Saturday, 18 March 2023

Novas Fronteiras (XIII) - Nurata, Uzbequistão



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15/8/2018

Olá, deserto.

O ônibus atravessou o rio Zerafshan e então a paisagem logo mudou; não mais as plantações de algodão que acompanharam todo o trajeto de Samarkand a Karmana. Agora, terra seca. Arbustos rasteiros, poucos deles verdes, a maioria cor de poeira. Um mundo ocre. O coletivo, como quase todos os intermunicipais na Ásia Central, estava superlotado. Eu estava sentado num banco bem no meio do corredor, na última fileira, no fundo do ônibus. Ao meu redor, havia sacolas imensas com cobertores, panelas, um fogão portátil, tudo o que as pessoas que moram nas vilas do interior compram na grande Navoi para levar para suas casas. Estiquei a cabeça e, entre as pessoas sentadas ao lado das janelas, consegui ver bem a paisagem: uma sequência de colinas que o ônibus foi galgando devagar, curvas e curvas. Depois, veio a descida e uma vasta área plana. Novamente, um calor atroz, uma luz cegante. Nesse caminho, as vilas que vão surgindo, na certa construídas ao redor de oásis, são ilhas verdes nesse oceano de secura.

Nurata chegou. Era maior do que eu imaginava, maior do que as outras vilas no caminho, mas não deixava de ser um mero pingo de vida nesta vastidão do deserto do Kyzylkum. As montanhas ao lado da cidadezinha são chamadas Nur Atau; são o que resta da serra Pamir Alai, um braço do Pamir. São as montanhas que vêm do Tajiquistão, onde nasce o rio Zerafshan, e aqui encontram sua morte no deserto. Neste mundo inóspito, já distante do Zerafshan, fiquei coçando a cabeça, me perguntando onde está a água que garante a vida de quem mora aqui. Não vi rio, não vi riacho, não vi lagos, sequer poços. Vi algumas ruas tomadas pela areia. Tudo torrando, secura, secura. E a luz imensa que está até no seu nome - Nur é "luz" em árabe e, por influência, em persa e, por fim, em tajique. Ota é "pai" em túrquico, a língua que está na raiz do uzbeque, do quirguiz, do cazaque. Pai da Luz. Luz, secura, calor, quase sem árvores. Como pode haver vida aqui?

E há vida, e muita. E cada vez mais.

A origem de Nurata, como a de muitas das cidades por aqui, estaria na conquista por Alexandre, o Grande. Ele teria fundado a cidade no século IV a.C., e o assentamento teria recebido o nome de Nur. Aqui, as forças de Alexandre construíram um forte, uma magnífica edificação que agora me saúda, milagrosamente de pé tantos séculos depois. Já é visível de longe. Uma estrutura de barro, praticamente uma extensão da argila do solo, rugas de terra com não mais do que a mais mísera vegetação rasteira. O forte tinha grande importância estratégica, impedindo a saída das estepes desérticas que se prolongam ao norte, antes do vale do Zerafshan, protegendo assim a vila de bandidos nômades que a ameaçavam. Protegendo o mais valioso tesouro da cidade: sua fonte de água cristalina, que posteriormente passaria a ser considerada sagrada pelos muçulmanos.

No violentíssimo passeio de Gengis Khan pela Ásia Central, no século XIII, Nurata foi um ponto de passagem destacado nas crônicas. Ela anunciou o destino que iria se repetir em tantas outras cidades a seguir:

Ele (Gengis) chegou em seguida a uma vila chamada Nur (...) Nur era uma espécie de cidade santa, contendo muitos locais sagrados que eram visitados por muitos peregrinos e outros devotos. O povo de Nur fechou os portões e por algum tempo se recusou a se render. Mas, por fim, descobrindo que era inútil tentar resistir, eles abriram os portões e permitiram a entrada dos mongóis. Gengis Khan, para punir os moradores, como disse, por apenas terem pensado em resistir a ele, separou um pouco de gado e outros mantimentos para evitar que (os moradores) morressem de fome e dividiu todo o resto, (inclusive) as propriedades da vila, entre seus soldados como pilhagem.
- Jacob Abbott, History of Genghis Khan (1860)

Com tanta história em Nurata, agora o governo uzbeque está apostando alto em seu potencial como um novo polo turístico. Mas, neste caso, o patrimônio cultural seria o secundário. A ideia é que Nurata seja um centro para algo ainda incipiente no Uzbequistão, o turismo de aventura. A cidade é uma base ideal para longas caminhadas exploratórias, para o contato com a natureza seca e remota dos limites do Kyzylkum, passando pelas montanhas Nur Atau, seguindo rumo a um imenso lago artificial na fronteira uzbeque-cazaque, o Aydarkul. Na estrada vindo para Nurata, o governo colocou outdoors propagandeando as oportunidades do turismo na região, incentivando os empreendedores a investir em negócios pensando em gente como eu, que vem de longe visitar Nurata. A prova mais evidente dessa estratégia para a cidade, porém, pode ser vista no centro histórico. Perto de onde o ônibus me deixou, encontrei um parque passando por uma cirurgia: calçadas sendo pavimentadas, árvores sendo plantadas, canteiros sendo ajeitados. Ao lado, duas mesquitas antigas, de valor histórico, pareciam recém-restauradas. Além das mesquitas, vi um portão que levava à baixa colina onde está o forte de Alexandre. Se não bastasse tudo isso para deixar claro que aqui é onde está o coração pulsante e o futuro de abundantes dólares turísticos de Nurata, vejo, ao lado do portão, seguindo na direção das duas mesquitas, a tal fonte de água, e dela corre como um riozinho, canalizado, ao ar livre.

A nascente é muito bonita, linda, realmente faz você pensar em Deus enxergá-la no meio deste deserto. Água limpa, transparentíssima, uma tentação, surgindo do nada. Primeiro num laguinho e depois nos canais, a água ganha uma tonalidade azulada. É a casa de inacreditáveis centenas de trutas. Elas brincam de apostar corrida contra a correnteza e de esconde-esconde com as pessoas que, com galões, levam água do canal para beber. É um lugar sagrado para os muçulmanos locais não apenas por representar esse milagre da vida brotando no meio da secura, onde não deveria haver vida. A água e suas trutas são o objeto de lendas que correm as estepes há séculos. A mais conhecida delas é a que explica o surgimento da fonte. Dizem que Ali, o genro do Profeta, teria em pessoa sido responsável pela sua existência; ele teria cravado no chão seu cajado e do buraco fez-se jorrar a água. Por isso, as trutas são sagradas, ninguém as tenta pescar, e todo o local se tornou um destino de peregrinação; há uma crônica do século X já testemunhando o grande número de viajantes que aqui vinham praticar sua fé.

As mesquitas históricas ao lado do aquário natural são bonitas e, claro, as visito. Contudo, parecem ter sido tão pesadamente restauradas, tão profundamente reconstruídas, que, ao menos para mim, perderam todo o encanto. As considero cópias modernas de algo que existiu. Quase nada nelas é realmente antigo. Uma delas, chamada Tchilustun e identificada como mesquita de sexta-feira (o que denota sua importância como centro de rezas no dia santo da semana) é apresentada em uma placa como originalmente do século IX, o que a colocaria como sendo dos primeiros anos de chegada do Islã à Ásia Central. Entretanto, os únicos elementos que realmente representam seu passado são a porta e o mihrab, o nicho na frente do qual fica o mulá que lidera as preces. A outra mesquita, chamada Panjbaka, é identificada como sendo do século XVI, ou seja, contemporânea dos shaybanidas, a dinastia uzbeque que sucedeu os descendentes de Tamerlão no controle desta região. Nesta, nada, nem sequer a porta, nem o mihrab, sugere sua longa história, sua ligação com a era de ouro da Ásia Central. Se há algo de original, está com tanta maquiagem que nem é possível dizer que é antigo.

Por outro lado, algo muito positivo: os dois templos não foram restaurados para permanecerem apenas como decoração em grande escala, aguardando os turistas. São mesquitas de uso corrente, procuradas pela população de Nurata que vem venerar a fonte sagrada. Não são apenas grandes suvenires. Com a proximidade do anoitecer, cruzo com grupos de senhoras, lindamente coloridas com suas sedas, algumas delas com bebês, que vêm rezar. Para elas, as mesquitas são o dia-a-dia, e isso lhes dá um valor que eu nunca poderia mensurar.

Mas meus olhos ficam constantemente sendo puxados para a fortaleza ancestral de Alexandre, no alto da colina.

Alcanço a escada que começa pouco depois das mesquitas, já ao pé do monte de terra batida. Dela, sai uma trilha que atravessa em aclive uma pequena área com barraquinhas vendendo lembranças, embaixo de algumas árvores. Logo se chega às ruínas de uma muralha. Ecos de Istaravshan, de Khojand. Como as cidades tajiques, este local também tem essa conhecida associação com Alexandre, que teria passado por aqui cerca de 2,4 mil anos atrás.

Uma das histórias contadas acerca da fortaleza de Nur é que Alexandre não testemunhou, em pessoa, sua construção. Ao passar por aqui, fundou o assentamento por sua posição estratégica e determinou a seus generais que erguessem a estrutura, que teria que ser robusta. Depois, seguiu com suas conquistas nesta terra distante. Quando voltou, não se sabe quanto tempo depois, encontrou uma edificação verdadeiramente intimidadora, com escarpas íngremes e grossos muros. Nem mesmo as tropas que levava consigo poderiam penetrar a fortaleza.

Pela antiguidade do sítio, não é surpreendente que o único elemento claramente identificável da fortaleza seja a muralha que a cercava. Mas há, em pelo menos três pontos dela, áreas que aparentam ter sido um dia aposentos ligados pela muralha. Talvez fossem os locais onde permaneciam as tropas ou os comandantes quando estacionados na fortaleza. Talvez um deles fosse o dormitório? Outro, o depósito de armas? As escavações já feitas não deixam claro o que foram, ou como foram, ou mesmo quando foram esses aposentos. Seria todo o conjunto parte da mesma fortaleza de Alexandre? Será que há partes onde foram erguidas outras construções posteriores aos tempos longínquos do conquistador macedônico, e que, hoje, confundimos, achando que são todas parte do mesmo todo, vindas do mesmo tempo? Eis a mesma, eterna dúvida que paira sobre outros sítios fantasmagóricos como as fortalezas de Alexandre em Khojand e em Istaravshan: quanto destas ruínas, em seu estado original, foi de fato testemunhado pelo conquistador ou mesmo por um de seus generais? Certamente, pouco. E ela foi feita e refeita, várias vezes. Então, nós também vemos hoje bem pouco dessa história distante, quase lendária.

O tempo indica tudo e confirma nada. Mais uma reticência do longo passado do Uzbequistão.

As perguntas, esse mistério, não deixaram minha cabeça quando acompanhei os raios de sol descendo lentamente no poente e continuei a trilha para além da fortaleza. Logo o caminho desapareceu. Não havia mais muralha, não havia mais ruínas. Mais um aclive e se descortinou um horizonte de colinas baixas, barro e pedra secos, mato torrado, tudo com uma coloração cinza e bege. À esquerda, estava a ponta da cidade de Nurata. À direta, o nada, apenas montanhas, uma atrás da outra, como ondas em um oceano de terra. Dizem que, seguindo por uma das trilhas invisíveis nestas colinas peladas, pode-se chegar a atraentes pinturas rupestres. Não havia placas, não havia pistas, então, não havia como sequer tentar chegar a essas pinturas sem um guia me acompanhando. Só havia vento, luz, poeira. Um vento crescente vindo do oeste, de onde o sol estava se despedindo.

Pode-se caminhar livremente. Irresistível. Perambulei por 40 minutos. Segui em linha reta, descendo, subindo os montes.

Quando finalmente olhei para trás, não via mais um sinal sequer de Nurata. Não via mais nada a não ser as colinas me cercando completamente. Muita luz. Nenhuma pessoa, nem mesmo à distância.

Sentei no chão.

Minha sombra estava longa. Imensamente longa. Como se o vento a esticasse.

Olhei as colinas. E a sombra. E o sol. E voltei às colinas, à sombra, ao sol.

Nenhuma pessoa. Nem eu.

Uma liberdade imensa.


* * *

Mais cedo, ainda em Karmana.

A festa de casamento no salão de festas do hotel acabou pontualmente às 22h55. O filme sem sentido na TV em branco e preto do meu quarto chegou a ter algum sentido, depois voltou a não fazer sentido nenhum. Eu estava tão cansado que havia escorregado para cochilos com a tela ligada em vários momentos, algo que não costumo fazer (geralmente a TV não me deixa dormir, e ainda mais quando estou num ambiente com muito barulho). O fim da festa foi uma alegria para mim e, quando desliguei a TV, tudo ficou absolutamente, completamente escuro. Ainda assim, não foi uma noite perfeita. Logo adormeci, mas aquele sepulcro me trouxe traumas do passado. Acordei sobressaltado no meio da noite. Tive a impressão de que estavam tentando abrir a porta do meu quarto, bem trancada, pelo lado de fora. Quase pulei da cama. E junto comigo, meu coração quase pulou da boca. A lembrança inevitável foi o maldito hotel em Khojand, no Tajiquistão, onde um mal-entendido fez os gerentes invadirem meu quarto no meio da noite. Em Karmana, porém, foi tudo um equívoco meu. O barulho que me assustou era de hóspedes nos quartos vizinhos, entrando tarde em suas habitações e trancando suas portas com força. As paredes finas demais ajudaram a criar a impressão de que eu estava dentro do quarto deles.

O mais cedo que consegui levantar for às 7h. Às 8h, eu já estava na rua procurando transporte não para Nurata, meu destino da tarde, mas para mais indícios da ancestral Rota da Seda na região de Navoi. Três taxistas pararam na rua para ouvir minha proposta, três disseram que era longe demais para eles. O quarto aceitou por 30 mil sum (cerca de US$ 3). O lugar ficava a uns 20 quilômetros do centro de Navoi, no caminho para Bukhara. Ao chegar, o motorista, sem paciência, queria me deixar numa vila próxima. Não, disse. Não estou indo para lá, quero visitar este outro local, e descrevi com detalhes o que era. O taxista nunca havia percebido que perto da vila havia tais ruínas. Não o culpo. Esses tesouros são como camaleões, da mesma cor do panorama, quase invisíveis para quem nasceu e viveu por perto toda vida. Na velocidade da estrada, eles simplesmente desaparecem. Ele finalmente achou o lugar, paguei, agradeci, joguei a mochila no chão, saí do carro e vi o táxi se juntar aos veículos indo para Navoi, caminhões, ônibus e carros, as modernas caravanas da Rota da Seta gerando o vento-chicote das rodovias. Tempo bom, ainda o frescor das primeiras horas de sol.

Na minha frente, estava o chamado Rabat-e Malik.

Trata-se de um prédio único, com uma história muito interessante, mais um elo perdido da história arquitetônica da Ásia Central. Segundo os estudos conduzidos primeiramente por arqueólogos soviéticos, esta estrutura, com um portal monumental que se assemelha ao de uma madrassa ou mesquita, mas praticamente destruído além disso, foi originalmente um palácio da dinastia turca kharakhanida, construído nos séculos XI como uma residência fortificada, possivelmente um recanto de veraneio, para os governantes da dinastia em Samarkand. Como tal, a construção tinha toda o luxo e contava com a proteção de grossas muralhas para evitar os ataques de bandidos do deserto. Após seu portal, havia antigamente um pátio interno com colunas e arcos que conduzia a quartos para serviçais, estábulos, cozinha e depósitos, além dos aposentos dos nobres; na parte dos ricos, os arqueólogos identificaram uma pequena mesquita e um banho turco. Eis a primeira razão de o prédio ser tão celebrado por estudiosos: dos resquícios arquitetônicos dos kharakhanidas, o que sobrou, em geral, foram mausoléus, como o famoso Aisha Bibi no Cazaquistão ou os de Özgön, no Quirguistão. Há a torre de Burana, perto da capital quirguiz. Mas não lembro de ter alguma vez encontrado um palácio kharakanida. Até o misterioso Kyrk Kyz, que recém visitei em Termez, talvez fosse um, mas não há nenhuma prova isso.

Essa, porém, foi a primeira encarnação da construção, e o que veio a seguir redobra seu fascínio. Os kharakhanidas foram logo sucedidos no poder da região por outras dinastias túrquicas, como os gaznévidas e os seljúcidas. Nesse período de decadência kharakhanida, no século XII, não é muito claro o que aconteceu com o prédio. O que sim se sabe é que, com a chegada dos mongóis no século XIII, trazendo seu peculiar apetite por destruição, milagrosamente a estrutura permaneceu de pé. Nos anos seguintes, deixaria de ser um palácio para assumir seu papel como estalagem de caravanas, ou caravançarai. Na Ásia Central, sobrevivem poucos rabats (como são chamadas tradicionalmente por aqui tais construções) da vasta rede que existia antes do século XVIII por toda a região para ajudar os comerciantes que faziam a longa travessia entre a China e a Europa. Um dos mais conhecidos hoje é sem dúvida o Tash Rabat, que visitei em 2012 na remota fronteira entre Quirguistão e China. Há outros que foram muito descaracterizados ou destruídos, remodelados, reformados e adaptados como restaurantes ou hotéis, e assim sobrevivem como caravançarais talvez só em nome − em Bukhara há alguns assim. Muitos outros foram desmantelados, suas pedras usadas para outras construções, como aconteceu com tantos prédios históricos na Europa também. Este seria um desses sobreviventes, hoje no meio do nada, à beira da estrada, a cerca de dois quilômetros ao sul de onde passa o rio Zerafshan.

Acredita-se que o Rabat-e Malik nessa segunda encarnação foi uma importante hospedaria neste trecho da "Rota Real", como costumam chamar a ligação entre Bukhara e Samarkand que seguia a Zerafshan. Provavelmente tão importante quanto o Tash Rabat, não puramente pela sua localização estratégica (neste caso, o Tash Rabat, que providenciava a proteção aos viajantes antes da difícil jornada entre as montanhas que marcam a fronteira da China, era mais essencial), mas por ser muito procurado, sendo um ponto de encontro dos mais ricos mercadores que se aproximavam de duas cidades centrais na rota.

Mas, na verdade, pouco resistiu até hoje. Aparentemente, quase tudo que sobreviveu de pé até o século XX foi obliterado por um terremoto em 1968 e pelos próprios soviéticos durante a construção da estrada que passa ao lado. Dizem que o caravançarai funcionou, o que é impressionante, até o século XVIII, quando as rotas comerciais com o oriente já eram firmemente por via marítima e toda a região entre os rios Amu Darya e Syr Darya já era o campo de batalha entre o débeis reinos de Bukhara, Khiva e Kokand, que seriam em algunas décadas engolidos pela Rússia imperial. Dizem que os locais, ainda no século XIX, já tinham até esquecido o que era aquele portal imponente e o chamavam de "portões de Bukhara", talvez por acreditarem que se tratava de um marco de entrada no território oficial do então emirado.

Hoje, além do portal, se encontram as bases das colunas, a área que seria do pátio de entrada, e as bases dos aposentos. Varridas pelo vento. Vazias. Secas. Ocupadas por fantasmas, os fantasmas de caravanas, os fantasmas de reis há muito apagados do mundo. Perambulo por uma hora na já contumaz tarefa de apenas imaginar o que foi aquele amontoado de pedras.

Do outro lado da rodovia, diretamente oposto ao Rabat-e Malik, está resposta à sede de todos os hóspedes do palácio-caravançarai. A construção se beneficiava de um engenhoso sistema de distribuição e armazenamento de água. O líquido era trazido do Zerafshan por um duto e armazenado em uma grande cisterna (sardoba) feita de tijolos. Neste caso, a construção, chamada Sardoba Malik, permanece, milagrosamente, inteira. Doze metros de altura. Talvez justamente por ser a diferença entre a vida e a morte para todos enfrentando a Rota Real, a cisterna tenha sido deixada de pé pelos que vieram a seguir, saqueadores ou inimigos em guerra eterna nas estepes: todos dela se beneficiavam, todos dela dependiam. Cisternas parecidas existem em outros lugares, como também existem rabats. Mas a Sardoba Malik é a maior e mais bem preservada que já vi.



É uma admirável obra de engenharia, especialmente levando-se em conta que foi construída no século XI. Do lado de fora, o prédio parece bem curioso. Se vê um pequeno portal que está ligado a uma cúpula que estranhamente cresce diretamente do chão. Pelo portal, se desce por uma escada ao reservatório em seu interior. Metade de toda a câmara, sob a cúpula, está debaixo do nível da terra. Três pequenas janelas fornecem um pouco de luz ao que do contrário seria um ambiente de caverna no meio do deserto, úmido, escuro, com a temperatura bem mais baixa do que no exterior. Embora há muito sem uso, a sardoba ainda tem água, uma camada rasa no fundo, esverdeada, aparentemente insalubre, provavelmente acumulada após alguma chuva recente. A luz que entra pelas janelas cria um ambiente caleidoscópico ao se refletir na água e, de lá, atingir as paredes. Impressionante ver que a água não se esvai entre os tijolos. Não vejo nenhuma rachadura nas paredes. A construção foi tão bem feita que ainda cumpre sua função, séculos depois.

É uma bênção no calor. Sentei-me na escada de entrada e descansei em sua sombra fresca, reconfortante. Fiquei hipnotizado com as luzes, com a água e os reflexos. Delirando mais um pouco na companhia de fantasmas. Imaginando a fila de viajantes esperando do lado de fora para encher seus cantis antes de seguir viagem para Samarkand. Vendo os andarilhos do deserto, chegando do nada, quase mortos de sede, se atirando nas águas e sendo chutados para fora.

Nurata, 15/8, 22h

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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