Thursday 25 May 2023

Novas Fronteiras (XXV) - Cratera de Darvaza, Turcomenistão



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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

24/8/2018

Os desertos do Uzbequistão e do Cazaquistão não são exatamente o que algumas pessoas podem imaginar quando pensam em deserto. A referência de muitos são as dunas do Saara; a areia dourada, macia, em que nada existe. O vento fervente acariciando essas areias, moldando-as, criando rugas. No deserto do Kyzylkum, que ocupa boa parte do território uzbeque, a areia que voa com o vento não é o que domina. O panorama é de chão seco, duro, coberto de forma esparsa por arbustos ásperos. No Aralkum, o deserto que substituiu boa parte do Mar de Aral, há as árvores retorcidas saxaul. Há areia, mas não é dourada, e não há dunas. São desertos que talvez poderiam florescer se caísse uma boa chuvarada de uns dias.

O Karakum é diferente.

Pegamos a estrada saindo da região de Konye Urgench em direção ao sul, quiçá a mais importante rodovia do Turcomenistão, a única a rasgar o país pelo meio, pelo deserto. O asfalto era realmente ruim logo no início do trajeto, cheio de buracos e trincas. Depois de umas dezenas de quilômetros, melhorou, e foi melhorando mais. À medida que foi melhorando, o cenário ao redor lembrava cada vez menos a familiar terra entre os rios Syr Darya e Amu Darya. O chão seco de arbustos foi dando espaço à areia, que, embora nunca chegue a ocupar toda a paisagem ao redor, é bem mais dominante do que no norte. Por esse cenário, circulam livremente dromedários, e tantos deles que, na estrada, há placas advertido os motoristas sobre o risco de que uma das bestas distraídas se aventure em cruzar a via. Muito estranho ver as placas. Muito estranho ver as areias. Pedimos para T parar por alguns segundos no meio-fio; a desculpa era que F queria urinar. Mas, na verdade, o que queríamos era tirar fotos da placa e ouvir o Karakum.

Vento, areia nos olhos, um barulho que parecia com o guizo de uma serpente, bem fraco, intermitente.

Ainda pelo chão, alguns arbustos. Mas a areia é pura, é a areia dos desertos da imaginação.

Até o sol, o calor, parecem mudar. O sol é menos dourado, mais branco. O calor, menos úmido.

Um outro mundo. Uma outra Ásia Central, de transição entre a terra milenar dos persas ao sul e o norte após o Amu Darya, com seus oásis, antecedendo as grandes estepes.

Logo estávamos de volta ao carro por insistência de T. Ele dizia (aliás, já havia dito uma dezena de vezes desde o início do dia) estar preocupado em se perder quando saíssemos da estrada, mais perto do anoitecer. Precisava de luz para fazer a navegação. Não demorou muito: uma hora depois, ele parou o carro no acostamento sem se explicar. Era uma rodovia com pistas nos dois sentidos. Olhou para o acostamento do outro lado da via, no sentido contrário ao que vínhamos, à esquerda. Coçou a cabeça. Olhou para os dois lados e cruzou a pista do sentido oposto, entrando com o carro diretamente no deserto do outro lado. Estava no lugar certo: à frente, havia uma tênue trilha de pneus na areia. Morretes impediam uma visão clara do que nos esperava. O veículo era perfeito para esse desafio, mas, sem placas de informação, sem asfalto, sem visão do horizonte, sem nem sequer rastros de pneus em alguns trechos, me senti inteiramente à mercê da habilidade de T que, honestamente, não parecia saber bem por onde seguir. Entre as curvas e subidas, parou uma, duas vezes. Virou à direita, parecendo sair do caminho principal.

Curvas, subidas, os pneus levantando os areais, descidas. Velocidade, lentidão. Nessa altura, o sol já tinha se despedido. Estava ainda claro, mas a noite chegava rapidamente.

Logo todos no carro estavam em silêncio. Não se ouviam nem mesmo os comentários bobos que eu e F trocávamos quase o tempo todo, as piadas para matar o tédio. F, como eu, parecia receoso.

E então, algo surgiu. Entre os morros.

Um lugar verdadeiramente único. Não só na Ásia Central.

O portal do inferno.



Você fecha os olhos. Ouve o ruído das chamas, queimando, queimando eternamente. O vento noturno no deserto é bem frio, em total contraste com o bafo que vem da boca de Lúcifer. Esse vento do deserto, quando sopra no sentido certo, permite chegar bem perto, abrir os olhos, vislumbrar seu centro, suas chamas impressionantes que brotam como fantasmas das profundezas. Entretanto, ele é traiçoeiro, e frequentemente muda de direção. O que era antes o seu escudo contra o calor, refrescando seu rosto, aliviando seus olhos, agora sopra em suas costas ou em sua orelha direita. E então vem uma lufada escaldante, dolorosa, mais de cinquenta graus. Você fecha os olhos. Você quase grita quando percebe que sua pele está queimando. Suas pernas são empurradas pelo vento traiçoeiro, você quase perde o equilíbrio e cai na cratera, mas, por um milagre, se recupera. Se vê obrigado a se afastar. Muda o vento novamente, de novo em seu rosto, você abre os olhos, se aproxima do imenso buraco e vê suas labaredas uma vez mais. Você é como um pirilampo voando ao redor de uma lâmpada que pode queimá-lo. O pirilampo não pode evitar. Para ele, a luz, o calor, são hipnóticos, são irresistíveis.

As portas do inferno. Sim, é verdade. É verdade tudo o que dizem.

É a cratera de Darvaza, um dos locais mais famosos do Turcomenistão. É impossível descrevê-la fazendo jus ao impacto arrebatador de encontrá-la no Karakum, no meio do nada. Grosso modo, é um buraco de cerca de 70 metros de diâmetro e 30 metros de profundidade. Dentro dele, há pedras negras e fogo. Fogo incessante, quase um templo zoroastrista natural. As labaredas flutuam em diversos tamanhos diferentes. Bem no centro do buraco, meio escondida dos olhos pelas irregularidades no interior da cratera, há uma chama maior, alta, talvez o demônio em pessoa. Para proteger os visitantes, a cratera é isolada por uma cerca. Não que seja impossível pulá-la, caso o visitante queira enfrentar o calor e se oferecer em sacrifício a Satã.

Não é um fenômeno natural. A história mais contada sobre sua origem remonta aos tempos soviéticos, mais precisamente a 1971. Na época, geólogos acreditavam que a área guardava ricas reservas de petróleo e decidiriam fazer uma perfuração exploratória. Nisso, a broca encontrou uma caverna subterrânea com gás, não muito profunda. O terreno colapsou, dando origem à cratera. O gás que escapava, aparentemente, foi considerado um risco para comunidades que viviam por perto, e por isso os cientistas tomaram a decisão de atear fogo no buraco. A expectativa dos geólogos era de que o gás do bolsão fosse todo queimado rapidamente. O surpreendente fato de a cratera queimar até hoje indica que, na verdade, ela levava a outros túneis subterrâneos que davam acesso a uma reserva de gás muito maior. Mas há uma controvérsia nessa história. Alguns turcomenos sustentam que, embora a cratera de fato exista desde os anos 1970, a decisão de atear fogo nela teria sido tomada apenas nos anos 1980.

Mais recentemente, em 2010, o presidente Berdimuhamedow, após visitar a cratera, chegou a anunciar que ela seria coberta — na certa, pensava que poderia lucrar mais explorando o gás natural do lugar em vez de vê-lo se esvair nas labaredas. A ordem nunca foi cumprida. Talvez ele tenha mudado de ideia pensando que valia mais a pena preservar o lugar tal qual é hoje para atrair turistas (num país em que o turismo é um setor ínfimo da economia). Talvez, simplesmente, acreditou que não valia a pena (o Turcomenistão já é um dos maiores produtores de gás natural do mundo de qualquer forma). Talvez tenha se esquecido, talvez tenha simplesmente adiado. O presidente é misterioso.

À beira das portas do inferno, continuei abrindo e fechando os olhos. A cabeça voava para longe quando estavam fechados. Lembrei de repente, aleatoriamente, da sensação de estar em um congestionamento em São Paulo durante uma chuva de verão com meu primeiro carro. Dilúvio lá fora, dentro, como o Chevette não tinha ar condicionado, um calor horroroso. Abria um pouquinho a janela para me aliviar e tudo ficava molhado. Pensei: ah, Darvaza não é como aquele inferno daqueles verões à beira do Rio Pinheiros. É até agradável ficar à beira da cratera quando o vento está na direção certa. Só quando ele muda, e o calor da fornalha atinge a testa, é muito pior do que qualquer inferno congestionado.

Em meio a essa insólita associação espontânea de Darvaza com minha longínqua cidade natal, veio mais um daqueles momentos sempre desconcertantes para mim. Ouço pessoas falando em português do Brasil.

Nesta viagem pela Ásia Central, ainda não havia encontrado brasileiros — em minha viagem de 2012, sim. Foram dois encontros que me deixaram emocionado. Primeiro, em Bukhara, fui surpreendido por um casal endinheirado pagando uma excursão com guia próprio. Depois, em Bishkek, fiquei amigo de Flávio, o simpático brasileiro que estudava russo, como eu, na mesma escola, na capital quirguiz. Neste caso, porém, me parecia muito menos concebível encontrar brasileiros: em um país complicado e caro de se visitar, pouquíssimo conhecido, num lugar isolado, cercado de deserto. Ainda que improvável, aconteceu, e eis que, à beira da cratera de Darvaza, troco sorrisos com cinco compatriotas, dois senhores e três senhoras aposentados.

"É como o inferno, mesmo", disse com tom de surpresa uma das senhoras, com cabelos loiros tingidos e mantidos no lugar por uma caprichada permanente, usando roupas de esporte. "É nada! O inferno mesmo são os congestionamentos em São Paulo!", respondi, dando risadas. Ela concordou com risadas ainda mais fortes. E todos então gargalharam. Demos risadas como bobos. Pensei: só eles podem me entender. Só eu posso entendê-los. Que alegria não me sentir um estranho por alguns minutos que seja. Que alegria é encontrar a confirmação de mim mesmo. Mesmo que eles todos sejam completos estranhos para mim, que eu não saiba seus nomes. No Brasil, talvez já tenhamos nos cruzado na rua e tenha sido um momento de completa indiferença. Não aqui. Existe uma intimidade instantânea, comovente. Só quem passou por algo assim pode entender. Que prazer encontrá-los, que prazer sentir um calor no coração mais forte do que o calor da cratera de Darvaza.

Voltamos a olhar para a cratera e as risadas foram desaparecendo, substituídas pela fascinação.

Nos despedimos com abraços.

Pouco depois, eu e F reencontramos T não muito longe da cratera. Ele havia parado o carro ao lado de uma maravilhosa iurta, grande, com o chão tomado por tapetes e espaço de sobra para nós três dormirmos. Havia dentro dela um círculo de pedras para receber uma fogueira, o que seria uma necessidade mais tarde, estava bem frio. Do lado de fora, vi que ao menos parte do teto estava coberto com lã de dromedário. Tiramos as mochilas do bagageiro do carro e nos ajeitamos na iurta enquanto T preparava o jantar. Acendeu uma fogueira do lado de fora da barraca, colocou umas pedras ao redor e nelas apoiou longos espetos com grossos e suculentos pedaços de carne de carneiro, previamente salgados e temperados. Estávamos famintos, e o cheiro da carne no fogo era simplesmente delicioso. Nos sentamos em cadeiras à beira da fogueira e F me ofereceu uma das cervejas que tivera a sabedoria de comprar em Dashoguz. O fogo. O cheiro do churrasco. A cerveja. A lua, quase cheia. A areia amarela do deserto sendo consumida pela noite. No céu, o clarão, bem visível, da cratera, escondida atrás de uma colina.

Se juntou a nós outro turista, um ser muito curioso. Ele não iria passar a noite na mesma iurta que nós, mas sua barraca estava perto e o jantar era para nós e para ele, pois seu guia também tinha tido a mesma ideia de T, preparar um churrasco noturno, e logo combinaram de juntar as carnes.

Seu nome era J. Um senhor americano, com barba curta e bem branca, 71 anos, chapéu fedora. Um jeito manso de falar, menos quando o tema eram viagens. Aí se empolgava. J era o que poderia se considerar um viajante profissional. Viajava constantemente há décadas e, sendo jornalista, encontrou uma maneira, com astúcia, de viajar sendo pago para isso. Escrevia crônicas para jornais e revistas, tinha seu próprio blog e publicava livros. Um sonho de muitos jornalistas, posso dizer, sendo eu próprio jornalista de formação. Mas é um desejo que pouquíssimos conseguem concretizar. Eu nunca havia encontrado um desses sortudos e, reconheço, minha primeira reação ao ouvir sobre o estilo de vida do americano foi me consumir de absoluta inveja. Viajava em estilo, com dinheiro. Seu guia, um jovem alto e forte, turcomeno com um inglês absolutamente perfeito, trabalhava apenas para ele. Era seu motorista, cozinheiro, tradutor e guia.

J dizia haver estado em mais de 120 países, uma marca que acredito que nunca chegarei a bater e, honestamente, nem sei se gostaria de bater. Parece cansativo demais. E isso é o que indicava J com suas palavras. Suas jornadas eram sua vida, mas ele se dizia esgotado. Talvez tentando convencer a si mesmo que era hora de atirar a âncora, se permitia emitir uma ou outra frase como "esta é a última viagem" ou "não acho que farei outra viagem como esta". Mas eu estava certo de que ele iria viajar até morrer.

Um claro sinal disso — se dizia esgotado, mas não se cansava de falar das suas aventuras passadas. Eu e F parecemos tacitamente concordar em não impedir sua narrativa enquanto esperávamos sair o churrasco. Entre um e outro gole de cerveja, ouvíamos, pacientemente, o velho, que tecia seus confusos fluxos de consciência alimentados pelas cores da memória. Vietnã, Camboja, Índia. Brasil, toda a América do Sul. África. Mas a Ásia, ah, esse era seu continente favorito. Falou que já havia estado no Turcomenistão, "muito tempo atrás", e começou a lembrar. "Não era muito diferente." Pedi que elaborasse. Não elaborou. Em segundos, já estava de volta ao Vietnã. Fiquei com a impressão de que na verdade J não tinha muitas recordações do seu passado em terras turcomenas (talvez esse fosse um bom motivo para voltar agora). Aliás, ele não parecia nem estar muito ciente de que estava de volta ao Turcomenistão. Apenas demonstrava que entendia que estava viajando, e que as lembranças de algumas viagens passadas eram fortes demais, ocupavam espaço demais na sua cabeça, mais do que outras. Talvez se algumas dessas lembranças fossem eliminadas pela sua boca pudesse apreciar melhor aquela noite deliciosa no meio do deserto. Reclinei-me na cadeira. Do Vietnã, ele já tinha ido para a Tailândia levando eu e J a tiracolo.

Falava em ondas. Lembrava de algo, então falava rapidamente, olhando para o fogo. Esssas lembranças eram compartilhadas, e ele passava a falar um pouco mais devagar, então voltando os olhos para mim e F. Então, vinha outra lembrança e ele voltava a entrar em transe. Foi assim por uma hora, mesmo depois da chegada da carne, que ele pouco comeu.

Entrou em dado momento em sua atual viagem, à qual se referia como se fosse uma viagem sua do passado. Começara na própria Ásia Central. Depois de Darvaza pegaria um barco, cruzaria o Mar Cáspio até o Azerbaijão. Depois, pelo Cáucaso, iria até a Turquia. Depois, da Turquia até a Europa Ocidental e então de volta aos Estados Unidos. Tudo muito vívido, suas palavras, coloridas, quentes, trepidando de excitação. Iria escrever algo sobre a odisseia para o The New York Times.

Foi então que decidi arriscar uma pergunta ao grande aventureiro. Quem sabe, dessa vez, respondesse em vez de se perder em devaneios. Era uma pergunta sincera, eu realmente queria saber o que ele responderia. "J", disse eu, me inclinando em sua direção e mirando fixamente seus olhos opacos, "você é tão viajado... após tantas andanças, por tantos lugares, e agora com mais de 70 anos, o que você aprendeu? O que as viagens te ensinaram?"

"Uma excelente pergunta", respondeu, abrindo um grande sorriso. Esperava que hesitasse, que demorasse um pouco para responder enquanto refletia. Mas essa reflexão, claramente, já havia sido feita anteriormente por ele. E desembestou a falar com a empolgação contumaz.

"Aprendi que, em todo o lugar, as pessoas são iguais. Por exemplo, o amor de uma mãe pelo seu filho, isso é universal. Mas não é só isso, há muito mais. Você conhece pessoas falando línguas que não entende, com culturas muito diferentes das suas. Conhece pessoas que têm vivências que você não tem nem terá. Mas, no momento em que você percebe que você tem algo em comum com elas, muito em comum, a viagem passa a ter outro significado. Quando você aprende isso, de verdade, nunca é uma viagem, é como passear na sua cidade, no seu bairro."

"Também aprendi sobre políticos. Pessoas espertas não viram políticos, em nenhum lugar. As pessoas são felizes se não se envolverem nisso. É muito difícil conciliar diferentes visões. Mais felizes são as pessoas que não têm essa ambição."

Talvez, se todos tivermos consciência dos valores universais, o que nos une a todos, e formos empáticos e solidários, a política nem seja mais necessária.

Com um resto de cerveja nos copos, fizemos um brinde.

Ashgabat, 20h, 25/8

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Thursday 18 May 2023

Novas Fronteiras (XXIV) - Konye Urgench, Turcomenistão



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24/8/2018

Tinha sido construído como um mausoléu real coletivo, ao que parece, mas recebeu o nome de Turabeg em alusão a uma princesa mongol. A ala norte gemia por entre suas portas. Minha ignorância em relação a esses conquistadores oníricos, tão poderosos em seus dias, me fez duplamente um estranho aqui. Eu não conseguia me lembrar de nenhum monumento exatamente como este. Um santuário alto, de 12 lados, ele continha uma câmara mortuária hexagonal e era mais rico, mesmo deteriorado, do que qualquer coisa em Khiva. Sob os arcos cegos, os elementos decorativos em formato de favos de colmeia se acumulavam em agrupamentos densos, recobertos de um brilho sutil de campânula e azul escuro e um opaco verde opala. Expostos e aparentemente frágeis, eles jaziam dependurados com uma força enigmática, enquanto que, acima, uma cúpula destruída projetava um estilhaço de turquesa no céu.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia (1994)


Eu o chamarei assim: O Templo dos Pombos.

Ninguém sabe ao certo o que é o mausoléu de Turabeg Khanum, provavelmente o mais incomum monumento da Ásia Central, capaz de superar em beleza, ao gosto do observador, até mesmo as joias rutilantes de Samarkand e Bukhara. O "ao que parece" da impactante descrição de Colin Thubron é o escritor se rendendo ao fato de que qualquer refletir sobre ele é fundamentado em alguma especulação. O prédio, estonteante em seus detalhes decorativos quase na mesma medida que misterioso, fica na entrada da vasta área onde estão reunidos os tesouros arqueológicos de Konye Urgench, logo ao lado da guarita onde se vendem as entradas. Sua antiguidade o tornou um enigma permanente, deixando perplexos até mesmo os locais, que parecem tratá-lo com um grau de veneração especial.

Para explicar a existência deste monumento, suas raras características, é preciso primeiramente invocar a história geral do igualmente impressionante sítio arqueológico de Konye Urgench, uma área desabitada de 3,5 quilômetros quadrados ocupada apenas por santuários e ruínas.

Konye Urgench ("Velha Urgench"), antigamente conhecida como apenas Urgench ou Gurganj, foi a capital dos khoresmshahs, a dinastia que dominou uma vasta área da Ásia Central imediatamente antes da chegada de Gengis Khan, no século XIII, e diretamente culpada pela vinda do conquistador — sempre se repete a infame história do assassinato de emissários mongóis pelo governante khoresmshah em Otyrar, no sul do Cazaquistão, causando a ira do conquistador e levando-o a varrer a cidade dos mapas (como vi visitando suas ruínas de Otyrar em 2012). Após esse início de dar calafrios, o moedor de carne de cavaleiros das estepes seguiu, invadindo as terras do atual Uzbequistão e, finalmente, chegando a Gurganj, arrasada por Gengis em 1221. Até então, os khoresmshahs já haviam mostrado astúcia e habilidade de sobrevivência ao resistir durante a ascensão e queda de quatro impérios que reivindicaram para si a Ásia Central: o dos kharakanidas, o dos turcos seljúcidas, o dos gaznévidas e o dos caraquitais. Mas os mongóis seriam um golpe mortal. O império nativo da Corásmia, que em seu apogeu controlava o atual Turcomenistão, o norte do Irã, Samarkand e Bukhara e o sul do Cazaquistão, foi conquistado rapidamente.

Gurganj, porém, teria uma sobrevida, assim como, ainda que enfraquecidos, os próprios khoresmshahs. Nessa segunda encarnação, Gurganj não seria mais a capital de um vasto império como o de antes de Gengis, mas recuperaria muito de seu brilho, pelo menos aos olhos de visitantes. Ibn Battuta, o lendário viajante nascido no atual Marrocos, esteve em Gurganj na metade do século XIV e, no seu diário, assim a descreveu:

(...) A mais vasta, a maior, a mais bonita e mais importante cidade dos turcos. Tem bons mercados, e ruas amplas, e um grande número de construções e fartura de produtos; ela treme com o peso de sua própria população.
- H.A.R.Gibb, As Viagens de Ibn Battuta A.D. 1325–1354 (Volume 3)

Com a ascensão de Tamerlão, Gurganj aceitou, nominalmente, ser subjugada. Mas um imprudente monarca khoresmshah chamado Yusuf Sufi depois mudou de ideia e, por isso, viu sua capital cercada pelas forças do inimigo em 1379. Em vista da exigência de rendição, Yusuf Sufi enviou uma carta a Tamerlão, que comandava em pessoa as tropas, sugerindo que, em vez de o conquistador enviar seus soldados para saquear a cidade, os dois líderes resolvessem a questão cara a cara, em um duelo entre eles mesmos. Yusuf Sufi na certa não acreditava que Tamerlão, que mancava permanentemente como resultado de um ferimento na juventude, fosse aceitar o desafio. Mas ele aceitou. O conquistador pareceu no local e hora sugeridos com sua indumentária de duelo — enquanto que Yusuf Sufi, covarde, decidiu se abster. Isso teve o efeito, evidentemente, de diminuir o moral dos defensores e elevar o dos atacantes, que, por fim, saquearam a cidade. Yusuf morreu em algum momento durante o cerco.

Os timuridas esperavam que então Urgench não fosse mais dar dor de cabeça e, em nome de benefícios comerciais e estratégicos, a cidade foi preservada. Mas a imprudência dos khoresmshahs aparentemente era uma maldição. Menos de dez anos depois, em 1388, provavelmente por influência do maior rival de Tamerlão no norte (Tokhtamish, o khan da Horda Dourada, um reino-herdeiro do império de Gengis), os khoresmshahs decidiram novamente se revoltar. Desta vez, Tamerlão não seria piedoso. A cidade foi demolida com selvageria sistemática durante dez dias; membros da família de Yusuf Sufi, que ainda governavam a cidade, foram chacinados, e o importante centro de conhecimento, cultura e religião simplesmente deixou de existir. Por fim, em um gesto simbólico, Tamerlão mandou plantar cevada em toda a área da antiga cidade. Urgench, então, se tornaria um dos maiores exemplos do que o conquistador poderia fazer caso seus vassalos ousassem contrariá-lo. A cidade nunca mais existiu no mesmo lugar; o centro urbano chamado Urgench que existe hoje, e visitei antes de Khiva, fica no Uzbequistão, a dezenas de quilômetros.

A vasta área do massacre tem cor de barro e areia e ocupa uma monótona planície interrompida quase que apenas por arbustos e uns poucos monumentos que, incrivelmente, sobreviveram à barbárie de Tamerlão. Um deles é o Turabeg Khanum.

Como Thubron, nunca vi um prédio igual em toda a Ásia Central. É de se coçar, muito, a cabeça.

De fora, a melhor suposição é que, de fato, se trata de um mausoléu. Um mausoléu gasto, semidemolido pelos elementos, o que lhe dá a força que os grandes monumentos reconstruídos do Uzbequistão já não têm. Aparentemente, está sendo restaurado, mas o trabalho anda bem lentamente e não há andaimes nem pedreiros por perto. Sua fachada é de sólidas e altas paredes de tijolo exposto, com frisos que revelam detalhes tentadores do que um dia foram enfeitiçantes linhas de tijolos azuis, trabalhadas com o capricho dos melhores artesões da Ásia. Há um portal na entrada, retangular, como o das madrassas. Um perfeito alinhamento de linhas de tijolos fazendo o contorno do retângulo vertical, três fileiras, e entre elas o lugar onde um dia ficavam os azulejos. Linhas retas perfeitas, direcionando o olhar para o centro, para a entrada, chamando. No alto, uma cúpula destruída, novamente como descreveu Thubron: é possível ver o que sobrou do que seria sua superfície externa, com uma parte da cobertura de azulejos azuis (seguindo perfeitamente a cartilha da arquitetura timurida), mas o que sobrou principalmente é a sua estrutura interna, outrora totalmente coberta, feita de tijolos ocres e sem decoração. A fachada, além do portal, tem ainda 12 faces, cada uma com nichos de tijolos, onde bem poderiam, na minha imaginação, um dia terem descansado estátuas, num eco de templo grego ou romano. Na parte superior de cada um desses nichos externos, um trabalho de reentrâncias (chamado muqarna) que lembra os tetos de cavernas, estruturas azuis que ocultam a si mesmas, vistas mais frequentemente em mihrabs, o nicho em mesquitas que marca a direção de Meca. Um trabalho impressionante que não chegou inteiro ao século XXI, mas, o que chegou, é prova de uma suntuosidade incomum.

Na entrada, encontrei mulheres que puxaram o véu para se garantirem cobertas antes que adentrassem, denotando o sentimento de que se trata de um lugar sagrado. Havia uma porta com uma tela estilo mosquiteiro logo após o portal, claramente instalada pelos restauradores trabalhando no local. Empurrando-a se tem acesso a uma antessala que, novamente, me impressionou pelo que trazia na parte superior: uma repetição do trabalho de teto de mihrab dos nichos externos, mas, neste caso o centro desmoronou, deixando um buraco onde se vê claramente a parte interna da cúpula de tijolos, nua. O lugar, assim como todo o teto interno do complexo, é hoje residência de pombos. Os arrulhos são altos, mas poucas aves são visíveis no teto, ficam em algum ponto invisível onde estão suas crias. As aves vêm e vão constantemente, aguardando o momento certo em que a porta com o mosquiteiro é aberta para fugir e voltar. O barulho delas, suas asas batendo e seu canto repetitivo, ecoam e ecoam. Não ouvia mais nada, nem as mulheres à minha frente, conversando, nem o vento lá fora; só os arrulhos, terminando e recomeçando, como um mantra, como um elemento a mais de hipnotismo.

E então, após essa antessala, o salão principal do edifício.

Nada pode preparar o visitante para o teto. É tão incomum em comparação com qualquer teto de prédio religioso da Ásia Central, tão diferente. Seus parentes mais próximos talvez sejam os intrincados tetos dos grandes templos de Isfahã, no Irã. Na Ásia Central, ele não tem paralelo. O Registan de Samarkand captura o visitante com a majestade de seu conjunto arquitetônico perfeito, as três madrassas erguidas para acompanhar o sol como se juntas fossem um pequeno planeta Terra. Em Bukhara, a madrassa Mir-i-Arab entorpece por suas cúpulas azuis, por ser um prédio elegante que inspira o misticismo que só em Bukhara pode ser encontrado. Mas, em ambos os casos, a arquitetura tem uma clara função. A elegância, a magia, têm um propósito racional e conhecido, o religioso. Isso não é claro no caso no teto central do Turabeg Khanun. A teoria é que seja alguma espécie de calendário feito em mosaico, com linhas que se esticam e se cruzam com uma complexidade incrível. A equação para preparar tais linhas e usá-las para dividir perfeitamente os espaços do teto desafia qualquer credulidade. Com computadores, atualmente, seria possível fazer algo assim e da mesma fora seria trabalhoso. Ao imaginar que tal obra foi feita no século XIV se entendem as aparentes imperfeições (as linhas não parecem perfeitamente alinhadas, o conjunto não é absolutamente simétrico) que lhe dão ainda mais valor. É, em resumo, um mosaico com linhas e estrelas em azul, branco, amarelo e preto. Ele é dividido em 365 seções, o que, evidentemente, seriam os dias do ano. Logo abaixo, circundando o centro, há 24 arcos, que seriam uma referência às horas do dia; mais abaixo, 12 arcos maiores, com os nichos externos e também internos, representando os meses do ano; e, por fim, quatro janelas, que seriam uma referência às semanas de um mês. Mas essa é apenas uma interpretação simplificada; seria possível dar uma explicação para as estrelas desenhadas pelas linhas dentro do mosaico no teto, depois fazer mais interpretações dividindo as estrelas por tipo e tamanho. Depois, verificar cada polígono nesse teto, classificá-lo. Seria um trabalho quase infinito.

E é certamente isso que a obra inspira, o infinito.

Após olhar por longos minutos o teto, me sentei no chão para olhar mais. Os arrulhos contavam esses minutos, mas eu perdi a conta. As mulheres, com seus véus, rezaram e se foram. Ficaram eu e as pombas.

Por que um teto tão enigmático teria sido construído em um mausoléu? Fiquei imaginando que aqui estava enterrado algum monarca local que tinha grande obsessão pelas estrelas, pelo infinito. Como um Ulugh Bek dos khoresmshahs.

Tradicionalmente, acredita-se que o mausoléu foi erguido pela dinastia de Yusuf Sufi para abrigar a tal Turabeg Khanum, mulher de um dos khans locais, Qutlug Timur. No diário da visita do viajante Ibn Battuta à região, ele descreve, em 1330, seu encontro com Turabeg Khanum, o que confirma que ela existiu. Cientistas estimaram que a edificação foi erguida em 1370, o que seria justamente antes do período de turbulência envolvendo Tamerlão. As dúvidas sobre a função do prédio e a data em que foi erguido se devem principalmente aos detalhes decorativos e arquitetônicos, que, caso a data seja correta, antecedem significativamente os avanços que se veriam acima de tudo nos anos finais de Tamerlão e durante o século XV, quando seus descendentes dominavam esta região. Além disso, há outros elementos questionáveis. Primeiro: segundo as crônicas, Tamerlão teria destruído quase tudo em Urgench em 1388, deixando apenas pequenos mausoléus. Por que deixaria de pé uma construção tão grandiosa, certamente uma testemunha da grandiosidade dos seus inimigos khoresmshahs? Segundo: a dinastia Sufi certamente não era abastada; seus períodos de estabilidade foram quando aceitaram ser vassalos e isso, a vassalagem, drena recursos locais para o império dominante. De onde viria tanto dinheiro e mesmo o talento para construir tamanha obra? Por fim, o mausoléu parece ter um sistema rudimentar de aquecimento. Que sentido isso teria em um mausoléu? Pode ter sido outra coisa, não um mausoléu, algo completamente diferente. Ele combina mais com um palácio, ou a sala do trono de um palácio, como cogitam alguns arqueólogos. Uma teoria levantada por um cientista é que, estranhamente, este tenha sido um prédio ao menos parcialmente timurida, como bem sugere o que restou da cúpula azul externa. Esta seria a explicação: Tamerlão teria determinado que o mausoléu fosse deixado de pé porque Turabeg Khanun era descendente de Gengis Khan e, por isso, tinha grande prestígio, algo que o conquistador sempre manifestou interesse em trazer para si (visto que não era descendente de Gengis). Então, teria mandado reformar o mausoléu, criando boa parte da obra que se vê hoje, emprestando alguns dos grandes decoradores e arquitetos que havia feito prisioneiros em suas conquistas (e que usou para embelezar Samarkand). Isso explicaria a presença dos avanços decorativos posteriores ao final do século XIV no prédio.

Mas não há provas definitivas de nada. Principalmente, ninguém parece vir com uma explicação sobre o deslumbrante teto.

Quem sabe o mausoléu fosse o palácio de um astrônomo ou polimata querido pelo monarca local que, ao vê-lo morrer, decidiu homenageá-lo, fazendo o teto e enterrando-o no mesmo local. Ou quem sabe o teto fosse uma ferramenta de trabalho para o astrônomo.

Criei minhas próprias teorias para fazer sentido.

A verdade é simples. Apenas está oculta.

É passada de geração a geração, de pombo pai para pombo filho. Nos arrulhos e seus ecos.


* * *

Meu novo colega de viagem, o espanhol F, é um piloto de avião comercial, uns 40 anos, solteiro, cabelos castanhos claros esvoaçantes, nem alto nem baixo. O conheci do lado de fora do hotel em Dashoguz com ele usando óculos escuros e uma camisa social de mangas curtas, bege, sugerindo ser uma fantasia de aventureiro dos desertos. Tomamos café da manhã no hotel e, depois, o ajudei a colocar sua mochila carregada de água e cerveja (umas quatro latas) no bagageiro do carro. T, nosso motorista, tinha um utilitário esportivo branco, poderoso, uma espécie de Pajero de um modelo e marca que nem consegui identificar, com aparência de ser uma máquina valente no off-road. Um dia cheio começava com o sol forte das 8h da manhã. A ideia era explorar as ruínas de Konye Urgench e depois rasgar o deserto do Karakum, que domina todo o centro do Turcomenistão, em direção ao sul. Dormiríamos em uma iurta na areia no meio do caminho.

Sempre tenho impressões totalmente positivas de espanhóis, mas F logo mostrou que que poderia ser diferente.

Na saída do hotel, vi de novo o outdoor que havia visto na noite anterior — o presidente turcomeno, todo angelical, com roupas típicas e chapéu gigante branco, segurando dois filhotes de cachorro alabai. Evidentemente, o cartaz era um exemplo gritante da bizarra estratégia de marketing do presidente. Estranhíssimo, sim, para quem está familiarizado com a história e cultura do Brasil. Os cachorros me lembraram filhotes de labrador usados em propagandas de TV de amaciantes de roupas e papel higiênico. E, por isso, ver o cartaz me pareceu engraçado naquela manhã. Ri e apontei para ele para que F o visse.

F não riu. Seu ponto, explicando por que achava que rir era errado, era justamente porque não sabemos até que ponto a risada pode ser ofensiva aos turcomenos, o quanto o cartaz agrega elementos tidos como importantes na cultura local: quão sagrada é essa raça de cachorro? O que significa o chapéu telpek branco? Tudo o que ele disse era, sem sombra de dúvida, corretíssimo. Mas me senti decepcionado. Meu companheiro de viagem era uma pessoa com quem eu naturalmente previa ter uma afinidade cultural, pois ele conhece o mundo de onde venho: a Europa, onde moro, mas mais que isso, o Ocidente. Então eu esperava que tivesse a mesma reação que eu, relaxasse, risse. Sua explicação, porém, me fez abrir os olhos e foi extremamente válida. Silenciei por alguns segundos, endireitei a risada que havia brotado no rosto. Não fiquei envergonhado. Agradeci. E acrescentei — de fato, havia outro problema com a risada. O Turcomenistão é tão fechado que, de fora (e estávamos fora do país até ontem), não dá para saber se o presidente realmente é popular. Rir do cartaz com os cachorros pode bem ser interpretado como um escárnio do presidente, disse. Ele concordou sem ressalvas.

F chegou mostrando que poderia me ensinar, e por isso senti grande respeito por ele. Entretanto, dentro de mim, não pude evitar a sensação de que nosso contato inicial foi mutuamente desconfortável. Em vez de relaxar, meu novo companheiro de viagem julgou. Eu teria como avaliar esse estranhamento mais a fundo nos próximos dias.

No sítio de Konye Urgench, o Templo dos Pombos é separado do resto dos monumentos pelo nada do terreno imenso, descampado. É evidente que um dia abrigou uma grande cidade que foi tão terrivelmente aniquilada que nada mais pôde ser construído no seu lugar. T, que já estava sendo pago pelo dia inteiro para ficar à nossa disposição, sugeriu nos levar de carro a cada um dos pontos de interesse, ressaltando a distância entre eles. Eu lhe disse que preferia caminhar e F logo concordou, queria fazer o mesmo. Não havia muito por onde se perder. No final do terreno, após uma sequência natural visitando cada ponto de interesse, havia uma estrada e lá o motorista esperaria. T estimou que em duas horas veríamos tudo com muita calma. Ele estava apreensivo, pois teria ainda no mesmo dia que dirigir um bom trecho, incluindo uma parte pelo deserto por um caminho sem marcação, fora da estrada, até o acampamento de iurtas.

Enquanto F ficou explorando o Templo dos Pombos depois da minha visita, eu não podia tirar os olhos do horizonte. Havia várias famílias, pais, mães e muitas crianças, passando por nós e caminhando em silêncio em direção a uma torre muito alta, um minarete ancestral. Era o único monumento visível à distância. Fui acompanhando-os. Pelo caminho, já perto do minarete, cruzei com outro mausoléu, de um santo sufi, e logo percebi que as pessoas na verdade estavam seguindo para esse mausoléu para rezar. Mas muitos aproveitavam para fazer turismo e, depois das preces, visitar a estrutura vertical.

Segundo historiadores, o imenso minarete foi construído no século XIV e seria o único elemento sobrevivente da mesquita principal da velha Urgench. Se a mesquita fazia jus ao minarete, então era algo que desafiaria até mesmo os mais celebrados templos de Istambul, Cairo, Bagdá ou Damasco em termos de grandiosidade. A altura do minarete, chamado Gutlug Timur, supera qualquer outra estrutura ancestral na Ásia Central. Tem 60 metros — e, dizem, um dia já teve mais. O minarete mais alto que visitei anteriormente na Ásia Central, o Islom Khodja de Khiva, tem 57 metros. O gigante de Konye Urgench é levemente cônico, com a base de grande diâmetro subindo e se estreitando, e parece estar se inclinando. A porta para galgá-lo estava fechada, provavelmente de forma permanente, pelo risco à estrutura que trariam milhares de pessoas subindo-a todos os dias.

Talvez sua simplicidade seja um elemento que reforça sua imponência. Na sua superfície, dando a volta em sua circunferência, fileiras de tijolos com pouquíssimos elementos decorativos. Algumas linhas de dizeres em alfabeto árabe. Nada de combinações intrincadas de azulejos criando padrões geométricos, como no minarete Kalon de Bukhara ou no mausoléu de Aisha Bibi no Cazaquistão. Me pergunto se tudo isso é só restauro, se essa riqueza decorativa existiu um dia e foi destruída juntamente com o resto de Gurganj, enquanto que a torre em si, poderosíssima, resistiu à violência com uma força que nenhum humano poderia desafiar. Sem dúvida, o que torna o minarete mais impressionante é o fato de estar sozinho, perdido no meio do terreno, como um sinal de desafio às areias do tempo. E, assim, atrai os turcomenos, que lhe atribuem a santidade merecida. Os visitantes do mausoléu sufi ao lado se enfileiram e caminham dando voltas ao redor dele, sempre tocando levemente sua superfície, como que lhe fazendo carícias, esperando levar para casa um pouco da energia que lhe deu tanta longevidade.

Pouco à frente, no caminho para outros mausoléus espalhados pelo terreno, um pequeno morro é o destino específico de muitas das mulheres que visitam o sítio. Chamado de Kyrk Mollah ("Quarenta Mulás"), o morro é completamente pelado. Parece ser um monte de barro acumulado por tratores há poucos anos e do qual o tempo ainda não permitiu que brotassem árvores. Impressão equivocada; há séculos, o lugar é considerado sagrado, talvez o mais sagrado de todo o complexo. Diz a lenda que neste local os khoresmshahs montaram a última resistência antes de consumado o massacre pelos mongóis. Mas, para as seguidoras do Islã pesadamente influenciado por crenças perdidas no tempo desta região, o morro é associado à capacidade de mulheres gerarem filhos saudáveis. Ao lado dele, encontrei um numeroso grupo delas. Pareciam em transe. Rezavam em silêncio, dançavam uma dança muda, olhavam-se de olhos fechados; ao seu redor, um homem e algumas crianças as observavam atentos, como se testemunhando algo poderoso e misterioso. Essas mulheres queriam ter filhos ou rezavam por saúde para si mesmas e para outros. Tamanho é o transe do ritual que, dizem, algumas mulheres vão além. Sobem o morro e, no alto, se deitam no chão e rolam encosta abaixo, cobrindo seus vestidos coloridos com poeira e barro. Não as vi fazendo isso.

Tive uma sensação de que não deveria estar lá vendo as preces tão de perto. Me afastei e esbocei subir o morro quando fui interpelado, à distância, pelo homem que acompanhava o ritual. Acenos e gritos. Indicava que eu não posso subir. Voltei imediatamente, mas tive tempo de ver que, atrás da colina, havia um cemitério. Mais um sinal de quão santo os locais consideram o Kyrk Mollah.

Pelo vazio, continuei a caminhada, encontrando mais três monumentos de arquitetura bastante incomum, testemunhas da genialidade dos khoresmshahs e da sua influência sobre os estilos que viriam a seguir entre os povos que dominariam estas terras. Possivelmente do final do século XII, o mausoléu do Sultão Tekesh estava fechado, sendo restaurado. Nunca vi uma cúpula assim — cônica e coberta por azulejos azuis da cor do céu, azulejos que evocam os grandes monumentos de Samarkand. O sultão enterrado aqui teria conquistado terras bastante para o sul, talvez trazendo para Konye Urgench elementos da arquitetura persa que não haviam antes alcançado as margens do Amu Darya. Foi o pai do sultão Mohammed, aquele que teria autorizado o assassinato dos membros da comitiva enviada por Gengis Khan a Otyrar. No tempo de Sultan Tekesh, o império khoresmshah tomou Samarkand e Bukhara, garantindo assim as maiores riquezas da Ásia Central.

O mausoléu seguinte, o pequeno Il-Arslan, construído na segunda metade do século XII e claramente reformado, tem uma cúpula igualmente diferente, única, novamente cônica, mas poligonal, com 12 faces, cada uma decorada com padrões geométricos desenhados com azulejos azuis. Também estava fechado. Sob a cúpula, uma fachada elegante com uma porta simples de madeira e acima dela, três arcos com frisos de caligrafia árabe mesclada a ramos de plantas, numa composição que me lembrou as fachadas dos lindos mausoléus kharakanidas de Özgön, a cidade quirguiz que visitei em 2012. Il-Arslan foi o pai de sultão Tekesh, avô de Mohammed.

Por fim, após encontrar F pelo caminho, chegamos juntos a outro enigmático monumento, um ponto de interrogação como o Templo dos Pombos. Trata-se de um portal, uma entrada feita apenas de tijolos, sem nenhum detalhe em caligrafia árabe, nenhum azulejo. Novamente, como o mausoléu Il-Arslan, parecia ter sido reforçado ou reformado recentemente, mas, mesmo se não tivesse sido, estaria claro que é uma estrutura sólida, forte, praticamente impossível de se derrubar. Pela sua posição, tive a impressão de que era uma das entradas originais da velha Urgench.

À distância, me pareceu, na verdade, algo alienígena. Na superfície perto do portal não havia nada, ele estava isolado no descampado. Porém, ao seu redor, escavações mostravam que algo, na verdade, estava sim conectado à estrutura no passado. Um poço exibe, no subterrâneo, paredes com intrincadas linhas de azulejos. A decoração sugere luxo, riqueza. Mas o que existiu aqui? Não se tem ideia. Os arqueólogos não encontraram indícios convincentes identificando de forma definitiva o portal e o que está visível no poço. Teorias, há muitas. Talvez a mais interessante seja a de que o portal teria sido a entrada do palácio de Mohammed, e, por isso, essa teria sido uma estrutura que certamente os mongóis teriam feito questão de demolir. Talvez tenham deixado só o portal para que todos pudessem lembrar do horror que trouxeram. Ou talvez simplesmente não tenham conseguido destruí-lo.

Ao lado dele, uma placa dizia, em turcomeno, inglês e russo: "Portal de edificação desconhecida (séculos XII-XIV)". Mostrava um mapa esquemático da construção. Mais nada.

Olhei para trás. Um casal jovem entrou no portal, se sentou sob a sombra. Olharam na minha direção, depois olharam para o outro lado, para as escavações vizinhas, marolas num mar de perguntas.

Queriam namorar. Nada ao redor era importante para eles, viam apenas as ruínas que conheciam, na certa, desde que eram crianças. Para eles, não havia mar de perguntas nenhum. Era só um deserto e, o portal, um esconderijo.

Cheguei a perguntar a F o que achara de Konye Urgech. Ele estava procurando a melhor resposta, mas, nisso, ouvimos o ronco do motor do nosso carro. T estava chegando, esbaforido. "Estamos atrasados, subam!", disse.

O portal da edificação desconhecida foi desaparecendo, ficando para trás. Em pouco tempo nem mesmo o minarete gigante era visível.

Lá estive, um lugar que não existe mais.

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Tuesday 9 May 2023

Novas Fronteiras (XXIII) - Dashoguz, Turcomenistão



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23/8/2018

Após a travessia da fronteira uzbeque-turcomena, ainda bem, não houve surpresas. Depois da última cancela, um senhor logo me abordou perguntando se eu era quem eu era (quase lhe disse que não sabia mais quem eu era). Era o guia (e ao mesmo tempo motorista) que seria o responsável por mim em todos os passeios no norte turcomeno e pelo meu transporte até a capital, Ashgabat, que fica no sul, perto da fronteira com o Irã. Tive uma primeira impressão positiva. T me pareceu um sujeito tranquilo, sorridente e solícito. Meus temores de que teria um policial controlador ao meu lado 100% do tempo assim que atravessasse a fronteira pareciam infundados. Mas, claro, ainda era muito cedo para dizer.

A primeira cidade do outro lado da fronteira, Konye Urgench, era um dos sonhos mais cobiçados de turismo para mim. Há décadas sonhava em conhecer suas ruínas. Era uma fantasia alimentada por descrições nos livros que construíram meu imaginário da Ásia Central. Eu estava particularmente empolgando com a possibilidade de, finalmente, ver os turcomenos usado sua vestimenta tradicional. Lembrei de Colin Thubron:

À nossa frente, Konye Urgench havia sido ressucitada em volta de um núcleo de santuários. As ruas estavam lotadas de fantásticos anciões. Chapéus de pele de carneiro com tranças de lã penduradas como dreadlocks sobre as sobrancelhas e se prolongando uns 30 centímetros ao redor de suas cabeças. Embaixo desses velos monstruosos, se vestiam com botas altas até a altura do joelho e sobretudos acolchoados, charmosamente atados com uma faixa, esfaqueando o solo à frente deles enquanto se apoiavam em bengalas retorcidas.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia (1994)

Como já passava das 15h, T sugeriu que eu deixasse todo o passeio nas ruínas de Konye Urgench para o dia seguinte. Meu hotel para a primeira noite não ficava em Konye Urgench, mas sim em Dashoguz, uma cidade a cerca de uma hora de carro para o sudeste. Pensei na possibilidade de fazer o check-in e dar um passeio por Dashoguz, conhecendo assim a minha primeira urbe turcomena (um passeio que, em teoria, eu não poderia fazer desacompanhado; o único lugar do país que meu livro-guia e a agência de turismo onde contratei o passeio indicaram que eu poderia explorar de forma completamente autônoma era Ashgabat).

Apenas paramos no mercado de Konye Urgench para que eu pudesse trocar dinheiro. Câmbio à moda do Uzbequistão de dez anos atrás — no mercado negro. Dólares me deram uma fortuna, não uma pilha de dinheiro (como costumava acontecer no Uzbequistão), mas um maço de notas de alta denominação em manats, a moeda local. O mercado estava praticamente vazio, provavelmente por causa da hora. Mas, nas ruas próximas e nas poucas barracas ainda abertas, já via os primeiros sinais de um mundo completamente novo.

A roupa era o sinal mais evidente. Os homens, em vez de trajar a esperada indumentária tradicional eloquentemente descrita por Colin Thubron, incluindo o gigante chapéu-cabeleira chamado telpek, se vestiam com roupas ocidentais, camisa social, calça social, mas quase todos usavam um chapéu que eu nunca havia visto antes — uma espécie de solidéu com detalhes em amarelo chamado tahya. As mulheres trajavam vestidos longos, simples, sem botões, com um elaborado bordado na gola às vezes longo e indo além da área ao redor do pescoço e alcançando a altura do umbigo; são com desenhos geométricos ou florais, que mudam de mulher para mulher. Nas cabeças, as solteiras usavam tahyas com padrões diferentes das dos homens; as casadas, por sua vez, usavam na cabeça véus coloridos montados sobre altas tiaras, feitas de madeira e pano. Os véus envolvem completamente essas plataformas, e o resultado final faz com que as casadas pareçam estar levando coroas ocultas pelo tecido. Interessante que o primeiro paralelo que me veio à cabeça foi com as mulheres da Andaluzia, no sul da Espanha, que durante a Semana Santa usam espetado no coque, escondido sob um véu, um pente ornamental chamado peineta, igualmente deixando suas cabeças imensas e hipnotizantes. Quem sabe os dois tenham alguma ligação obscura, distante, com a expansão árabe que atingiu tanto a Espanha quando a Ásia Central no séculos VII e VIII.

Demorei um pouco para perceber que muitas turcomenas se sentiam desconfortáveis com o meu olhar interessado em suas vestimentas. Não estão acostumadas com visitantes. De fato, não encontrei um único turista além de mim. Isso me impressionou ainda mais por eu estar literalmente ao lado do Uzbequistão, a poucos quilômetros de centros de turismo massivo como Khiva, Bukhara e Samarkand. E ao norte da fronteira não se veem nunca essas coroas nas mulheres, essas impressionantes golas bordadas, os chapéus com detalhes amarelos dos homens. Fiquei boquiaberto também com o fato de que eu jamais havia visto esses detalhes da vestimenta turcomena atual, nem sequer em fotos. Uzbeques e turcomenos são povos irmãos e, durante a URSS, a fronteira que existia era apenas simbólica. Com a independência, a divisão arbitrária os afastou tanto que hoje quem sabe exista pessoas em Konye Urgench que nem sabem dizer que tipo de chapéu um homem uzbeque usa ou que imaginam que as mulheres uzbeques também usam tiaras gigantes na cabeça.

São povos irmãos, mas com diferenças significativas que estão ligadas não apenas à história de como surgiram, mas à geografia da região.

Os turcomenos ocupam uma vasta região onde as áreas disponíveis para a agricultura ficam apenas no norte, perto do Amu Darya e do Uzbequistão, e numa faixa no sul e leste, no caminho do gigantesco canal de Karakum, um dos maiores do mundo (mais de 1000 km), construído durante os anos soviéticos com a água do Amu Darya. O resto é o deserto do Karakum. Historicamente, é difícil falar de um "povo turcomeno". O povo até hoje é dividido em tribos que tinham numerosos integrantes vivendo como nômades do deserto até os tempos da URSS, cada uma falando um dialeto do que é hoje a língua turcomena. A tribo considerada mais dominante é a Teke, que ocupa tradicionalmente o sul; mas há outras com muita força regional ainda hoje, como os Yomuts na costa do Cáspio e no norte ou os Ersari no nordeste. O deserto marcou muito mais os turcomenos que os uzbeques, onde a cultura dos oásis, com a sua arquitetura concomitante, deu a tônica. No Turcomenistão muitos desses oásis deixaram de existir com o tempo, vítimas de mudanças naturais, ou foram destruídos por invasões sucessivas. Na chegada dos russos, no século XIX, o mais conhecido deles, Merv, já era uma vasta ruína. Nessa mesma época, os oásis de Bukhara e Samarkand, ainda que decadentes, ainda concentravam vasta população e eram centros regionais de poder. Além disso, uma região tão fértil como o Vale de Fergana, onde ficam algumas das cidades mais populosas do Uzbequistão, não encontra um análogo à altura no Turcomenistão. E o Vale é geograficamente muito próximo de regiões que tiveram uma imensa influência chinesa e mongol, mais do que jamais teve o Turcomenistão. Com menos oásis, até a chegada dos russos muitos turcomenos viviam basicamente de saquear caravanas que se aventuravam pelo perigoso deserto do Karakum, vendendo os seus integrantes em mercados de escravos como o de Khiva. Justamente essa foi a principal desculpa para os russos invadirem a região.

Outra diferença marcante entre o Uzbequistão e o Turcomenistão vêm da sua raiz túrquica, seu tronco etnolinguístico específico. Os turcomenos traçam sua ancestralidade às tribos túrquicas do ramo Oghuz, que eram dominantes no império túrquico seljúcida. Os seljúcidas, com capital em Merv, dominaram boa parte da Ásia Central, o Irã e a Anatólia por volta do século XI. Com a decadência deles, que coincidiu com os anos anteriores à chegada de Gengis Khan, os Oghuz mantiveram o domínio sobre a Anatólia e seriam, justamente, a origem do Império Otomano e da Turquia moderna. Assim, turcos e turcomenos têm uma profunda ligação histórica e cultural que se vê primeiramente na língua: os dois idiomas são baseados no dialeto Oghuz e são mais facilmente inteligíveis mutuamente hoje do que, por exemplo, turco e uzbeque. Os uzbeques tiveram origem étnica e linguística ligada a outras tribos túrquicas. No território do país atual, o patrimônio do império kharakhanida, por exemplo, se faz sentir até hoje, e os kharakanidas eram de outro ramal túrquico (tribos Qarluk, Tukhsi, entre outras) separado dos Oghuz.

Em Dashoguz, fui deixado por T em um hotel que me lembrou o de Navoi, um prédio antigo e baixo com detalhes modernos acrescentados posteriormente. O guia se despediu lembrando que no dia seguinte passaríamos a ter a companhia de outro turista, um espanhol, que havia pagado pelo mesmo passeio que eu, mas que estava chegando de avião a Dashoguz. Fiquei empolgado, afinal, poderia conversar com o companheiro em uma língua que me era muito familiar. Também lembrei do passado, da experiência com Iker, o simpático espanhol que me acompanhou em 2012 na aventura no Pamir. Mas não tinha como saber como seria o meu companheiro de viagem desta vez. Jovem? Velho? Sério? Piadista? Interessado em cultura e história, ou apenas interessado em experiências inusitadas de turismo? A empolgação que sentia era misturada com grande curiosidade. T não sabia de nada. Disse apenas que no dia seguinte estaria na porta do hotel às 8h nos esperando. E confirmou que, apesar das regras, eu estava livre para explorar Dashoguz como quisesse, sozinho, até nosso próximo encontro.

Não perdi muito tempo. Há tantos anos esperava o momento de colocar os olhos no Turcomenistão. Apesar do cansaço, do calor, não fiz mais que deixar a mochila no hotel. Com a mesma roupa suada da travessia da fronteira, ganhei as ruas.

Dashoguz tem uns 200 mil habitantes. O hotel ficava em uma esquina entre duas avenidas que me pareceram largas demais para o tamanho da cidade; uma delas tinha um parque linear no centro entre as pistas de sentidos opostos, e, segundo o mapa que eu havia baixando no celular, levava ao centro da cidade. Foi por ela que segui, a avenida com o previsível nome de Turkmenbashi ("Líder dos Turcomenos"), o título dado ao primeiro presidente do Turcomenistão, Saparmurat Niyazov (1940-2006).

A avenida ia mudando de cara à medida que me aproximava do centro. No início da caminhada, fui pelo meio do parque, com brinquedos gastos para crianças, uma estátua do próprio Niyazov e outra em homenagem ao cavalo da raça nacional, akhal-tepe, esguio e forte, um orgulho do país (a ponto de erguerem estátuas a ele). Os prédios à beira da avenida nesse trecho eram baixos, casas térreas ou de um andar, não aparentando ter nada de antigo. Mas, um quilômetro ou menos rumo ao centro, a transformação começou. Prédios brancos monumentais. Um era claramente um grande hospital; outros, tinham apenas dizeres incompreensíveis em turcomeno na fachada, impossível dizer o que eram. Todos prédios brancos, alguns com arquitetura futurista, com linhas de neon iluminando apenas o contorno da fachada.

A via prosseguiu até uma grande rotatória perto de prédios do governo e hotéis. Ninguém nas calçadas. Nessa altura, após umas duas horas de caminhada, tudo já estava escuro; os neons nas fachadas da avenida me causavam uma sensação estranha de estar dentro de um parque de diversões vazio. Ou em uma Las Vegas sem cassinos ou gente nas ruas, triste, apenas com alguns edifícios incomuns, elementos decorativos que em outros lugares poderiam trazer alegria, mas não aqui.

Voltei para o hotel de táxi. Após agradecer e pagar, percebi, em frente ao hotel, um outdoor. Uma foto do novamente sorridente presidente Berdimuhamedow, com seus dentes alvos, segurando dois filhotes de cachorro raça alabai (também conhecido como pastor-da-ásia-central ou mastim-da-ásia-central), outro orgulho do país. A cor predominante dos filhotes era branca. O presidente na foto usava um chapéu telpek típico, de pele, alto, gigante. Também branco. Uma aura de pureza, de santidade.

(Uma estranha constatação. Nem o taxista, nem os funcionários do hotel, nem meu guia, nem os guardas na fronteira, nem os poucos que encontrei na rua... Nenhuma pessoa viva que encontrei nesse primeiro dia no Turcomenistão vestia branco.)

Como em relação aos cavalos akhal-teke, o governo atribui uma incrível, inacreditável, importância aos alabai. Bizarro para um visitante como eu, mas com alguma lógica. O cão e os cavalos foram instrumentalizado para reforçar a identidade turcomena, como um elemento unificador entre as diversas tribos. As raças são consideradas parte do patrimônio do país. Além disso, à moda dos pandas na China, os cães são usados pelo governo turcomeno para fazer diplomacia. Em 2017, o presidente russo Vladimir Putin fazia 65 anos quando encontrou Berdimuhamedow na cidade russa de Sochi. Na ocasião, o líder turcomeno lhe entregou seu presente especial de aniversário — um fofo filhote de alabai.

Mas nem sempre foi assim. É ainda mais interessante verificar a diferença entre a forma como Berdimuhamedow e o seu antecessor, Saparmurat Niyazov, se relacionavam com cachorros, um animal visto, notoriamente, como sujo e despresível por muçulmanos mais conservadores. Todo-poderoso, conhecido pelos seus decretos aparentemente malucos (como trocar a palavra "pão" pelo nome de sua própria mãe e mudar o nome dos meses do ano), Niyazov chegou a banir os cachorros da capital turcomena alegando que eles fediam. Berdimuhamedow, por sua vez, favoreceu os alabais a tal ponto que determinou que eles fossem usados como cães farejadores pela polícia. Mas os dois líderes, criatura e criador, compartilham o mesmo ódio de cães (e gatos) vira-latas nas ruas. Há relatos de matanças em massa de cães de rua, inclusive com funcionários do governo espalhando comida envenenada pelas calçadas — o que teria levado à morte também de mascotes com dono, que apenas estavam sendo levados na coleira para passear. Um escândalo para os fãs de pets no Ocidente.

No totalitário Turcomenistão, evidentemente, não houve quem pudesse protestar.

Dashoguz, 23h17, 23/8

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