Tuesday, 19 March 2019

Como Putin pode sofrer com a saída de cena de seu maior aliado na Ásia



Nursultan Nazarbayev, de 78 anos, o único presidente da história independente do Cazaquistão, anunciou nesta terça-feira sua renúncia após quase 30 anos na presidência de um dos maiores países da Ásia.

O anúncio, amplamente esperado, pode levar a uma mudança significativa da geopolítica da Ásia – em particular no tocante ao poder e influência da Rússia na região.

Considerado um dos mais importantes aliados do presidente russo Vladimir Putin, durante seus longos anos no poder Nazarbayev forjou com o russo e o com o líder de Belarus, Aleksandr Lukshenko, a União Econômica Euroasiática, um bloco regional que ambiciona ser uma alternativa à União Europeia.

Em Nazarbayev, Putin sempre encontrou um líder ponderado que tinha consciência e aceitava a imensa influência russa sobre seu território, particularmente no norte, na região de fronteira com a Federação Russa. Raros foram os momentos de tensão entre os dois.

E embora tudo indique que Nazarbayev tenha feito o possível para garantir que não existam riscos na mudança, tanto na esfera doméstica quando externa, uma sucessão é uma sucessão.

Os exemplos de risco vêm de países vizinhos, ex-repúblicas soviéticas igualmente consideradas integrantes da esfera de influência russa.

Trocas de poder nos vizinhos Uzbequistão, em 2016, e no Quirguistão, em 2017, trouxeram ao poder políticos que adotaram caminhos bastante diferentes de seus antecessores, embora analistas à época especulassem que nada iria mudar.

Democracia (e sucessão) gerenciada

O presidente sai, mas o regime, continua.

No poder desde 1990 e reeleito pela quarta vez consecutiva em 2015, com 97,7% dos votos, Nazarbayev seguirá mantendo um controle total do país por meio de uma hábil administração patrimonial das elites e um implacável cerco a potenciais rivais políticos.

À frente de um regime de “democracia gerenciada”, ele cultivou uma série de partidos de oposição de fachada e durante todos os anos no poder realizou eleições regulares que apenas mantiveram a aura de legitimação institucional – enquanto seu real poder, como o de Putin, está de fato nas sombras.

Apesar disso, embora seja muito difícil estabelecer com certeza o seu nível de apoio popular, não há dúvida de que ele é de fato muito querido por uma parcela significativa da população, especialmente nas grandes cidades.

Mas isso não significa que ele não enfrentasse fortes críticos, particularmente no extremo oeste do país, onde, em 2011, um confronto entre operários da indústria do petróleo e a polícia deixou pelo menos 15 mortos na cidade de Zhanaozen. Recentemente, mais protestos foram registrados na mesma região.

Em julho do ano passado, o presidente já havia fortalecido um órgão interno chamado Conselho de Segurança, passando a ser seu chefe vitalício.

O órgão deixou de ter um papel consultivo e passou a ter uma importante função constitucional, de “preservar a estabilidade política interna, proteger a ordem constitucional, a independência estatal, a integridade territorial e os interesses nacional do Cazaquistão”.

Na época, a manobra foi tida como um sinal claro de que Nazarbayev preparava sua saída e que pretendia permanecer “dando as cartas” quando isso acontecesse.

Outro sinal foram as mudanças no gabinete. De forma obsessiva, Nazarbayev mudou várias vezes os principais nomes de seu ministério de função nos últimos anos, como se procurando testar a lealdade dos mesmos, ao mesmo tempo que media suas competências.

Mais recentemente, mês passado, após uma onda de protestos provocada pela morte de cinco crianças em um incêndio na capital Astana, Nazarbayev decidiu mudar de uma vez todo o seu gabinete de governo. Uma jogada de mestre de populismo, indicando a todos que o “pai dos cazaques” ouvia os lamentos das ruas.

A mudança fez surgir o momento ideal para a transição de poder, na medida que representa um novo começo para o governo cazaque.

Interinamente, o presidente será o presidente do Senado, Kassym-Jomart Tokayev, que permanece até o final do que seria o mandato de Nazarbayev, em 2020. Então, novas eleições devem encaminhar ao poder o nome que venha a ter o apoio do ex-presidente.

Gigante centro-asiático

Apesar da população pequena em relação aos seus 2,7 milhões de quilômetros quadrados, espalhados pela Ásia e Europa, a economia do Cazaquistão se beneficia de sua riqueza em recursos minerais, particularmente petróleo e gás, concentrados na região do Mar Cáspio, no oeste (justamente onde fica o foco de maior insatisfação com Nazarbayev), e cobre.

A Rússia é o segundo maior destino das exportações do Cazaquistão, atrás da China. Para a Rússia, o país também representa um parceiro considerável, sendo o terceiro principal destino se suas exportações (cerca de US$ 12 bilhões em 2017), com uma balança francamente favorável aos russos.

Para Nazarbayev, a proximidade com a Rússia sempre permitiu, de certa forma, equilibrar um pouco a influência dos chineses, que já têm em terras cazaques grandes interesses como parte de sua estratégia de criar uma nova Rota da Seda para escoar sua produção industrial para o Ocidente.

Mas o que pode acontecer se um novo líder decidir revisar a relação com a Rússia?

A questão mais importante, neste momento, talvez seja medir o quanto isso seria possível. A ligação entre os dois países é íntima não apenas pela presença do Cazaquistão na União Euroasiática, mas também pela parceria em inúmeros outros órgãos internacionais, como a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (um órgão de defesa que lembra a Otan, liderado pelos russos) e a Organização para a Cooperação de Xangai.

Há também uma minoria significativa de russos que ainda mora no norte do Cazaquistão e uma parcela significativa de cazaques que, como outros centro-asiáticos, se beneficia dos laços históricos com Moscou e busca ganhar a vida no vizinho do norte.

Uma revisão das relações entre os dois países poderia, então, resultar em uma conta alta demais para ser paga por Astana, em termos econômicos e em termos domésticos, gerando grande insatisfação.

Mas o risco de instabilidade existe. Se houver a percepção de que a saída de Nazarbayev representa uma abertura política, com a possibilidade de grupos até então amordaçados se expressarem, isso pode gerar uma genuína reviravolta nas elites, colocando em risco o futuro do regime.

Tudo leva a crer que Nazarbayev vai manter as regras de divisão do poder, desta vez dos bastidores. E, publicamente, o discurso permanecerá o mesmo: acima de tudo, o mais importante é a estabilidade, a paz, a ordem.

Desconforto

Por seu lado, é inegável que a transição irá causar desconforto a Putin. E o quanto ele irá se envolver nos bastidores da política cazaque para garantir seus interesses depende muito do que venha a seguir.

Intervenções vindas da Rússia não têm um retrospecto bom no Cazaquistão, talvez por ressaltarem as cicatrizes profundas do imperialismo russo e soviético.

Em 2014, o líder do partido Liberal Democrata Russo, Vladimir Zhirinovsky, defendeu publicamente a criação de uma “Região Federal Centro-Asiática” da Rússia, cuja capital seria Verny (o nome dado nos tempos dos czares a Almaty, a maior cidade do Cazaquistão).

Após os protestos contundentes da chancelaria cazaque, o governo russo prometeu punir o político. Independentemente da imprudência de Zhirinovsky, porém, o que ele indicou com sua frase é mais importante do que as próprias palavras.

O que veio a seguir foi um esforço mais concentrado de Nazarbayev em mostrar que o Cazaquistão nunca mais será russo, com o anúncio, em 2015, de que o país abandonaria o alfabeto cirílico e passaria a usar o latino a partir de 2025.

Esse esforço para reforçar a “independência” cazaque deve continuar, mas mudanças profundas, ao menos enquanto Nazarbayev se mantiver nas sombras, devem ser descartadas.

De qualquer forma, seu afastamento tem um imenso significado simbólico para a Eurásia e, se não é um divisor de águas, sem dúvida pode ser o primeiro passo para mudanças mais profundas.