Sunday 15 April 2018

Nos Desertos, Nas Montanhas (XLVIII): Bishkek

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21/10/2012

Frio de outono, vento forte, tarde ensolarada. Em uma planície perto da cidadezinha de Burana, a cerca de 1h a leste de Bishkek, mais um fantasma do passado.

Os karakhanidas tiveram inúmeras capitais entre os séculos X e XII, entre as quais eu já havia visitado duas, Taraz e Özgön. Outra é a que encontro agora, chamada Balasagun. Fundada em algum momento entre os séculos VI e III antes de Cristo, após ganhar prestígio sob o controle dos karakhanidas ela foi tomada pelos mongóis na expansão irresistível que tiveram no século XIII. Dos guerreiros de Genghis Khan recebeu o nome de Gobalik ("cidade bonita"). Os mongóis se foram. Vieram outros conquistadores. Vieram terremotos. Hoje, a cidade bonita é acima de tudo um conjunto de pedras. Na planície, sobraram trechos erodidos de sua muralha, do centro de sua cidadela, as bases de alguns mausoléus... e a Torre de Burana, o seu símbolo mais conhecido, um dos monumentos arquitetônicos mais lembrados do Quirguistão. Meu motivo principal para vir até aqui.

A torre, ao que parece um antigo minarete e restaurada nos anos 1970, me lembrou dois outros minaretes gloriosos da Ásia Central. Primeiramente, o Khalon, de Bukhara, por causa da intricada geometria em terracota em sua superfície (que também, evidentemente, lembra a das superfícies dos monumentos karakhanidas em Özgön e Taraz). Por outro lado, como a torre de Burana é incompleta, faltando o topo, ela me lembrou o incrível minarete Kalta Minor de Khiva (Uzbequistão), que também é "decapitado". A diferença entre os dois é a ausência da lindíssima cobertura azulejada do Kalta Minor.

São parentes, mas Burana e seus 24 metros de altura tem sua própria personalidade. O principal elemento é um cenário natural majestoso ao redor dela, com as não tão distantes montanhas da serra Tian Shan, já completamente nevadas, no horizonte. O vento congelado, que sopra vindo das montanhas, antecedendo o inverno rigorosíssimo, causa longos arrepios.

Subir a torre é um exercício de paciência. No meu caso, havia um grupo de 15 pessoas no topo dela, e decidi apostar que não desceriam até eu chegar lá em cima. Mas, é claro, tive azar. No meio da subida pela escada escura e estreitíssima, cruzei com o grupo inteiro. Tive que praticamente me enfiar dentro do buraco de uma janela até que todos passassem, já que não havia espaço para uma pessoa subir e outra descer ao mesmo tempo. Mas valeu a pena. Linda vista das montanhas brancas.

Embora se acredite hoje que a torre tenha sido um minarete, não descubro informações sobre a mesquita à qual ela esteve um dia ligada, se é que de fato esteve. A se julgar pela lenda associada a ela (e sempre há lendas nestas vetustas ruínas), ser um minarete não era seu propósito original. A lenda, contada de boca em boca há séculos, fala de um rei desta região que tinha uma filha. Quando ela era ainda pequena, o rei, preocupado com o seu futuro, decidiu consultar videntes, perguntando a elas sobre o futuro da princesa. Todas falaram que ela seria muito feliz e teria uma vida longa, exceto uma. Esta vidente idosa lhe disse que, ainda que arriscasse ser executada, ia lhe falar a verdade: a menina teria um destino trágico e, em sua maioridade (fontes dizem 16 ou 18 anos), iria morrer. O rei ficou irado. Mandou construir uma alta torre e, no alto dela, um quarto para a filha. Lá ela iria morar, com contato com quase ninguém, para evitar riscos.

Quando a jovem chegou por fim à maioridade, sã e salva, o rei estava exultante. Em comemoração, ordenou que fosse levada à princesa uma cesta de frutas. A jovem foi provar de uma das frutas e foi surpreendida por uma dor aguda na mão. Depois, desabou no chão. Escondida em meio às frutas, havia uma aranha peçonhenta.

A menina morreu, concretizando a profecia - e a torre permaneceu pelo resto dos tempos vazia, de luto.

Verdade ou não, algo triste, amaldiçoado, alimentou a vegetação rasteira ao redor da torre, se estendendo pelo vasto terreno enrugado. O mato rasteiro tem muitíssimos cardos, uma planta cheia de espinhos, com uma flor igualmente dolorosa.

Hoje, os cardos são moldura para celebrações de casamento. Do alto da torre, vejo lá embaixo o mesmo grupo de cerca de 15 pessoas que aqui estava antes. Ele saúda um casal de noivos - a noiva, com seu vestido branco, o noivo, com smoking e gravata borboleta. As pessoas circundam o casal, formam ao redor deles o desenho de um coração. Olho, não penso. Tiro uma foto. Volto a olhar para os cardos no vasto campo.

Quando volto de novo a olhar para o grupo, percebo algo estranho ao lado dele. Desço da torre, vou ao encontro de minha curiosidade. São dezenas de tábuas de pedra do tamanho de lápides, moldadas, reunidas e cravadas na terra, como plantas semeadas em um jardim. São esculpidas, mostrando rostos de homens barbados. Tem um quê de viking. Verifico uma a uma, fechando os olhos para me proteger do clarão do sol. Não há inscrições.

Em quirguiz, são chamadas de balbals. Segundo historiadores, essas placas de pedra estão associadas ao povo saka, que habitava toda a região no período antes de Cristo, e também aos povos túrquicos que passaram por aqui a partir do século VI d.C., vindos do oeste da China. Acredita-se que eram celebrações de antepassados e que estavam, originalmente, todas colocadas próximas a sepulturas. O substantivo lápide provavelmente não é o mais correto para defini-las, já que as lápides têm mais uma função de identificação do que de adoração ou celebração do morto, enquanto que no caso dos balbals é o contrário.

As pedras esculpidas foram trazidas de toda a região, algumas de bem perto do lago Issyk-Kul. Na certa, o que se vê ao redor da Torre de Burana é uma mistura maluca de balbals de vários períodos - sakas e túrquicas, séculos completamente diferentes. Memórias perdidas de antepassados perdidos, hoje reduzidas a meras curiosidades.

Volto-me aos visitantes, aos noivos. A festa continua, alegre. Abraços, cantoria. E mais vento vindo das montanhas. Vários tempos, vários espaços, e eu.


* * *

A cada dia que exploro Bishkek, a cidade me surpreende mais. Tenho a impressão que metade da população ou mais é de origem russa. Todos os dias, a caminho da escola, se encontram traços de Moscou na capital quirguiz. Velhinhas russas vendendo flores em uma esquina, casais loiros de olhos azuis conversando no familiar idioma no ponto de ônibus. Tudo está escrito em russo e quirguiz e, ao meu ouvido, comparecem na maior parte das situações palavras em russo. Bem diferente do que se encontra em cidades do interior como Naryn ou Kochkor.

O clima parece ser perfeitamente continental - no verão, como eu vi, é um tremendo calor; no inverno, tudo indica, o frio é igualmente terrível. Nesta semana, já em outubro, tivemos neve. Uma neve não tão densa, mas suficiente para deixar os carros encobertos. Pela primeira vez desde que cheguei à Ásia, coloquei minhas luvas e dois casacos.

Nas imediações das avenidas Soviet (atualmente com o nome devidamente "nacionalizado", Yusup Abrahmanov, mas ainda amplamente conhecida pelo nome antigo), Erkindik e da rua Toktogul, encontro vários cafés e restaurantes excelentes. No domingo, descobri meu lugar favorito até agora na cidade. Na verde Erkindik, a avenida que liga a Chuy à estação ferroviária, há um café chamado "Cafeteria" que oferece bolos, café e refeições em um ambiente leve. Jazz no ar. Caro para os padrões locais, bem europeu em estilo. Um café com uma torta de framboesa custa 333 soms (aproximadamente US$ 5). Paga-se pelo ambiente, pela tranquilidade e pela alienação. Olhando para as árvores pela janela, dá para ter a impressão que se está em Paris.

No apartamento de Ekaterina, já me sinto em casa. Mesmo dormindo no chão, minhas noites são de um sono profundo, delicioso. Os jantares são o esperado - sopas todas as noites. Nunca fui grande fã de sopas, mas não posso reclamar, são bem generosas, bem feitas e bem russas, salianka, borsch. O café da manhã é um pouco mais complicado. Prefiro sempre comer algo leve e doce no café, mas Ekaterina prepara comida pesada e salgada, como se fosse um almoço. Na quinta-feira, o desjejum foi macarrão à bolonhesa. Na terça, foi uma espécie de canjica, densa e com gosto de nada, apenas sal. E a bebida é sempre chá, apenas chá.

Ontem, a caminho da escola, tive um lembrete de que, apesar de estar me adaptando rápido à minha nova vida, Bishkek está longe de ser minha cidade. Foi um lembrete também daquela tensa experiência na fronteira entre o Pamir e o Quirguistão, a caminho de Osh.

Era de tarde, fazia muito frio, mas não nevava. Um policial me abordou, notando que eu era estrangeiro. Usava quepe e uniforme. Foi educado, pediu meu passaporte. Explicou que buscava "narcóticos". Eu não levava meu passaporte - sigo a regra simples de que, sempre que for possível, é melhor não carregar o documento original, por desconfiança de que policiais possam "confiscá-lo" sem explicação; em vez disso, é preferível levar uma fotocópia.

Fingindo falar um russo muito pior do que o russo que eu realmente falo, entreguei a cópia a ele e me fiz de inocente. Ele cobrou o documento original, eu disse que não estava entendendo. Ele então fez questão de revisar toda a minha mochila. Abriu meu estojo. Repetiu três vezes como tinha gostado de uma caneta que encontrou lá dentro. Então, a pediu de presente. Novamente, fingi que não entendi e rapidamente fechei o estojo, coloquei-o na mala. Ele fez uma cara de quem não sabia como reagir e me liberou. Segui meu caminho.

Mantive a visão de que ceder a pedidos de suborno, por menor que eles sejam, é algo muito prejudicial para este país que se beneficiaria enormemente da visita de mais turistas. Incentivar esse comportamento é prejudicar o turista que vier depois de mim, incentivar a visão de que os visitantes são minas de ouro a serem exploradas sem pudor pelos locais. Porém, tenho cada vez mais a impressão de que em algum momento terei que ceder.

Na escola, tudo muito, muito difícil. Tenho que decorar uma quantidade brutal de vocabulário todos os dias. Há algumas professoras muito ruins, sem paciência nenhuma. A gramática me é apresentada por elas sem explicações mais detalhadas (e em russo, na maior parte de vezes). E, de quebra, tenho o problema da preguiça. A sensação de fim de viagem e de que, ainda, sou um turista, acima de tudo.

Bishkek, 21/10, 13h16

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