O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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11/12/2012
Volto a atravessar as montanhas que separam Bishkek do sul do país.
Um mar de neve encobre o panorama. Um branco que ofusca, dos dois lados do caminho. Um branco que voa facilmente com o vento, levíssimo, lembrando açúcar de confeiteiro sendo soprado. Ele leva a imaginação imediatamente para um lugar confortável, como se para compensar a inclemência dos elementos no mundo real. Leva para quatro paredes, para uma sala com lareira e uma janela para o frio.
Minha janela é a da van. E o veículo para em algum ponto nas montanhas, quando estávamos prestes a sair da estrada que segue para Osh para pegar outra estrada que atravessa um passo e depois leva a Talas. Há um pequeno restaurante nesta parada, uma casinha. Saímos da van e fincamos o pé na neve amassada. Ao ar livre faz frio, mas não tanto quando eu esperava. Apenas o suficiente para a neve não derreter.
Entramos na casinha. Homens com imensos chapéus de pele sorvem caldos de tigelas ferventes com sopa e pelmenis. Conversam uns com os outros com os olhares fixos nas tigelas, o líquido escorrendo pelas barbas. A língua indecifrável logo se transforma em música ambiente. Lá fora, o Sol branco, as vans brancas e o branco das montanhas.
Dentro do restaurante, com o forte aquecimento e o vapor da sopa e dos chás, faz calor. O motorista e outros passageiros me dizem para almoçar. Estou sem fome, pego um refrigerante, uma Sprite. Que heresia tomar isso onde só se bebe chá quente, em um ambiente que convida ao chá quente. Não pude evitar, fui influenciado por lembranças da minha terra, onde o ambiente sempre te convida a tomar Sprite.
Tenho um amigo viajando comigo. Aliás, minha companhia é tão incomum neste mundo quanto eu. Flávio é um brasileiro que, coincidentemente, veio estudar russo na mesma escola que eu em Bishkek. O admirei por aceitar meu convite para explorar comigo outro canto do país. É sua primeira incursão no coração perdido da Ásia, sua primeira visão de Shangri-lá.
Flávio gosta de narrar e comentar em voz alta as imagens que se descortinam a nossa frente, mensurar o impacto delas sobre seu próprio imaginário. Falamos sobre o restaurante, sobre os chapéus de pele, sobre as barbas, sobre a neve, sobre a estrada. Em português, com nossa ótica muito peculiar, milhares e milhares de quilômetros deslocada, sob o olhar de curiosidade dos locais. A sensação que tudo isso me causa, estranhamente, não é de estar perto do Brasil, mas ainda mais longe de casa. Porque vejo, claramente espelhado nas palavras e no sotaque familiares do meu amigo, tudo o que há de alienígena (e fascinante) nestas montanhas. Viajando sozinho há tantos dias, já começo a me acostumar com algumas coisas, elas não têm sobre mim o mesmo impacto que têm sobre Flávio. Além disso, ouvindo meu amigo falar, me dou conta do significado pessoal, para mim, de tê-lo aqui. Não é apenas um, agora são dois brasileiros, vindos da mesma São Paulo, até de bairros próximos, se encontrando do outro lado do mundo e podendo fazer análises e comparações que só entendem entre si. Em Bukhara, eu havia encontrado um casal de brasileiros, mas eles não viajavam comigo, foi apenas uma conversa por acaso, curta, com impressões superficiais. Agora, pela primeira vez, compartilho o Turquestão de uma forma prolongada com um compatriota. Uma experiência totalmente diferente, um prazer totalmente diferente.
Voltamos para a van para seguir viagem. Logo, o português sufoca o quirguiz. Os demais passageiros ficam em silêncio, como se tentando ver se entendem alguma coisa. São dois homens e uma mulher, todos de meia idade, tentando desvendar o português paulistano em plena estrada para Talas.
A cidade vem surgindo em um vale amplo, à medida que vamos descendo da altitude nevada; à direita da estrada, montanhas mais baixas, mais próximas, ocupando uma vasta área até invadir a fronteira com o Cazaquistão. Seguindo pelo vale, passando Talas, pertinho, fica Taraz, a cidade cazaque que visitei logo no início desta jornada. Não é por acaso que as duas cidades, quirguiz e cazaque, têm praticamente o mesmo nome, que vem do fato de ambas servirem de passagem para o rio Talas. À esquerda da estrada, mais distantes do asfalto, montanhas grandes, altas, sob o véu de uma névoa fina que as tornam quase miragens. Entre as montanhas de lá e cá, o escuro rio Talas e, paralelamente, nossa estrada. A cidade se aproxima, mais e mais, e eu fico ligando os pontos na cabeça. Em frente, Talas-Taraz-Shymkent. Para trás, as montanhas que acabamos de passar e, além delas, Bishkek, Almaty. Para o sul, a serra enevoada, Osh e, bem mais distante, o Pamir. Um grande mapa vai se completando, vai se colorindo, vai ganhando detalhes, vai ganhando mais e mais referências e memórias.
* * *
Talas. Cerca de 30 mil habitantes, um pouco menos como Naryn, tão pacata quanto. A van em teoria nos deixa no centro da cidade - mas no ponto de desembarque não vejo sequer um monumento, apenas a estrada e as casas à beira da estrada. Sem mapa, eu e Flávio sofremos por uns 20 minutos para nos localizar e finalmente encontrar uma vizinhança mais agitada, com um mercado e um quiosque de shashlik. Encontramos também um supermercado onde conhecemos um americano da organização Peace Corps (uma agência de voluntários do governo dos EUA que realiza trabalhos para desenvolver os países onde se instala; na prática, uma instituição de "soft power" de Washington). O americano franze o sobrolho, desconcertado, quando falamos que estamos apenas visitando Talas a turismo. "Nossa, muito, muito poucos turistas vem para cá", diz, com um ar de quem só não pergunta que diabos nós estávamos fazendo em Talas por educação.
Do meu ponto de vista, porém, não haver turistas já é um excelente motivo para conhecer a cidade e assim apreciar o cotidiano local da forma mais natural possível. Outro, é claro, é histórico, e esse mesmo me levou a ir a Taraz também. É possível sustentar que Talas é uma das cidades mais importantes da história da Ásia Central - embora, hoje, nada que eu veja em seu centro dê qualquer indicação disso. Foi por aqui (ninguém sabe exatamente onde) que ocorreu no século VIII a chamada Batalha de Talas, entre árabes e chineses. Trata-se do motivo, ou quiçá o principal motivo, de os países da ex-URSS na Ásia Central terem se tornado islâmicos, reduzindo significativamente a influência cultural e religiosa da China sobre a região e associando-a mais ao universo do Oriente Médio do que ao do Extremo oriente.
A Ásia Central é repleta de campos de batalha ancestrais que talvez tenham mudado para sempre o destino do mundo. Otyrar é um deles. O que teria acontecido se Genghis Khan não tivesse sido atraído para estas bandas pela tolice dos khoresmanshahs em assassinar os seus enviados? Ou o que teria acontecido se Alexandre, o Grande, em seu avanço para o Syr Darya, tivesse encontrando um formidável líder local em Istaravshan e, no cerco na cidade, tivesse perdido a vida? Ou nas batalhas entre os russos do Tsar e os locais no avanço colonial, o que teria acontecido se os russos tivessem sido derrotados - teriam eles desistido de tomar o Turquestão? Teriam os ingleses estabelecido o controle primeiro sobre Bukhara? Não obstante, a batalha de Talas é incomum na Ásia pela importância dos dois lados envolvidos. No vale do rio Talas se encontraram dois impérios que vinham de longe e passavam por longos processos de crescimento. O califado abássida, expandindo as fronteiras do Islã para muito além de Medina, Damasco e Bagdá, e a dinastia Tang, que igualmente alimentava o objetivo de tomar estas terras. Os árabes contaram com o apoio dos tibetanos, cujo território também vinha sendo cobiçado pela dinastia Tang. Os chineses contavam com o apoio de mercenários de uma tribo túrquica, os karluks, e de forças de Fergana. Os dois lados se encontraram em julho de 751.
Foi, assim, um embate de pesos pesados. Não se sabe exatamente quantos soldados se enfrentaram. Estimativas históricas indicam que dezenas de milhares de homens se apresentaram de cada um dos lados. No fim, os chineses tiveram uma derrota vergonhosa, motivada principalmente pela decisão dos karluks de passar para o lado dos árabes. Nada menos que dois terços das forças da dinastia Tang eram karluks. Uma lição história para militares que apostam muito em mercenários.
Os legados da batalha são inúmeros. O Islã de fato se consolidou na Ásia Central e se transformou na religião dominante numa região que até então era budista, zoroastrista ou com força de cultos ancestrais ligados à natureza. A cultura, uma mistura de influências chinesas, persas e indianas, se alinhou fortemente com o mundo árabe - embora, é claro, nenhuma dessas influências fosse completamente eliminada. O budismo ficou cortado em duas zonas de influência, uma na região da China (incluindo o Tibete) e outra na Índia, que se desenvolveram de maneiras diferentes. Os árabes assumiram o controle de alguns dos pontos mais lucrativos da rota da seda e se beneficiaram enormemente dos lucros.
E há repercussões ainda discutidas pelos historiadores. Da mesma forma que freou os chineses, a batalha poderia ter marcado um ponto de inflexão na expansão árabe para o Oriente, assim delimitando uma fronteira inicial no avanço da religião de Maomé. Surgiu uma importante influência do Islã no noroeste da China, mas a fé nunca seria dominante em todo o território chinês atual. De fato, logo após a batalha, os abássidas estabeleceram até mesmo boas relações com a dinastia Tang (assim, reconhecendo seus domínios). Também se debate se a tecnologia para produzir o papel, de origem chinesa, se espalhou pelo mundo islâmico quando os árabes fizeram na batalha alguns prisioneiros que sabiam a técnica e os forçaram a produzir o valioso material.
De pegadas profundas, árabes e chinesas, turcas e mongóis, criou-se um tesouro de sincretismo que ninguém nunca poderá apagar. Um exemplo nos veio em Talas em nosso almoço.
Perto do mercado, eu e Flávio nos enfiamos em uma tenda aberta. A tarde cai rapidamente. Refletimos sobre história, antropologia, teologia e esperamos o shashlik que pedimos. Um shashlik especial. Me foi recomendado por um conhecido da escola, que disse solenemente: "Prove o shashlik de pato. É o melhor shashlik que já comi". Nunca fui muito fã da carne gordurosa da ave, bastante apreciada na culinária chinesa (terra do famoso pato laqueado). Curioso usar a carne no espetinho, em um ubíquo prato presente em todos os países da Ásia Central, associado aos povos túrquicos.
O espeto que me trouxeram, acompanhado de uma farta cebola crua cortada ao meio, estava de arrepiar. A carne macia, bem passada por fora e suculenta por dentro, explodindo em intenso sabor a cada mordida, fazendo escorrer seu suco pelo meu queixo. E mordidas na cebola, e bocados de pão. A cebola queimando minha boca, a boca se consolando com uma Coca-Cola gelada.
Um hotelzinho simples por perto. O vento sopra fraco, mas frio. A cidade é mal iluminada. Vamos para o quarto, assisto um pouco de TV turcomana (disponível na TV a cabo). Vejo concertos em homenagem ao líder do pais. Caio no sono.
* * *
No dia seguinte, Flávio e eu fomos ao local que, hoje, é o grande chamariz da cidadezinha: um local associado à lenda de Manas. Desta vez, trata-se do mausoléu onde, acredita-se, estaria enterrado o herói do poema épico.
O mausoléu, uma construção em estilo karakhanida bem semelhante às de Özgön e Taraz (feita de tijolos, sem azulejos coloridos), é cercado por um complexo moderno chamado Manas Ordo, que incluiu um museu e um lindo jardim, cheio de roseiras, em meio a estátuas que lembram figuras do poema e o próprio Manas. Me disseram que é bem popular no verão, atraindo visitantes de todo o país e sediando torneios de esportes locais. Pena que já estamos quase no inverno. O lugar deve ser lindo na primavera, mas, com as flores ausentes, o jardim está triste e vazio, apesar do lindo Sol que me recebeu.
O museu do Manas Ordo não tem sequer uma palavra em inglês, pouca coisa em russo e nenhum funcionário que pudesse dar alguma orientação. Mostra peças arqueológicas e etnográficas. Não entendi nada. Tive uma sensação de frustração já muito familiar (que me acometeu mais recentemente no Manas Auyl de Bishkek). Percebe-se o público-alvo sempre são os próprios quirguizes, buscando (ou melhor, incentivados a buscar) mais informações sobre suas supostas raízes milenares, sobre uma identidade para substituir a sublimada com o fim da URSS. É triste, dá a impressão que as autoridades do país nem querem saber se estrangeiros têm interesse em conhecer mais sobre a cultura deste povo maravilhoso.
Depois de inspecionar em completa ignorância o museu, subimos uma montanha ao lado, de onde se tem uma bela vista das montanhas, do jardim e do museu, mas o vento gelado não nos deixou ficar muito tempo por lá. Descemos e fomos ver mais de perto o mausoléu. A linda fachada tem os tradicionais alto-relevos de terracota, padrões geométricos e inscrições em caracteres árabes. Impossível não lembrar do mausoléu de Aisha Bibi em Taraz, lembrar que está logo ali, do outro lado das montanhas. Mas, diferentemente de Aisha Bibi, aqui o mausoléu está vazio. Não pudemos entrar, estava fechado, mas pelas frestas da porta vimos que não havia nada no interior.
O que dizem cientistas é que o mausoléu seria do século XIV, mais exatamente do 1334. Isso leva a conclusões interessantes e complicadas para os tradicionalistas quirguizes. O mais evidente é que a data não coincide com a do período em que Manas teria vivido e, claro, morrido. Se realmente acreditarmos que ele existiu e as histórias do poema épico ocorreram, tudo se deu por volta do século X, muito antes da data presumida do mausoléu. A outra coisa para se coçar a cabeça é a dita origem karakhanida do mausoléu. Embora pareça karakhanida, se tiver sido erguido em 1334 provavelmente não é, e apenas foi inspirada pelos prédios deixados pelos karakhanidas. Em 1334, a região toda estava nas mãos dos descendentes de Genghis Khan, que aliás não passaram à história como construtores de mausoléus. Os karakhanidas dominaram a região entre os séculos IX e XII. Mistério. Teria sido um clã local, inspirado pelos karakhanidas, que ergueu esta linda construção?
As inscrições no mausoléu também não trazem muito conforto aos que acreditam que o herói encontrou mesmo aqui seu descanso final. Elas identificam a edificação como sendo dedicada a uma mulher, Kenizek Khatun, filha de um emir. Para explicar o que a mulher teria a ver com Manas, os crentes no mito espalham a lenda de que a viúva do herói, Kanikey, mandou construir o mausoléu para ele, mas, temendo que a tumba fosse saqueada ou vandalizada por inimigos de Manas, ela mandou colocar a inscrição, de forma a confundir aqueles com más intenções.
Quase não encontramos outros visitantes em todo o complexo, apenas um ou dois, o que aumentou ainda mais a impressão de vazio, de tristeza, de todo o lugar. Com o Manas Ordo, com a vila de Manas em Bishkek, as estátuas de Manas, os menestréis que sabem de cor o poema épico, o Quirguistão invoca seu passado distante para preencher esse vazio.
Mas ele ainda existe.
Bishkek, 12/12, 22h32
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Perfeito, Rafael. Ler o seu relato me fez não somente revisitar essa inesquecível viagem, mas também enxergá-la por outro ângulo. De fato, o Quirguistão, e Talas em especial, revelam a perpétua busca de (re)invenção de uma identidade quirguiz pós-soviética. E faz a gente pensar o quanto da dita "identidade nacional" não é forjada não somente lá, mas em todo lugar, ainda que de maneiras distintas. Obrigado mais uma vez pela parceria. Espero que nos juntemos em outras viagens para desvendar ainda mais a Ásia Central - já sinto saudades daquele shashlik. Um abraço!
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