O que é "Novas Fronteiras"?
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14/8/2018
Hoje foi um dia desafiador, mas não como eu esperava.
Adeus, Samarkand. Pegamos, eu e as senhoras portuguesas, um ônibus intermunicipal juntos. Elas, para Bukhara. Eu, para Navoi, uma cidade grande no caminho, onde teria minha segunda experiência de visitar uma cidade na Ásia Central sem ter absolutamente nenhuma referência sobre ela em meu livro-guia de viagem. Nada, nenhum parágrafo.
Eu sabia, há anos, que Navoi tinha coisas interessantes. Por exemplo: um mausoléu islâmico de grande importância, do século XI, sobrevivente de Gengis Khan. Mas só saber algo sobre a cidade que estaria visitando não me salvaria de ficar, talvez, em um hotel ainda pior do que o de minha visita a Isfara, no Tajiquistão, em 2012. Foi naquela vez que eu também não tinha nenhuma informação sobre a cidade em meu guia. Acabei dormindo em Isfara em um lugar tão horroroso que desenvolvi um infecção que me levaria a urinar sangue quando estava chegando, alguns dias depois, a Dushanbe. Estava um pouco nervoso com a possibilidade de, em Navoi, acabar passando a noite em um pulgueiro apodrecido novamente.
Pensando nisso, procurei, antes de vir para a Ásia desta vez, me preparar bem melhor do que me preparei em 2012 para a experiência desagradável em Isfara. Imprimi mapas da Navoi. Pesquisei um roteiro de passeios, vi onde ir, que locais visitar, em qual ordem. Separei algumas opções de possíveis hotéis, marquei o local onde eles ficavam no mapa. Mas algumas dúvidas perduravam. Onde, exatamente, o ônibus vindo de Samarkand iria me deixar? Mesmo olhando com lupa fontes de informação na internet encontrei informações desencontradas. Poderia ser na periferia da cidade, como ocorreu em Samarkand quando cheguei de Termez, ou em algum outro lugar distante de qualquer ponto de referência, longe dos locais mais conhecidos. Como, exatamente, eu me deslocaria dentro da cidade, como chegaria ao hotel, como chegaria aos locais que queria visitar?
Essas dúvidas me embriagavam como álcool barato, e o efeito da bebedeira eu senti quando saí do ônibus e coloquei nas costas a mochila à beira de uma avenida. Eu sabia, isso sim já era previsto, que estava desembarcando em Karmana, cidade na mesma mancha urbana de Navoi (ou quiçá melhor defini-la como a "velha Navoi", localizada ao norte do centro da cidade "nova"). O efeito da bebedeira era medo. E empolgação. A empolgação de ter uma aventura de exploração de verdade. Ainda à beira da avenida, saquei a bússola, o mapa e me pus a procurar referências para tentar descobrir, exatamente, onde em Karmana o ônibus me entregou.
Karmana teria surgido durante as invasões árabes na região, no século VIII, e uma prova disso seria seu nome. Diferentemente da esmagadora maioria das cidades do Uzbequistão, "Karmana" não teria raízes no sogdiano, ou no persa, ou nos dialetos túrquicos, estes últimos a raíz dos idiomas de todos os países da região com exceção do Tajiquistão. Diz a crença local que o nome veio do árabe e seria um elogio dos invasores à fertilidade das terras que encontraram por aqui, banhadas pelo rio Zerafshan. Tão prodigiosas eram as terras que fizeram os árabes se lembrarem de um local igualmente fértil onde haviam estado, a Armênia. Daí Ka Arminia, que quer dizer "como a Armênia". Com o tempo, Karmana ganharia importância por ser um ponto estratégico de parada das caravanas da Rota da Seda vindas de Samarkand e a caminho da não tão distante Bukhara ou vice-versa. Estalagens de caravanas prosperaram por aqui, testemunhas da riqueza dos moradores que exploravam o comércio de longa distância. A longa decadência da Rota da Seda se faria sentir especialmente a partir do século XVIII. Karmana passaria a integrar o Emirado de Bukhara, que seria um protetorado russo a partir do século XIX, sendo incorportado à URSS posteriormente. Navoi, a cidade maior, moderna e mais conhecida, foi uma invenção soviética, passando a existir apenas em 1958 e recebendo seu nome em homenagem a Alisher Navoi, poeta do século XV celebrado como um dos heróis nacionais no Uzbequistão.
Era meio-dia quando desembarquei. O sol estava forte e, no ônibus, sem ar condicionado, eu havia sentido calor, claro. No entanto, as janelas estavam escancaradas, cobertas pelas cortinas pelo lado interno, e no caminho inteiro o vento inflava como balões aqueles panos, que por sua vez amparavam as cabeças dos sentados ao lado como travesseiros de ar. O vento da estrada esfriava o interior, tornando a temperatura mais agradável. Com a bússola e o mapa na mão, atravessando avenidas de um lado para outro em busca de referências e pedindo ajuda para me localizar às pessoas nas ruas, eu logo perceberia que o vento da estrada havia sido um anjo da guarda inestimável na jornada desde Samarkand. As primeiras gotas começaram a se formar na minha testa quando concluí que teria que andar dois quilômetros, "apenas dois quilômetros", até um dos hotéis que havia cogitado usar como base, o mais próximo de onde eu estava e bem perto dos locais de interesse. Um alívio: esperava demorar mais para me localizar no mapa, mas foi uma questão de cinco minutos, que ótimo, era um imenso problema a menos. Bastava caminhar. "Apenas dois quilômetros, descendo esta avenida. Não há subidas, é uma reta, basta seguir, e o prédio do hotel vai aparecer do lado esquerdo da rua. É fácil", disse a voz em minha cabeça. Guardei o mapa em um bolso da calça, a bússola, no outro. Apertei o cinto da mochila cargueira, ajeitei o óculos escuro e o chapéu.
A caminhada com a mochila de 15 kg foi como um passeio no inferno. O calor seguramente chegava perto dos 50 graus. Não havia nenhum vento, apenas o criado pelos carros passando em velocidade pela avenida. Apesar de haver árvores pela calçada, a sombra estava quase perfeitamente na vertical em todas, pouco alívio cobria a calçada. Não havia pessoas na rua. As que vi em suas casas estavam muito bem protegidas dentro das sombras de seus pátios de entrada, dentro de seus portões, dentro de suas salas. Minha passagem levantava olhares curiosos — evidentemente pela minha aparência, um mochileiro branquelo de óculos e chapéu estilo Indiana Jones, mas também, certamente, pela minha loucura de fazer esforço físico em condições mas quais tal esforço é claramente um risco à saúde.
Dez minutos se passaram e eu estava inteiramente encharcado. Especialmente desconfortáveis estavam minhas pernas, dentro de uma calça feita de um tecido sintético perfeito para resistir à sujeira, a um pouco de frio, vento, espinhos, mas certamente não calor excessivo. Eu sentia gotas se acumulando nos pelos de meu peito como se eles fossem árvores pingantes durante um dilúvio na Amazônia. Sentia essas gotas virando rios que se precipitavam em direção a minha barriga, se acumulando na represa do cinto da mochila. Pela testa, pelas têmporas, mais riachos e corredeiras. O calor havia me transformado em uma floresta equatorial ambulante. Aos quinze minutos de caminhada, parei, arranquei a mochila, abracei uma árvore e tomei, em um único gole, um litro de água do meu cantil número um. O número dois já estava com água pela metade.
Recoloquei a mochila após cinco minutos. As alças dela já estavam bem lavadas e marcadas na minha camiseta. Concluí que provavelmente eu teria que jogar a camiseta fora, que tais manchas não iriam sair nunca mais. Nos passos cansados, ofuscado pela claridade mesmo de óculos escuro, eu me perguntava se alguma vez em minha vida havia sentido tanto calor. Sim. Dentro de uma sauna.
Fiquei meia hora enfrentando aquele alto-forno. Quando estava prestes a novamente quase desmaiar em outra sombra, ou talvez desabar no meio da rua, o Hotel Registon apareceu, como previsto, à minha frente. Um prédio de dois andares com um jeito de que um dia teve uma arquitetura de vanguarda, mas que, hoje, é datada. Certamente erguido nos tempos soviéticos, desgastado por dentro e por fora, mas vivo, com vários hóspedes perambulando pela recepção. Que bênção o saguão de entrada, escuro, bem protegido do sol insano por vidros com películas escuras, com a temperatura regulada pelo abençoado ar condicionado. Adentrar aquela sombra fresca me deu um alívio tão grande que a espera de dez minutos para falar com a única recepcionista (uma senhora de meia-idade que quando cheguei atendia um hóspede que parecia estar com muito sono) não me fez em nada reclamar. Fiquei distraído admirando o painel gigante instalado na parede atrás da recepcionista. Um mural vertical, curioso, mostrando a genealogia do dono do hotel: nomes e retratos dos tataravós, dos trisavós, dos bisavós, dos avós, dos pais, um exaustivo memorial. Aparentemente algum ancestral do empresário era alguém muito famoso, e ele fazia questão que todos soubessem disso.
A recepcionista confirmou que tinha quartos disponíveis e várias opções. A mais barata, que fiz questão de ver, era um quarto bem grande onde havia camas para umas dez pessoas, sem beliches. Algumas das pessoas lá dentro pareciam estar dormindo profundamente (se fosse a Espanha, imaginaria que seria a siesta da tarde). Descartei ocupar uma daquelas camas pois fiquei com medo de deixar minha mochila por lá enquanto estivesse passeando. Pedi para ver uma opção com mais privacidade e, por um pouco mais na diária, a senhora me ofereceu um quarto com cinco camas e banheiro, mas que estava vazio. Limpo, sem cheiros. Tinha uma janela que dava vista para um pátio interno coberto, sem iluminação, atrás de uma cortina cor-de-rosa. Por isso, era uma caverna; apagar a luz deixava o lugar totalmente mergulhado na escuridão. Mostrava-se bem judiado pelo tempo: os móveis de madeira eram gastos, as cobertas de cetim, cor burdô, desfiavam pelas bordas. O banheiro havia passado por reformas mal feitas, com partes da parede de cimento sem a cobertura de azulejos. O vaso sanitário e o chuveiro eram claramente relíquias dos tempos das URSS. O papel de parede bege, com flores, novamente remetia aos anos 80 ou 70. Mas nada disso me importava, já que o ar condicionado estava funcionando e muito bem; pelo quarto, circulava uma brisa fresca e massageante. Como não ficar com o quarto? Ainda mais porque o preço do pernoite, com café da manhã incluído, era uma piada, muito mais baixo do que pagaria por um lugar semelhante em Samarkand. Eis a bênção de visitar um local fora do circuito turístico.
Tudo resolvido, tranquei-me no quarto, torcendo para que nenhum outro hóspede aparecesse para ocupar uma das quatro camas além da minha (era, afinal, um quarto para dividir com outros hóspedes, se surgisse mais algum interessado). Tirei a roupa, tomei um banho e, lutando contra a tentação de tirar uma soneca, voltei às ruas, pelo menos desta vez sem a mochila cargueira. Passarei pouco tempo na cidade, pensei. Não tinha nem um minuto a perder.
O calor, que horror. Parecia pior. O vento agora surgia em alguns momentos, mas era uma lufada que parecia realmente ter saído de uma fornalha. Imediatamente tive que colocar os óculos escuros (para evitar o ar fervente nos olhos, não apenas a luz). Fui devagar, bem devagar, procurando árvores pelas ruas, caminhando pelas sombras sempre que possível. Nem dez minutos se passaram e na minha testa, novamente, voltaram os meandros de um rio tropical, cada vez mais caudaloso. Na minha testa e pouco depois nas minhas axilas, nas minhas costas.
Desci uma avenida rumo ao que o mapa indicava ser o mercado da cidade e, do lado direito, tive uma visão impressionante. Um prédio islâmico. Tinha a familiar cobertura do salão principal, com a cúpula azul da cor do céu, como em Bukhara e Samarkand, mas com um formato que eu nunca havia visto antes.
Tratava-se da khanaka Kasim Sheikh. A khanaka é um prédio islâmico destinado a abrigar as cerimônias dos fiéis de uma ordem sufi, geralmente construída junto a um mausoléu de um santo sufi e com frequência incluindo alojamentos para o pernoite de peregrinos. Em Termez, já havia visitado uma, a Kokildor Ota. O impressionante conjunto arquitetônico da Kasim Sheikh tem suas origens no século XVI como o local de descanso final do xeque Kasim que lhe dá nome, reverenciado sábio e líder sufi. A khanaka foi erguida com o investimento do então emir de Bukhara, mostrando como o poder do monarca era fundamentado no apoio que oferecia às irmandades sufis e no que em troca recebia delas. Em 1910, o conjunto foi ampliado, e hoje a khanaka não mais apenas um reduto de sufis; funciona como uma importante mesquita, aberta a todos. Talvez pelo seu uso corrente e pela sua popularidade, além do potencial de atrair turistas, o conjunto foi todo restaurado e encontra-se resplandecente, primoroso.
A khanaka é um cubo com três fachadas, cada qual com seus portais de linhas retas, primorosos, feitos de tijolos, como nas demais gloriosas construções ancestrais uzbeques. Nada, porém, chama mais a atenção do que o cilindro sob a cúpula azulada. Estreito, alto, azul escuro, inteiramente trabalhado com azulejos com padrões florais separados por linhas formando estrelas de 16 lados, mandalas sublimes, obras de cálculo de precisão e arte, além de dizeres em árabe. Um pescoço místico, celestial, que desafia a imaginação: como sequer começar a descrever tamanha beleza? O interior da cúpula também é sublime, mas, neste caso, a cor dominante é branca: mais estrelas, mais linhas, outra mandala para aproximar os fiéis do criador. O centro do círculo, sugando os olhos, arrastando a alma, fazendo o tempo irrelevante para o observador. Ao redor desse salão principal, como no mausoléu de Mazor-i-Sharif no Tajiquistão, salas separadas, ou claustros, para oração ou reverência. Deviam ser locais onde, antigamente, os sufis faziam seus retiros místicos.
Que estonteante a khanaka de Karmana. Como este local não é mais conhecido fora do Uzbequistão?
Voltei à rua. Comprei imediatamente uma garrafa de 1,5 litro de água e sequei metade dela em um único gole. A rua estava praticamente deserta, as pessoas continuavam escondidas do sol. O sol, aliás, estava bem à minha frente. Um clarão tão forte que eu quase não conseguia abrir os olhos mesmo com óculos escuros e chapéu.
Passei ao lado da entrada do mercado de Karmana, que está bem vazio também.
De repente, me senti desnorteado. Confuso. Para onde estava indo, mesmo? Tontura. Não havia uma única árvore. Só via o sol me engolindo. Não cai no chão, não desmaei. Mas entrei numa espécie de transe.
Estava apenas andando, quase sem consciência, rumo àquela luz imensa.
Vi uma rua surgindo à esquerda. Nada de especial. Decidi, sem conseguir pensar, entrar nela. Estava sem nada dentro da cabeça. Havia me tornado apenas uma fonte de suor ambulante.
Para onde eu estava indo?
Do outro lado da rua, consegui ver algo fazendo sombra. Era algo claramente muito antigo. Um mausoléu. É para lá que eu estava indo. Atravessei a rua. Corri para a construção, um cubo com fachada com detalhes em terracota. Havia uma entrada e, no interior, uma tumba e bancos para se sentar ao redor dela, além de sombra, SOMBRA. Ninguém lá dentro. Me sentei em um dos bancos. Suspirei profundamente. Joguei o chapéu e os óculos de lado, joguei a cabeça para trás, retirei com as mãos o que pude do suor que estava na minha testa, todo meu rosto estava molhado.
SOMBRA.
Fiquei dois minutos paralisado, ainda sem nenhum pensamento. Então, voltei a me encontrar.
Eu estava na construção mais antiga de Karmana. E era bem familiar. Lembrava muito algumas construções kharakanidas que visitei no Quirguistão e no Cazaquistão anos atrás. Como essas, o mausoléu era inteiramente de tijolos e terracota, sem azulejos. Lembrava também mais uma construção ainda mais velha, o mausoléu de Ismail Samani, em Bukhara, que visitei em 2003 e 2012. Eram, afinal, praticamente contemporâneos. O mausoléu de Samani e este, o mausoléu Mir Said Bakhron, datam respectivamente dos séculos X e XI, ou seja, do período de domínio da dinastia persa samanida e de início do período kharakanida.
A raridade de encontrar um "irmão" do mausoléu de Samani, um dos monumentos mais importantes de Bukhara, já era motivo suficiente para fazer a viagem até Karmana. O mais interessante e incomum deste mausoléu, o mais surpreendente, é o que existe em sua fachada. Prédios islâmicos geralmente têm alguma inscrição em árabe na entrada. Na Ásia Central, essa inscrição frequentemente aparece, gravada ou pintada, em azulejos colocados no portal de entrada das mesquitas e madrassas. No caso do mausoléu de Ismail Samani, entretanto, a construção é tão antiga que a técnica de azulejos esmaltados, usada para compor os dizeres em árabe, ainda não havia se tornado comum na Ásia Central, o que ocorreria apenas a partir do período timurida (século XIV-XV). A fachada do mausoléu de Samani em Bukhara é sem nada escrito. Tem apenas um caleidoscópio de padrões geométricos feito com tijolos, terracota. Semelhante técnica se vê no mausoléu de Aisha Bibi, no sul do Cazaquistão, também construído antes que os azulejos esmaltados estivessem disseminados, mas construído depois (séculos XI-XII) que o mausoléu de Samani. Diferentemente desses monumentos, o mausoléu Mir Said Bakhron tem inscrições em árabe na fachada, mas as palavras são escritas em alto-relevo com pedaços de tijolos. Em nenhum outro que visitei vi isso. As inscrições estão em um arco sobre a porta. A construção, então, ganha uma importância fundamental no estudo da evolução das artes decorativas islâmicas na Ásia Central. Ela representa um elo perdido entre as construções sem inscrição alguma, apenas elementos em terracota e tijolos, como o mausoléu de Ismail Samani, e as construções com as requintadas citações do Corão na fachada, lindas, feitas com tijolos esmaltados, que viriam depois.
Fiquei uma boa meia hora relaxando dentro do mausoléu. Talvez por causa do calor torturante no seu exterior, a construção causou em mim uma sensação de conforto materno. De útero. Estava protegido do mundo, de tudo no mundo que pode machucar, queimar, magoar.
Quando finalmente me animei a sair, percebi que havia chegado ao fim da minha tolerância com aquele sol. Peguei um táxi. Pedi ao motorista para me levasse ao hotel, mas ele se perdeu. E esse imprevisto me levou para fora de Karmana e para dentro de Navoi, a cidade moderna. Largas avenidas, muitas árvores. Totalmente diferente de Karmana. Me lembrou Tashkent, um assentamento seguindo as regras soviéticas. Se não fosse Karmana, não sei onde estaria sua alma uzbeque profunda.
No hotel, dormi por uma hora, até o anoitecer. Ao sair, a luz mágica do sol se enfraquecendo, dourada, me empurrou para mais uma visita à khanaka Kasim Sheikh. Sentei em um degrau com vista para a entrada principal e seu fluxo de fiéis vindo para as rezas do fim de dia. Saquei da mochila meu diário e escrevi até a escuridão não me deixar mais enxergar.
Uma noite clara, nítida, com vento fresco. Jantei algo num restaurante do lado de fora do hotel e subi para o quarto umas oito da noite. A expectativa era de que novamente fosse desmaiar e só acordar de manhã bem cedo (assim evitando o sol implacável). Mas não foi isso que aconteceu. Logo percebi que tive sorte com o quarto, mas essa sorte veio acompanhada de um golpe de azar maior que claramente anulava essa boa fortuna e ameaçava estragar toda a minha noite de sono.
A sorte: ninguém mais apareceu para dividir o cômodo comigo. Fiquei sozinho, eu e cinco camas, o banheiro e a TV. Seria uma noite de privacidade total, sem a possibilidade de encontrar um falador voraz com insônia, ou um sujeito sem higiene e com muitos odores corporais, ou um roncador poderoso, ou quem sabe gatuno de olho na minha mochila.
O azar: da janela voltada para o pátio interno vinha um ruído forte. No andar de baixo ficava um salão de festas, e por coincidência naquela mesma noite o salão estava ocupado por uma animada festa de casamento para dezenas de convidados. Música e dança. Algazarra e crianças chorando. Pratos colidindo com talheres. O ruído passava pela minha janela e em alguns momentos as notas mais graves da música faziam tremer as paredes, ecoavam em meu peito, eram marteladas sônicas. Com a luz apagada, estava cansado, tonto de sono e com plugs de ouvido, mas mesmo assim não conseguia dormir.
Liguei a TV em um canal aleatório em russo e assisti um filme de crime que não fazia nenhum sentido.
Karmana, 7h, 15/8
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