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4/9/2012
Camelos. Camelos em grupos perambulam pelas regiões semidesérticas ao redor de Shymkent, do outro lado da janela da van que me leva à cidadezinha de Shauldir. Os camelos caminham lentamente, mas passam rápido pela minha visão. Também vejo vacas, bodes e cavalos, todos livres, sem cercas, pastando nessa secura imensa. Por aqui, o cenário mudou de novo: não há mais montanhas no horizonte. Poeira, vento, Sol e mais camelos. Assim vai, só isso se vê, no plano, com arbustos rasteiros, verde-beges, até o quase extinto Mar de Aral, no oeste.
Depois de horas falando em inglês com Rustem, meu ouvido voltou a ficar preguiçoso para o russo. E como o russo em Shymkent e arredores é uma espécie em extinção, mesmo quando alguém fala comigo, esse alguém fala mal a língua dos colonizadores. Quem fala são os mais velhos, os educados pelo partido, que não cuidou de eliminar o sotaque. E tudo fica incompreensível. Nunca vivi isso com tanta força. E se eu falasse cazaque? Nem isso seria garantia de que eu entenderia os que viajam comigo na van. Falam em uzbeque. Parecido, mas diferente. Isto é a Ásia Central, mil línguas, mil povos, mas na verdade uma ou duas línguas e povos que nem deveriam ser identificados separadamente. Região difícil de decifrar, quase impenetrável para estrangeiros.
Peguei um táxi do hotel até o terminal de ônibus, onde embarcaria para Shauldir umas 9h30 da manhã. Negociei o preço com o taxista, aceitei, vamos embora. O sujeito fala algo em russo, entendo, depois retruca com algo mais longo que certamente eu não entendo. Peço desculpas, peço para repetir, não entendo. E o sujeito repete gritando, e falando mais rápido, como se estivesse com raiva. Tiro meu chapéu. Falo: sinto muito, muito mesmo, não entendo, realmente; é uma língua muito difícil, falo outras três línguas, mas não falo russo bem. Estou estudando, mas meu russo ainda não é bom. Por outro lado, digo a ele com calma, eu ouço muito bem, então, não adianta gritar. O sujeito entende a mensagem. Falando mais baixo, diz que fala quatro línguas, ressaltando que é mais do que eu. Sinto que ele está dizendo isso para destacar sua superioridade em relação a mim... o invasor. Ecos rancorosos de séculos e séculos de estrangeiros mal-intencionados que para cá vieram.
Talvez por causa da surra de berros, meus ouvidos voltaram ao normal depois de sair do táxi. Negociar o preço da van da rodoviária para Shauldir foi fácil. São uns 150 quilômetros.
Na estrada, a cidadezinha é uma mancha de verde mais escuro nesse vasto verde-bege, às vezes dourado, sempre empoeirado. Perto dela, há plantações de algo que não consigo identificar. Na cidade em si, árvores, aqui e ali, aliviando o Sol de rachar. Um outro táxi me leva do centro da vila, onde desembarquei com a van, para os limites urbanos. Fomos por uma outra estrada pelo mundo rural, pelos pastos e plantações, não a mesma estrada que me trouxe aqui.
De repente, à distância, um monte de terra surge à minha direita. Ele é como uma grande mesa cor cinza-clara, destoando do verde escuro das plantações, emoldurada por arbustos. Uma anomalia geológica? Arqueológica. Um monumento inevitável e praticamente ignorado a uma cidade que inegavelmente mudou todo o destino da humanidade, o motivo de eu estar aqui.
São as ruínas da cidade de Otyrar, uma localidade que, hoje, é apenas um borrão perdido nos livros de história, nos guias de turismo. Para entender o que ela significa, é preciso voltar no tempo até o século XIII. Então Otyrar fazia parte dos domínios de um tirano local, Mohammed, líder do império dos khoresmanshahs. Como incontáveis pequenas dinastias que se sucederam na Ásia Central, os khoresmanshahs eram conhecidos pela brutalidade, pelo orgulho, pela ambição de expansão territorial. Naquela época, quando apenas a Rota da Seda ligava as cidades e trazia notícias de longe, era difícil para um líder como Mohammed saber a ameaça real representada por algum monarca em terras vizinhas. O que chegava pelas caravanas muitas vezes eram fofocas exageradas. Não se sabia ao certo o que era verdade ou ficção quando vinham notícias sobre carnificinas, sobre cidades ricas que, de um dia para o outro, tinham sido aniquiladas por algum novo líder sanguinário. Em 1215, provavelmente já se escutava falar em Otyrar sobre esse império que vinha surgindo no leste, o dos mongóis, e o ataque deles à capital dos chineses. Provavelmente até se falava de Genghis Khan. Mas poucos ou quiçá ninguém naquelas terras distantes dos mongóis poderia imaginar que aquele líder representava tanto perigo aos khorezmanshahs. Especialmente Mohammed.
Em 1217, chegou a Otyrar uma caravana comercial enviada por Genghis Khan - entre 100 e 450 pessoas, de acordo com diferentes fontes. Eles vinham com aparentes boas intenções, sem ameaças. Pretendiam estabelecer os primeiros contatos formais entre os mongóis e os khorezmanshahs. Mas, por algum motivo ainda não inteiramente esclarecido - mas certamente para mandar um recado para os mongóis - o governador de Otyrar, Inalchuk, parente do monarca Mohammed, decidiu prender os enviados do Khan (uma decisão certamente determinada pelo próprio Mohammed). O ultraje levou Genghis a enviar depois, como resposta, mais três representantes à cidade, diplomatas que exigiram que a ordem do governador Inalchuk fosse revertida. A resposta: primeiro os membros da delegação diplomática foram executados. Depois, toda a caravana comercial, cujas riquezas foram devidamente embolsadas pelos seus algozes.
Em vista da injustiça e da frieza do monarca de Otyrar, Genghis ficou, compreensivelmente, furioso. Até então, o foco de seu expansionismo tinha sido a China, cujo território nunca chegou a conquistar por inteiro até a morte. Mas tamanha afronta exigia uma resposta à altura. Ele mobilizou seu exército e se lançou rumo ao oeste.
O que se seguiria, em 1219, seria um massacre quase inimaginável. Rios de sangue. Otyrar foi obliterada em tal escala que demoraria anos para se recuperar. Mohammed, após ver a demolição de suas cidades, fugiu para a Pérsia, onde semanas depois morreria não na glória da batalha, mas de doença. Sua ignorância, sua falta de sabedoria e sua ousadia imprudente provavelmente mudaram a história do mundo porque é bem possível que, caso ele não tivesse assassinado os emissários de Genghis Khan, o líder mongol tivesse continuado a concentrar seus esforços em dominar a poderosa e rica China. Em vez disso, seguindo para o oeste, encontrou uma sucessão de reinos fragmentados, líderes fracos e megalomaníacos, impérios em decadência. Encarando um exército altamente estruturado e com habilidade na arte da guerra, eles foram caindo um a um, à medida que as atrocidades dos mongóis, no seu avanço implacável, chegavam a seus ouvidos. Relatos cada vez mais apavorantes. Relatos que derrubavam mais e mais o moral das pobres tropas que ousavam se colocar no caminho dos cavalos dos invasores.
John Man, em sua biografia do grande Khan, define assim a importância de Otyrar:
Assim começou a nova fase na carreira de Genghis. Até este ponto, a tradição tinha prevalecido. Era parte da herança do líder mongol invadir a China (...), mas nenhum líder nômade, enquanto ainda ligado a seu lar-base, iria premeditadamente iniciar a tarefa de subjugar um império tão distante de casa, ainda mais um que era o poder dominante na Ásia interior. Mas, na visão de Genghis, ele não tinha escolha. Não apenas ele havia sido humilhado como diretamente desafiado; se a ameaça não fosse encarada, ele quase certamente se tornaria uma vítima de um ambicioso xá interessado em expandir sua autoridade às terras da China.
- Genghis Khan, Life, Death and Ressurrection, John Man
Mas não é apenas por ter sido um divisor de águas para Genghis que Otyrar marcou seu nome na história da humanidade. Aproximadamente dois séculos mais tarde, em 1405, morreu aqui um outro conquistador, um que ousou se comparar a Genghis Khan - indo além dele ao conquistar até mesmo partes da Índia. Tamerlão.
Quando duras nevascas urravam ao redor de Otyrar, o enfraquecido imperador foi repentinamente acometido de um resfriado (...) Os esforços do médico não tiveram o efeito desejado. O resfriado se tornou uma febre. O enrugado imperador se contorcia e dava voltas em sua cama, tremendo de frio em um minuto, banhado em suor no seguinte (...) Então os príncipes e as damas, os príncipes e os grandes senhores da corte, os médicos e os assistentes, todos se entregaram à dor e choraram profusamente. O imperador, centro do universo, estava morto.
- Tamerlane, Sword of Islam, Conqueror of the World, Justin Marozzi
Tamerlão estava então reunindo suas tropas com o objetivo de seguir os passos do grande Khan em um avanço sobre a China. Seria maldição o fato de ele ter morrido justamente nesta cidade que trouxe Genghis para o oeste, justamente a caminho da China, o território que o Khan sonhou em dominar por inteiro, mas não conseguiu ainda em vida?
Possivelmente Otyrar impediu que Tamerlão cravasse sua espada na história. É hoje lembrado como um conquistador menor e, o que talvez seja mais revoltante para sua memória, um "antigo monarca uzbeque". Nada comparado com o grande Khan. Mas a imaginação é irresistível. Vale a pergunta - o que teria acontecido, quantos teriam morrido, se Otyrar tivesse poupado Tamerlão?
Pulando no tempo séculos e séculos, hoje é bem difícil fazer algum sentido, juntar a história com o presente, olhando um monte de terra, as ruínas da Otyrar, as ruínas da cidade que mudou o mundo.
Em Shauldir, passei rapidamente por um pequeno e extremamente decepcionante museu, abandonado, sujo, triste, incapaz de explicar a importância dos poucos tesouros que guarda e que foram encontrados em Otyrar-Tobe ("Colina de Otyrar", como chamam por aqui o monte de terra). Na entrada do sítio arqueológico, uma placa mostra o local visto de cima. A área toda deve ser um pouco maior do que a de um campo de futebol. O que se vê é umas dez vezes menor do que a área de Otyrar em seu auge, nos séculos XIII, antes de Genghis, e XVII-XVIII, quando esta região foi dominada pelo último grande império nômade, o dos jungars (um povo originário do que hoje é território chinês e mongol), responsável pelo último suspiro de Otyrar.
Passo a placa. Há uma área coberta, uma área em que foi feita uma escavação (iniciada pelos soviéticos nos anos 60). Lá se vê os restos de uma casa de banhos, um palácio, uma mesquita. Em alguns pontos há tijolos novos - as autoridades provavelmente tentaram reconstruir essas partes, interpretando o que pode aqui ter existido tantos séculos atrás.
Mas em outros pontos da colina não há o mais remoto resquício de trabalho arqueológico. Nada. A terra toma a forma de muros, fundações, salas, antessalas, tudo como se fossem desenhos borrados, visões míopes. Lembrou-me muito as fortalezas perto de Khiva que visitei anos trás, fortalezas perdidas no meio do deserto, sem nenhum cuidado, ruindo. Tudo aqui também está se perdendo, desmoronando, já quase irreconhecível. A cada dia são mais e mais apenas saliências e reentrâncias de terra, bases para o mato crescer, imensos pontos de interrogação sumindo, sendo apagados pela borracha do tempo. Me pergunto - será que há aqui algo ainda para ser escavado? Algum tesouro?
Sujando os sapatos de argila cinza, olho para o chão, para um canto de terra no Sol forte. Cá e lá, pedaços de azul. Cacos de cerâmica. De azulejos pintados de céu. De onde eles vêm? Difícil acreditar que alguém tenha vindo aqui recentemente jogar entulho azul - todo o sítio é cercado, a entrada é controlada. É mais provável pensar que esses pedaços de cerâmica e azulejos estão aqui há muito, muito tempo. Quem sabe, quem sabe, essa cerâmica tenha sido estilhaçada pelos pés de Genghis Khan em pessoa. Ou pelos pés de Tamerlão em pessoa. Pego dois dos cacos. Na palma da minha mão, o esmalte ainda brilhante, refletido a luz solar diretamente sobre os meus olhos. Estou olhando para a história. A história moribunda, mas ainda tentando, quase sem forças, ser contada.
* * *
O taxista me espera. Volto para o carro e nos afastamos de Otyrar-Tobe. Vejo no pasto não muito longe uma linda mesquita ou mausoléu, nem sei direito o que é. Tem uma cúpula dourada. Nos chama. Quando chegamos lá, vejo que é um prédio moderno. Ao lado, porém, há um mausoléu mais antigo. É onde está Arystan Baba, um dos mentores de Khoja Akhmed Yassawi. Yassawi foi sábio muito conhecido e reverenciado, fundador da ordem sufi yassawiyya, homenageado por Tamerlão com um mausoléu gigante na cidade de Turkistan, minha próxima parada nesta viagem. Os sufis têm na Ásia Central alguns de seus monumentos mais notáveis. Em minha primeira visita a Bukhara em 2003 visitei o mausoléu do fundador da que talvez seja a ordem sufi mais influente, a Naqshbandi. Não estou muito longe de Bukhara, mas aqui Tamerlão enalteceu a ordem yassawiyya com tesouros da arquitetura.
Diz a lenda que Arystan Baba foi um companheiro de Maomé e que, certa vez, estava com o Profeta comendo caquis. Uma das frutas estava sempre caindo do prato, e Maomé teve uma revelação. Disse a Arystan: "Este caqui é para Ahmed, que viverá daqui a 400 anos". Arystan disse então que, se Maomé permitisse que ele vivesse por 400 anos, daria a fruta para Ahmed. O longevo Arystan então teve quatro séculos de vida, esperando pelo pupilo especial, a quem entregou o caqui que também atravessou os anos.
Outra lenda diz respeito à construção do próprio mausoléu. Tamerlão quis construir um grande mazar em homenagem a Ahmed Yassawi. Mas teve uma visão - que só deveria fazê-lo se, antes, construísse um para Arystan Baba. Eis como teria surgido o prédio que agora eu estava visitando. Ou não. O mazar, uma elegante construção, chama a atenção por ser bem diferente dos mausoléus simples que vi em Sayram, igualmente belos. Este lembra um pequeno palácio: sólido, compacto, inteiramente de tijolos, com o exterior liso, sem ornamentos. Um grande arco na entrada. No interior, à esquerda, uma porta leva às tumbas de vários "santos" - incluindo, atrás de uma grade metálica, a de Arystan Baba. A câmara da tumba data do século XII, e o restante da construção é bem mais recente, do século XIX, quando um terremoto destruiu a edificação que de fato se acredita que foi erguida por ordens do próprio Tamerlão. Mas mesmo após a construção do século XIX, o mazar foi reconstruído outras vezes, sendo que a mais recente foi em 1971. Ou seja, pouco da estrutura original é ainda visível.
É, claro, um centro de peregrinação. Me sento na pequena antessala, absorvo o silêncio, a escuridão, contrastando com a luz lá fora, a umidade, contrastando com a secura e a poeira ao ar livre. Ao meu redor, várias pessoas fazem o mesmo, parecem ser de diferentes famílias.
Minutos.
Após a reverente prece do zelador do mausoléu, as pessoas se levantam, uma a uma, e vão tocando as tumbas, fazendo pedidos ou entoando mais orações e agradecimentos por graças alcançadas. Em frente à tumba de Arystan Baba, param, acariciam a grade. E se afastam devagar. Avô e avó com o netinho, por exemplo. O avô segura a mãozinha do bebê e o faz tocar a grade.
Novamente, como em Aisha Bibi, sinto uma sensação agradável, santa, de coisas boas que irão acontecer.
* * *
De volta a Shymkent, percebo que não comi nada o dia inteiro. Decido então atacar o meu primeiro shashlik desde o começo desta viagem. Shashlik é como eles chamam por aqui o churrasco em espetinhos. Cubos de carne na brasa. Você pede escolhendo qual carne - frango, vaca ou, o mais comum por aqui, carneiro. Nunca porco, claro, afinal, estamos num país muçulmano. Os cubos de carne vêm no espeto alternados com cubos de gordura pura, torradinha, que viram óleo ao entrar na boca. Para acompanhar, duas canecas previamente congeladas trazendo a deliciosa cerveja local, marca Shimkentskoe Pivo ("cerveja de Shymkent"). Delícia, deslizando pela goela. A carne no espeto é servida em um prato, acompanhada de rodelas de cebola crua. Acabo exagerando na cebola. Vou ficar com um mau hálito insuportável.
Amanhã, dia de folga em Shymkent. Nenhuma viagem prevista. Só aproveitar esta cidade sobre a qual há pouca coisa no meu guia, mas tão agradável, com tantas árvores para proteger do Sol, para se refrescar e respirar. Vou a algum museu e me preparar para as próximas paradas, Turkistan e o Uzbequistão.
Shymkent, 5/9, 12h
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