Thursday 4 May 2023

Novas Fronteiras (XXII) - Nukus, Uzbequistão



O que é "Novas Fronteiras"?
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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

23/8/2018

Mais uma nova fronteira. Sem dúvida, a mais esperada.

Do lado uzbeque. Sozinho, me aproximei da casa onde esperava encontrar a polícia de fronteira. São umas 14h, faz calor. Abri uma porta conforme o indicado, me aliviando com a sombra lá dentro. À frente, vi os guichês envidraçados onde deveriam estar os guardas. Ao lado dos guichês, uma esteira para passar as bagagens pelo raio-x. Tudo às moscas. Não havia nenhum ser vivo à vista. Eu só ouvia o som de um galo cantando, distante.

O que eu faço?

Decidi esperar. De pé, tendo na mão o passaporte e os comprovantes de acomodação de cada lugar onde pernoitei desde a volta do Tajiquistão (uma pequena pilha de recibos), conforme exige a lei uzbeque. Decidi fingir ser uma estátua, sem tocar em nada. Pensei: se eu tocar e for proibido, e se alguém aparecer justamente no momento do toque proibido, vou ser uma diversão e tanto para algum pequeno ditador de fronteira.

Passaram-se cinco minutos. Pela mesma porta por onde entrei, entrou uma guarda. Me abordou falando russo. "Você é turista? Está esperando?" Eu hesitei em responder. Me pareceu que a pergunta dela não estava completa. Pensei que ela fosse perguntar se eu realmente tinha certeza de que queria cruzar a fronteira. Afinal, seu tom de voz indicava incredulidade. Como se estivesse vendo uma miragem.

Ela me pediu para esperar mais um pouco. "Estamos almoçando."

Mais cinco minutos, eu de pé, passaporte e papeizinhos na mão. O galo cantando.

Ela apareceu de novo e entrou em uma das cabines. Um homem surgiu também e pediu para eu colocar a mochila no raio-X.

No guichê, a guarda verificou meu passaporte e os vistos. Ofereci a ela os tais comprovantes de que fiquei hospedado em hotéis no Uzbequistão. Nem os olhou.

— Vocês não parecem ter muitos turistas passando por aqui...
— Muito poucos. Você é o primeiro hoje.
— Mesmo? Puxa. Mas aumentou nos últimos anos?" — minha pergunta é por que imagino que talvez com o novo presidente uzbeque as coisas tenham mudado um pouco também na fronteira com o Turcomenistão, como mudaram na fronteira com o Tajiquistão.
— Não. É muito quieto. Era e continua.

Carimbou o passaporte, me entregou, sorriu. O outro guarda liberou minha mochila em menos de um minuto. Os dois indicaram uma porta para sair e, quase como se nunca tivessem existido, desapareceram de vista. Acho que foram comer a sobremesa. Ouvi o galo ao longe, de novo. Adeus, Uzbequistão.

A porta me conduz novamente para a estrada. Tenho que andar mais um pouco pela terra de ninguém entre os dois países.

A outra casa, a da entrada no Turcomenistão, é toda branca. Em cima dela, um retrato grande do presidente turcomeno, Gurbanguly Berdimuhamedow. Tenho certeza que vou ver esse sorriso oficial do presidente muitas vezes nos próximos dias.

Me aproximei da porta de entrada com o suor se acumulando na testa e no nariz, fazendo os óculos de sol escorregarem. Com a mochila pesando. Nessas horas de tensão, estar sozinho adiciona muita carga nas costas. O calor fica mais intenso.

Abri a porta. Fui imediatamente abordado por um homem de bigode e uniforme militar. Me saudou cordialmente e pediu para eu entrar em uma sala à esquerda. Ele entrou atrás de mim. Fechou a porta. Havia uma mesa e duas cadeiras, ele pediu para eu me sentar à sua frente. Tirei os óculos.

Me senti em uma entrevista de emprego.

Pediu o passaporte, eis o passaporte. Abriu o documento e começou a copiar em um caderno todos os dados. Silêncio. Eu fiquei observando. Ele tinha uma letra cursiva muito bonita, precisa, de quem estudou caligrafia. Lentamente foi desenhando as palavras numa língua completamente alienígena, cheia de ípslons e tremas.

Levantou-se da cadeira quase sem fazer barulho. Pegou ao seu lado direito um objeto que estava sobre a mesa, mas cuja existência eu sequer havia notado antes. Parecia uma pistola. Uma pequena pistola, branca. De plástico. Mas o material não importava, afinal, era uma pistola, uma arma, com um gatilho, uma pistola de um tipo que eu nunca havia visto. Eu estava quieto, seriíssimo, como convém estar em um momento crucial, a entrada num país notoriamente hostil a visitantes estrangeiros independentes, o misterioso, quase impenetrável Turcomenistão.

Mirou a pistola na minha testa. Eu não tinha ideia do que estava fazendo, nunca havia passado por algo assim. Era algo que me pareceu agressivo, invasivo. Sem dúvida, assustador. Quase encostou o cano na minha testa, na pele um pouco acima do espaço entre meus dois olhos.

Apertou o gatilho silencioso.

Eu não entendi nada.

Apertou de novo.

Olhou algo atrás da pistola. "Você está quente", em russo. Ah! Era um termômetro. Claro. Eu deveria ter adivinhado. Já tinha ouvido falar desses termômetros assim, nunca tinha "sido vítima" deles.

Olhei para a janela, depois olhei para ele. "Sim, está quente hoje."

Ele retrucou com algo que não entendi. Virou a pistola para eu ver um visor nela. "37.5". Não esbocei reação.

"Você está quente", insistiu, sem me olhar. "Você está com febre?", perguntou. Eu estava radiante de energia, sem sequer um espirro há dias. Mas, verdade seja dita, estava com uma tremenda "dor de cabeça", a de atravessar uma fronteira dessas.

"Eu, febre? Me sinto ótimo! 100%." Sorri com hesitação. Se eu sorrisse demais, poderia ser interpretado como deboche. Então, foi só um sorriso tímido. Agitei um pouco os braços para dar ênfase ao "me sinto ótimo", com o objetivo de mostrar vitalidade.

O senhor se sentou de novo. Seu rosto indicava tédio. Pegou seu papel com os dados que copiou do passaporte. Escreveu em um quadrado em branco "36.6".

Pediu então para eu preencher um formulário da alfândega. O formulário era muito parecido com o que era exigido até uns anos antes pelo Uzbequistão a todos que atravessassem suas fronteiras. Nele, pedem para declarar cada tipo de moeda e montante respectivo que está trazendo ao país. Não apenas acima de um certo valor, é preciso declarar tudo. Legalmente, até os centavos. Entretanto, novamente como no Uzbequistão, não me esforcei muito para dar uma cifra precisa. Coloquei que levava US$ 300, o valor arredondado que eu de fato levava. E só. Se alguém quisesse abrir minha mochila para conferir, que o fizesse, e se eu estivesse errado, poderia corrigir. Entreguei o formulário ao bigodudo e, no momento em que ele tirou o papel da minha mão, senti com força que eu havia cometido um erro. Que garantias eu tinha, afinal, que a alfândega turcomena funcionaria da mesma forma que alfândega uzbeque de anos atrás? Pelo pouco que estava vendo até então, com a "pistola" termômetro e a insistência na minha "febre", era bem diferente.

Medo. O sujeito verificou as letras que eu desenhei no formulário. Cada traço.

Me devolveu. Pediu para eu seguir, sair de sua sala. Venci a primeira fase.

Para a segunda, fui encaminhado a um guichê vazio ao lado da sala. Vi, ao redor, que havia vários guardas, todos com uniforme militar, indo e vindo, entrando e saindo de corredores e salas atrás do guichê. Pensei: nossa, quanta gente. Que diferença da alfândega do lado uzbeque, onde eu havia passado menos de quinze minutos antes.

Esperei uns dois minutos e um guarda surgiu do outro lado do guichê, rapidamente. Falava um inglês limitado. "Almoço. Espere. Sente." Havia uma cadeira ao lado. Fui obediente.

Mais uns cinco minutos se passaram, o mesmo guarda apareceu. Pediu meu passaporte. Abriu na minha foto, comparou com meu rosto. Seguiu em direção ao visto. Leu as informações com atenção.

"A pessoa que vai ser seu guia", disse ele, me surpreendendo. "Você tem o telefone dele?"

Eu esperava que ele me perguntasse coisas de praxe — endereço do meu hotel, onde eu iria no país, qual era meu interesse em conhecer o Turcomenistão. Não isso. Pedi um segundo, o telefone deveria estar em meu celular, me mandaram em Tashkent um email com o número após o pagamento da excursão. Achei o email. Ele dizia: "O número de seu guia é (02)..." e não constava mais nada. Esqueceram de preencher, ou por alguma razão o resto do telefone foi apagado. Isso significa que eu não tinha o número de meu guia. Quis chorar. Por que não chequei isso antes?

Tento transparecer tranquilidade. Não falei nada e pensei rápido. Tinha o telefone da chefe de meu guia, uma senhora, moradora da capital do Turcomenistão, e foi ela em pessoa, aparentemente, que arranjou o guia. Simplesmente informei o nome e o telefone dela ao guarda. Não, não vai dar problema. Não pode dar problema. Por favor, não dê problema.

Passei a segunda fase. Mas ele não devolveu meu passaporte.

Foi convidado a ir a outro guichê, ao lado desse onde eu me achava. Nesse outro guichê, uma senhora já estava me esperando. Ali, eu teria que pagar US$ 15 de "taxa de chegada", uma excentricidade à respeito da qual que eu já havia sido informado. US$ 15 que precisavam ser em notas, nada de pagamento em cartão, e de preferência em notas novas. Não aceitavam o correspondente na moeda turcomena ou em soms uzbeques. O dinheiro eu já tinha separado em um envelope. As cédulas eram tão novas que brilhavam enquanto ela as verificava. Assinou um papel, pediu cordialmente que eu voltasse para o guichê anterior. O guarda me viu e, finalmente, carimbou meu passaporte e o devolveu. Passei a terceira fase.

A quarta fase. Tinha que colocar minha mochila em uma máquina de raios-X. Ao lado, havia um detector de metais daqueles de aeroporto, para escanear pessoas. Do outro lado, três policiais com seus quepes e uniformes, um deles sentado em uma cadeira, vendo o monitor do raio-X, os outros dois, sentados em uma mesa ao lado, olhando o trabalho do primeiro. Fui instruído por um deles a passar pelo detector de metais. Atrás dos três, em uma área que até então estava escondida de mim, vi uma sala. Lá havia mais 3 funcionários, sentados, trabalhando, parecendo extremamente ocupados. Eu me perguntei que tipo de trabalho deviam fazer numa fronteira tão pouco usada.

De volta aos três guardas do raio-X. Após eu passar com sucesso pelo detector de metais, um deles verificou o formulário da alfândega e apenas o aprovou. Um segundo pegou o mesmo formulário, depois do primeiro, e escreveu algo nele (também essa pareceu ser sua única função nesse processo). Por fim, o terceiro, que estava vendo o raio-X, se levantou. Cochichou algo com o primeiro, o que apenas aprovou meu formulário. Pegaram então minha mochila e a colocaram em uma mesa ao lado.

— Remédios? — perguntou o guarda "aprovador" em inglês.
— Não, não. Nenhum remédio.
— Podemos?
— Sim — respondi, já abrindo minha mochila para eles.

Outro alerta que eu havia recebido antes de passar por este martírio: não apenas no Turcomenistão, mas talvez especialmente, remédios trazidos de foram são um grande problema. Existe uma lista complexa de fármacos restritos que vive sendo atualizada. Basicamente, é algo tão complicado que qualquer remédio pode ser considerado pelos guardas de fronteira, que obviamente não são farmacêuticos, potencialmente algum tipo de entorpecente banido no país. Por isso, antes de sair do hotel em Nukus, eu joguei fora todos remédios que tinha na mala — aspirinas, remédio para gripe e o que sobrou dos anti-histamínicos usados para tratar o inchaço causado pelas picadas de vespa no início da minha viagem.

Tudo no lixo... ou quase tudo. De repente, lembrei que tinha na mochila ainda havia uns comprimidos de um suplemento herbal para dormir. Nem era remédio, na minha cabeça, e provavelmente por isso deixei passar. Como eu fui esquecer! Como! Idiota! Idiota!

Fiquei segurando minhas mãos atrás da minha cintura. Os guardas foram minuciosamente, devagar. E esse vagar só aumentava a tensão que eu não podia mostrar por medo de que eles achassem isso suspeito.

Eles foram tirando as roupas de dentro. E tiraram quase todas. Da mochila arrumada com cuidado para que tudo coubesse bem e ainda sobrasse espaço para carregar água ou algo para matar a fome, só um casaco de lã no fundo dela não foi arrancado. Todo o resto foi aberto ou desdobrado e colocado em exposição na mesa. Não entendi por que não tiraram o casaco também.

Pareciam estar se divertindo muito. De tudo o que tiraram, o que lhes deu mais alegria (traduzida em uma conversa animada entre eles) foi uma sacola plástica na qual eu levava um kit de primeiros socorros — bandagens, um líquido antisséptico e... os comprimidos para dormir.

Abriram o kit. Encontraram os comprimidos. Não fizeram perguntas. Fecharam o kit e avançaram para os bolsos externos da mochila. "O que você tem aqui?", perguntou o "aprovador", com um sorriso perverso. Nada especial. Caneta, meu caderno, meu livro-guia de turismo, bloqueador solar, uma garrafa com água quase no final.

"É tudo", disse outro dos guardas, não o "aprovador", que parecia genuinamente decepcionado e começava a pegar minhas coisas para colocá-las de novo na mochila. "Obrigado, eu faço isso", disse, interrompendo-o, com o meu melhor sorriso falso. Senti o pesar por antecipação, arrumar aquela bagunça iria demorar mais uns cinco minutos, mais uns cinco minutos naquele inferno. Fiz o mais rápido que consegui, temendo que, de repente, o "aprovador" se lembrasse de verificar com mais cuidado os comprimidos para dormir que foram estranhamente ignorados à primeira vista. Empurrei camisetas e cuecas com força para o fundo. Ajeitei, amarrei. Meus pés dançavam uma valsa sob o olhar atento dos guardas. Nessa valsa fiquei zanzando da direita para a esquerda, da frente para trás, totalmente concentrado na minha mochila. Nisso, o "aprovador" (agora mostrando claramente ser o chefe do grupo) me interrompeu falando algo que não entendi em russo.

Volta a tensão.

Ele apontou para o chão. Havia uma faixa pintada antes da mesa. Com meus pés, no esforço de arrumar a mochila, atravessei essa faixa sagrada por um dos lados da mesa. Metade de meus pés ficaram do outro lado dela. Em inglês, agora: "Nós aqui, você, aí. Você não pode neste lado."

Voltei a meu lugar, pedindo mil desculpas.

Tudo pronto. Coloquei nos ombros a mochila. Virei-me para o "aprovador".

— Posso?
— Pode, para lá. — Indicou uma porta. Eu não sabia o que havia atrás da porta. Qual era a próxima fase.

Abri. Era o lado de fora, a saída. Enfim a liberdade?

Olhei para trás ao sair da casa branca que abrigava o posto de fronteira. No alto da casa, mais uma vez, um retrato do presidente Berdimuhamedow. Desde que cheguei ao posto, foram cinco, espalhados sobre a entrada, em diferentes paredes, e, agora sobre a saída. Sempre a mesma feição, o mesmo sorriso.

Caminhei uns 50 metros por uma via de asfalto gasto e cheguei a uma cancela. Ninguém por perto. Dei a volta na cancela, com a orelha empinada para algum grito surpresa de alguma autoridade escondida, e continuei caminhando. Como em tantas outras fronteiras, há o posto de fronteira e o início da fronteira, a partir do qual o trânsito local fica interrompido e apenas podem passar policiais e os aventureiros que se atrevem a querer atravessar a divisa.

Cheguei a uma segunda cancela. A caminhada até o início da fronteira, nesse caso, durou um total de cinco minutos sob um sol escaldante que certamente fez minha "febre" subir. Nesta cancela, encontrei um guarda turcomeno, com o mesmo uniforme do "aprovador" e seus colegas. Pelo menos, parecia mais simpático. Sorriu e demonstrou estar espantadíssimo de me ver. Pediu meu passaporte. Viu a nacionalidade e imediatamente gracejou falando nomes de times de futebol e jogadores, ah, que maravilha, um tópico que não está sujeito aos rigores da alfândega. Falei que eu adorava o Neymar. Demos risadas lembrando do craque.

De repente, percebendo sua função, ele parou de rir, ficou em posição de sentido, olhou a foto no passaporte e olhou meu rosto.

Uma, duas vezes, os olhos foram e voltaram da foto para meu rosto. O guarda ficou tenso e... seriíssimo.

Welcome to Turkmenistan, disse, devolvendo o documento.

Fim. 40 minutos de uma travessia que pareceu durar 40 horas.


* * *

O dia da travessia de fronteira havia começado em Nukus com uma atividade bem mais tranquila: uma visita a um museu. O museu mais surreal da Ásia Central.

A incrível história do Museu Savitsky — ou Museu de Arte de Nukus ou, ainda, oficialmente, "Museu Estatal da República do Caracalpaquistão com o nome de Igor Vitálevitch Savitsky", começou há cerca de 70 anos. Igor Savitsky era um ucraniano nascido em uma família abastada em Kiev em 1915, com formação "proletária" como eletricista, mas também pintor e arqueólogo. Em 1950, ele veio a Nukus para participar de uma escavação. Logo se apaixonou pela cultura local e decidiu tomar residência na capital do Caracalpaquistão. Então começou a colecionar objetos de valor associados aos caracalpaques: joias, tecelagens e artefatos. Juntamente com esses objetos, Savitsky, com discrição, começou também a comprar pinturas, muitas delas ligadas de alguma forma à Ásia Central. Assim procedia o mecenas: de vez em quanto apanhava um trem para Moscou, enfrentando a longa viagem, e, chegando à capital, visitava pintores e ia às compras.

Muitas dessas obras, porém, eram oficialmente banidas na União Soviética de então por não seguirem a linha estética aprovada pelas autoridades, o estilo chamado de Realismo Socialista. Seus pintores, muitos deles gênios da vanguarda modernista, haviam se tornado párias por causa de suas obras — eram perseguidos, torturados, exilados, banidos. A arte deles era chamada de "degenerada". Ainda assim, Savitsky comprava suas telas... e nem se sabe ao certo por que fazia isso. Talvez para apoiar os artistas? Por se opor ao regime? Para, espertamente, se aproveitar do desespero dos pintores, obtendo telas geniais por um preço muito abaixo do que deveriam render? Tenha sido Savitsky um idealista, um simples amante da arte, um subversivo ou um esperto investidor, o que está claro era que ele gostava de se arriscar. Apostava que as autoridades soviéticas não iriam se importar. Apostava que Nukus e o próprio Caracalpaquistão seriam vistos como remotos demais e que, por isso, nenhum chefe do partido acharia que valeria a pena puni-lo, algo que, se ocorresse, seria certamente com muito rigor.

E assim foi, os anos se passaram e ele continuou, quieto, a construir seu tesouro no fim de mundo ao sul do Mar de Aral. Em 1966, sua coleção, oficialmente apenas de itens aceitos pelo regime, havia crescido tanto que ele conseguiu convencer o partido a abrir o museu em Nukus. Foi nomeado o primeiro diretor. Permaneceu, nesse cargo, até 1984, quando morreu — sem nunca ter visto a vasta maioria das obras de seu acervo em exibição. Continuavam escondidas, esperando o momento certo para verem a luz. Isso começou a ser possível com a Perestroika, a partir de 1985, mas de forma definitiva apenas com o fim da URSS e a independência do Uzbequistão, em 1991.

Hoje, o museu tem oficialmente mais de 80 mil itens no seu acervo, incluindo uma das maiores coleções de arte de vanguarda soviética do mundo. Por isso, o Savitsky provavelmente é o motivo mais forte que poderia levar uma pessoa a enfrentar os quilômetros para chegar à distante Nukus, não considerando aqueles que apenas param na cidade na sua aventura de turismo de catástrofe, a caminho do deserto do Aral, como eu fiz. Muitos locais, ao ver turistas, já até imaginam que eles vão perguntar onde fica a instituição. Não que seja muito difícil encontrá-la. Trata-se de um conjunto de três prédios de arquitetura moderna, ampliado em 2003, em uma grande praça e a apenas algumas quadras do mercado e do palácio do governo.

O acervo tem, de fato, pérolas da vanguarda soviética do século XX, obras que certamente teriam sido transformadas em pó e eliminadas dos anais da história da arte se não fosse a sorte de terem ido parar em Nukus. Talvez os quadros mais chamativos do museu sejam os dos obscuríssimos modernistas da Ásia Central, artistas que procuraram trabalhar o imaginário dos milenares mercados e desertos e traduzi-los em uma nova estética. A região foi tema central da obra de um dos grandes pintores russos do final do século XIX, Vassily Vereshagyn, cujas obras estão ausentes do Savitsky, mas com as quais o museu faz um contraponto significativo. Vereshagin foi autor de telas monumentais e ao mesmo tempo estarrecedoras e deslumbrantes, que representam alguns dos poucos registros do Turquestão nos anos em que a fotografia ainda não havia chegado à região. A maioria de seus quadros (os mais famosos em exibição permanente na galeria Tretyakov de Moscou) mostra, porém, uma Ásia Central com o olho de estranhamento do visitante de longe — a ênfase no exótico, cruel e desumano (um de seus quadros mais famosos, A Apoteose da Guerra, de 1871, mostra uma pirâmide de crânios) de um povo ao qual os russos, no entender imperialista, levavam a civilização. Contudo, a representação da Ásia Central da vanguarda artística presente no Savitsky é muito distante da representação de Vereshagyn. A terra deixa de ser acima de tudo periférica, atrasada e violenta e se torna um centro que irradia cor, orgulho e força, com uma temática diferente, característica, com uma vitalidade fundamentada na cultura local que serve como perfeito cenário aos experimentos introduzidos pelos modernistas europeus.

Dois exemplos de artistas notáveis que representam essa vanguarda no Savitsky. Nascido na atual Belarus, Ruvim Mazel (1890-1967), com cores que evocam Gaugin, foi educado em escolas de arte da Europa e, como Vereshagyn, teve uma experiência marcante ao ser convocado para servir ao exército e ser enviado à Ásia Central. Ficou aquartelado no Turcomenistão e se apaixonou. No final da Guerra Civil que levaria ao surgimento da URSS, se estabeleceu na capital turcomena, Ashgabat, abrindo um estúdio de arte. Suas obras no Savitsky são uma apaixonante observação da sociedade centro-asiática do início do século XX — mulheres e seus véus, paredes de barro, os turcomenos e seus chapéus imensos de pele. Viktor Ufimtsev (1899-1964), nascido nos Urais, teve uma passagem pelo futurismo antes de seguir para o Uzbequistão em busca de um novo mundo. Sua obra Para o Trem (1927) retrata uma mulher centro-asiática, provavelmente uzbeque, vendendo leite fermentado ao lado de trilhos de trem. Um tema estático, mas que, graças às linhas paralelas do trem e à perspectiva, ganha um movimento próprio, a dinâmica que torna certos quadros modernistas tão especiais. Como se ela estivesse sendo observada da janela do trem no momento que está partindo para longe.

Passei duas horas desfrutando da companhia das obras e lamentando a falta de informações sobre as mesmas. Sim, elas estão identificadas com nome da pintura e autor, mas não há suficiente contextualização, nem nas paredes nem em um possível folheto para os visitantes. Uma estratégia, quiçá, para obrigar as pessoas a contratar um guia. Encontrei alguns grupos andando de sala em sala com as suas guias falando russo. Turistas independentes e de fora do Uzbequistão, havia poucos. Um deles era um italiano, bem jovem, uns 20 anos, com roupa surrada de hippie, calça e camisa folgadas, bolsa a tiracolo. O estilo de ML menos as cores. Barbicha, óculos pequenos, bem mais alto que eu. Não puxei conversa, mas, depois de termos nos encontrado sem querer em três salas diferentes, ele veio em minha direção de surpresa. Nem me saudou. Disse em inglês com o carregado sotaque de seu país: "Nossa, este museu é MUITO CARO, não? E nem dá para tirar foto com esse preço de entrada, tem que pagar mais! E não tem nada interessante..." Concordei educadamente com a cabeça e dei uma risada quieta, não reconhecendo, absolutamente, o fato de que o museu não tinha nada interessante. Quão caro: para um local, a entrada custa 6 mil soms, ou meio dólar. Para um estrangeiro, 25 mil soms, pouco mais de US$ 2. Como disse o italiano de barbicha, é necessário pagar extra para ter o direito de tirar fotos: para o turista de longe, mais US$ 11, bem mais do que o ingresso em si. Juntando os dois, ingresso para turista e permissão para tirar foto, US$ 13, nada de outro mundo se comparado com preços de entradas em museus privados da Europa, mas, para os padrões do Uzbequistão, de fato caro.


Na saída, com a mochila cargueira nas costas, a caminho do mercado de onde pegaria a lotação para a fronteira, senti que o nervosismo que já tinha amanhecido comigo estava crescendo. Estava chegando o momento de atravessar a fronteira com o Turcomenistão! Será que eu teria problemas? Ou melhor, seguramente eu teria, mas quais?

Comprei uma garrafa de água em um mercadinho. Ao sair, parei para beber ao lado de uma vitrine cujo insulfilme dourado havia se tornado um espelho. Me vi, meu chapéu, minha mochila.

Pensei: Nossa, como estou magro. Como estou diferente. Que estranhamento.

Estava quase irreconhecível para mim.

Novamente, sou tomado por uma sensação de tristeza.

Sou eu mesmo?

Guardei a garrafa. Tirei uma foto daquele magro estranho de mochila. Guardei a câmera e permaneci mais um tempo olhando aquele reflexo dourado.

Tirei os óculos de sol. Tudo era brilhante demais. Dourado demais.

Só via brilho dourado naquele desconhecido.

Era eu mesmo? Como poderia saber? Quem poderia me garantir?

Magro demais. Desaparecendo. Apenas a mochila era grande. Imensa.

Talvez fosse distorção do espelho, criando uma mochila imensa e um corpo que se esvai na luz dourada?

Silêncio.

Coloquei os óculos, olhei para a frente.

Que venha o Turcomenistão.

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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