai das montanhas cedinho e chega aqui ainda pela manhã, voltando na metade da tarde. Logo eu encontro o único veículo responsável pelo transporte, uma velha UAZ-452 preta com capacidade para umas 15 pessoas. Com um visual inconfundível, as UAZ-452 poderiam de forma simplificada ser chamadas de as "Kombis" do mundo soviético. Foram produzidas a partir de 1965 pela montadora Fábrica de Automóveis de Ulianovsky (de cuja sigla, em russo, é UAZ) e ainda podem ser vistas com alguma frequência na Ásia Central. Lembro de ter achado uma em Bishkek que estava sendo usada pela polícia. Contudo aquela UAZ quirguiz não se comparava com a que estava à minha frente em Penjikent. Calculei que o veículo era bem mais velho, deveria ser dos primeiros anos de produção, um legítimo exemplo da durabilidade dos produtos da era soviética. Ainda que, nesse caso, a durabilidade fosse mantida muito além do razoável.
Por dentro, o veículo dava medo. A barra de direção, conectando o volante ao motor, parecia ter sido consertada com fita adesiva na altura do volante. O rádio permanecia no seu lugar também com o auxílio de durex. Entre o motorista e o passageiro da frente, era possível acessar diretamente o motor levantando-se uma tampa. Eu fui o escolhido para ir na frente. Antes de partirmos, o motorista (um jovem coberto de manchas de graxa, da cabeça aos pés), trouxe uma garrafa de plástico, levantou a tampa do motor e virou água no radiador. Depois, bateu a tampa e acenou: dois moços jovens como ele atenderam o chamado e vieram se sentar em cima da tampa, entre eu e o motorista. Enquanto isso, o número de passageiros nos bancos de trás foi enchendo: muitas mulheres, crianças, até um bebê. Um sujeito chegou com uma bicicleta; o motorista saiu de seu lugar para ajudá-lo a amarrá-la em cima da UAZ. Muita força para amarrar, puxa a corda aqui, puxa acolá e pronto. Voltou o motorista a seu assento. Mais espera, mais meia hora, e o veículo foi enchendo mais. Apenas quando estava impossivelmente lotado, um completo absurdo, com crianças sentadas nos colos e adultos espremidos ao limite, o motorista sorriu e deu a partida. Se no veículo deviam caber confortavelmente 15 pessoas, contei 25 no início daquela jornada para as montanhas.
Saindo de Penjikent o veículo tremia, tremia demais. Especialmente na dianteira. No meu colo, eu levava minha mochila, abraçada como um escudo contra meu peito.
Eram 14h. A temperatura acumulada das últimas horas, que umedecia minha camiseta inteira, foi arrefecendo à medida que subíamos rumo à primeira parada, o vilarejo de Shing. Primeiro, pegamos a estrada principal, a que vinha da fronteira com o Uzbequistão, de asfalto, bem sinalizada. Em dado momento, saímos, pegando um caminho estreito de terra, à direita, apontando em direção aos picos distantes. Logo o caminho seguiria paralelo a um rio que surgiu, também chamado Shing. Ele tinha nascente nas montanhas e claramente se dirigia ao Zerafshan. As montanhas se apresentavam pouco a pouco completamente peladas, sem árvores, cobertas de pedras ocres ou, quando muito, arbustos; à direita, o rio estreito descia em corredeiras fortes, violentas, e criava, em trechos, regularmente, praias de cascalho. Em uma delas, ainda no início da estrada de terra, um grupo de garotos vencia o calor mergulhando nas águas. Que inveja.
O caminho foi piorando, fortes solavancos vinham mais e mais constantemente. A UAZ vencia com valentia cada buraco, e parecia que quem pagava mais caro por cada chacoalhão não era a máquina de Ulianovsky, mas o lombo de cada passageiro. Todo o cenário me lembrava enormemente o Pamir, do outro lado do país. A mesma sensação de estar indo para um mundo perdido, isolado. O rio violento, lá, era o Panj, aqui, este regato perdido, afluente do Zerafshan.
A maior parte dos passageiros desceu em Shing — que, pela janela, não era nada mais do que um amontoado de casas sufocadas pela poeira, nas encostas das montanhas, à beira do rio, nenhuma alma à vista. Parecia que os passageiros que desciam, assim como a vila em si, estavam prestes a desaparecer na poeira como se nunca tivessem surgido. E, de fato, o motorista deu a partida e rapidamente todas as senhoras com sacolas carregadas de legumes e suas crianças se enfiaram em alguma ruela que sequer percebi que existia. Mais pó se levantou quando o veículo voltou a andar. O aclive continuou, assim como o rio Shing, descendo em suas corredeiras.
Esta é uma região das Montanhas Fan conhecida como Haft Kul. O nome, em tajique, reflete seu principal tesouro: quer dizer sete lagos. Os lagos são formados pelo represamento do rio Shing em degraus de cada vez maior altitude. O primeiro vem logo depois do vilarejo; um corpo de água com algo como um quilômetro quadrado ou um pouco menos. Pedi para ser desembarcado na própria estrada já a caminho do segundo, em uma área alta com uma vista panorâmica do primeiro, ainda sem poder ver o lago que viria a seguir. A UAZ parou, abriu a porta, joguei a mochila em um monte de barro seco e pulei para fora. Eram umas 15h30. Sol forte. Felizmente, pela posição do sol, as montanhas faziam sombra sobre meu caminho, permitindo um aclive confortável com a carga nas costas. Infelizmente, sem sol direto, ficaria mais difícil ver a beleza dos lagos, como ocorreu no caso do primeiro.
Assim foi. O feitiço da água limpíssima das montanhas (de fato, um braço do Pamir) demorou a aparecer: não foi nem no segundo lago, que logo veio, muito perto do ponto de partida da caminhada, mas a partir do terceiro. Em uma área reduzida exposta ao sol desse lago, a água tinha virado um prisma, destilando os raios solares em tons de verde e azul escuro.
Pela estrada, foram cruzando pelo meu caminho os moradores da região, o misterioso povo das montanhas, com praticamente nenhum conhecimento de russo. Vinham lentamente pela estradinha, com um sorriso fácil e olhares de genuína curiosidade. Um espantoso contraste em relação a todos que já havia encontrado, mesmo no coração do Pamir, particularmente em termos de vestimentas. Encontrei algumas mulheres com crianças. Levavam roupas exuberantes de lã, tingidas com cores berrantes, predominância de vermelho. Tinham véus ocultando um pouco o rosto, mas não escondendo-o por completo. Eram vestidos ornamentados e grossos, uma resposta à temperatura mais fresca pela altitude. No terceiro lago, o termômetro já havia descido para não mais que 23 graus, muito menos à sombra, e esboçava despencar de vez com o anoitecer e o vento frio que já soprava, intermitente.
Fui acompanhando o caminho do rio Shing. Às 18h, cheguei a Nofin, uma vila entre o terceiro e quarto lagos. O frio a essa altura já tinha aumentado bem mais, exigindo o impensável em Penjikent — que eu tirasse da mochila um casaco e o vestisse. Também já estava começando a ficar escuro. Uma placa que encontrei indicava uma pousada e fui direto para lá, subindo por uma trilha à beira de um riacho que seguia para os lagos. O dono da pousada, um senhor pançudo de bigodes e olhar doce chamado GS, me recebeu literalmente com os braços abertos.
GS, uns 50 anos, vestido uma camisa social branca surrada e suja, mangas arregaçadas e calças penduradas no cinto escondido sob o barrigão, havia usado da melhor forma possível o vasto terreno do seu sítio. Tinha erguido três casas: em uma, ao meu lado, ficava a cozinha e era onde permanecia durante o dia ele e sua família; em outra, com dois andares, havia quartos de dormir amplos para os visitantes e seus familiares; e na terceira casa, um pouco separada das outras duas, à qual se chegava apenas atravessando um jardim, havia mais dormitórios apenas para turistas. Parecia fazer um bom dinheiro com os visitantes que usavam sua propriedade como base para ambiciosas voltas pelas montanhas ou apenas para ver os lindos lagos, como eu. "Se temos um quarto para você? Claro! E jantar também!", disse o empresário, bonachão e extrovertido.
Mas senti, tinha certeza, que havia algo oculto. Conversava comigo sob o olhar próximo e pouco amistoso de uma mulher que parecia ser sua esposa (meio escondida na sombra da cozinha) e de uns garotos jovens, que acreditei serem seus filhos. Falava russo excelente e procurava mostrar empatia, fazendo perguntas sobre minha jornada. Fala pausada, atenta, preocupada em ajudar, mas um tanto tímida. Nunca se aprofundava além das perguntas iniciais. Havia outras preocupações, imensas, em sua cabeça, mas, apesar disso, ele se esforçava em fazer bem seu trabalho com os turistas. O olhar estava opaco, como se afogado em lágrimas não derramadas. A cada duas frases, olhava para a mulher. Olhava para os filhos. Havia tensão. Havia muito que não podia ser falado.
Pensei em conversar mais, porém, ele me interrompeu com muita educação e indicou, ao lado, um tapchan onde estavam outros turistas, um casal de viajantes, americano e tailandesa, já pouco visíveis no lusco-fusco do anoitecer. Agradeci ao anfitrião, saudei os outros estrangeiros, dei as costas a GS e me sentei na plataforma. Quando fui ver, ele havia desaparecido dentro de sua cozinha escura. E a comida, carregada pela esposa e uma mulher que eu não tinha visto antes, chegou também nesse mesmo instante. Vegetais de vários tipos, cozidos, juntamente com pedacinhos de carne frita. Fatias de melancia.
Para manter a tradição, me lambuzei com a melancia. Um, dois, três pedaços. Deliciosos demais, doces, leves, cheios de líquido. Mas o dono da pousada não apareceu mais. Enquanto os turistas lembravam de como foi cruzar a fronteira e suspiravam com as memórias de Samarkand, eu me senti mais à vontade em silêncio. Pensando em GS, torcendo por ele.
Mazor-i-Sharif, 11/8, 12h40
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