Tuesday, 9 May 2023

Novas Fronteiras (XXIII) - Dashoguz, Turcomenistão



O que é "Novas Fronteiras"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior deste diário
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Clique aqui para ver um mapa da viagem

23/8/2018

Após a travessia da fronteira uzbeque-turcomena, ainda bem, não houve surpresas. Depois da última cancela, um senhor logo me abordou perguntando se eu era quem eu era (quase lhe disse que não sabia mais quem eu era). Era o guia (e ao mesmo tempo motorista) que seria o responsável por mim em todos os passeios no norte turcomeno e pelo meu transporte até a capital, Ashgabat, que fica no sul, perto da fronteira com o Irã. Tive uma primeira impressão positiva. T me pareceu um sujeito tranquilo, sorridente e solícito. Meus temores de que teria um policial controlador ao meu lado 100% do tempo assim que atravessasse a fronteira pareciam infundados. Mas, claro, ainda era muito cedo para dizer.

A primeira cidade do outro lado da fronteira, Konye Urgench, era um dos sonhos mais cobiçados de turismo para mim. Há décadas sonhava em conhecer suas ruínas. Era uma fantasia alimentada por descrições nos livros que construíram meu imaginário da Ásia Central. Eu estava particularmente empolgando com a possibilidade de, finalmente, ver os turcomenos usado sua vestimenta tradicional. Lembrei de Colin Thubron:

À nossa frente, Konye Urgench havia sido ressucitada em volta de um núcleo de santuários. As ruas estavam lotadas de fantásticos anciões. Chapéus de pele de carneiro com tranças de lã penduradas como dreadlocks sobre as sobrancelhas e se prolongando uns 30 centímetros ao redor de suas cabeças. Embaixo desses velos monstruosos, se vestiam com botas altas até a altura do joelho e sobretudos acolchoados, charmosamente atados com uma faixa, esfaqueando o solo à frente deles enquanto se apoiavam em bengalas retorcidas.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia (1994)

Como já passava das 15h, T sugeriu que eu deixasse todo o passeio nas ruínas de Konye Urgench para o dia seguinte. Meu hotel para a primeira noite não ficava em Konye Urgench, mas sim em Dashoguz, uma cidade a cerca de uma hora de carro para o sudeste. Pensei na possibilidade de fazer o check-in e dar um passeio por Dashoguz, conhecendo assim a minha primeira urbe turcomena (um passeio que, em teoria, eu não poderia fazer desacompanhado; o único lugar do país que meu livro-guia e a agência de turismo onde contratei o passeio indicaram que eu poderia explorar de forma completamente autônoma era Ashgabat).

Apenas paramos no mercado de Konye Urgench para que eu pudesse trocar dinheiro. Câmbio à moda do Uzbequistão de dez anos atrás — no mercado negro. Dólares me deram uma fortuna, não uma pilha de dinheiro (como costumava acontecer no Uzbequistão), mas um maço de notas de alta denominação em manats, a moeda local. O mercado estava praticamente vazio, provavelmente por causa da hora. Mas, nas ruas próximas e nas poucas barracas ainda abertas, já via os primeiros sinais de um mundo completamente novo.

A roupa era o sinal mais evidente. Os homens, em vez de trajar a esperada indumentária tradicional eloquentemente descrita por Colin Thubron, incluindo o gigante chapéu-cabeleira chamado telpek, se vestiam com roupas ocidentais, camisa social, calça social, mas quase todos usavam um chapéu que eu nunca havia visto antes — uma espécie de solidéu com detalhes em amarelo chamado tahya. As mulheres trajavam vestidos longos, simples, sem botões, com um elaborado bordado na gola às vezes longo e indo além da área ao redor do pescoço e alcançando a altura do umbigo; são com desenhos geométricos ou florais, que mudam de mulher para mulher. Nas cabeças, as solteiras usavam tahyas com padrões diferentes das dos homens; as casadas, por sua vez, usavam na cabeça véus coloridos montados sobre altas tiaras, feitas de madeira e pano. Os véus envolvem completamente essas plataformas, e o resultado final faz com que as casadas pareçam estar levando coroas ocultas pelo tecido. Interessante que o primeiro paralelo que me veio à cabeça foi com as mulheres da Andaluzia, no sul da Espanha, que durante a Semana Santa usam espetado no coque, escondido sob um véu, um pente ornamental chamado peineta, igualmente deixando suas cabeças imensas e hipnotizantes. Quem sabe os dois tenham alguma ligação obscura, distante, com a expansão árabe que atingiu tanto a Espanha quando a Ásia Central no séculos VII e VIII.

Demorei um pouco para perceber que muitas turcomenas se sentiam desconfortáveis com o meu olhar interessado em suas vestimentas. Não estão acostumadas com visitantes. De fato, não encontrei um único turista além de mim. Isso me impressionou ainda mais por eu estar literalmente ao lado do Uzbequistão, a poucos quilômetros de centros de turismo massivo como Khiva, Bukhara e Samarkand. E ao norte da fronteira não se veem nunca essas coroas nas mulheres, essas impressionantes golas bordadas, os chapéus com detalhes amarelos dos homens. Fiquei boquiaberto também com o fato de que eu jamais havia visto esses detalhes da vestimenta turcomena atual, nem sequer em fotos. Uzbeques e turcomenos são povos irmãos e, durante a URSS, a fronteira que existia era apenas simbólica. Com a independência, a divisão arbitrária os afastou tanto que hoje quem sabe exista pessoas em Konye Urgench que nem sabem dizer que tipo de chapéu um homem uzbeque usa ou que imaginam que as mulheres uzbeques também usam tiaras gigantes na cabeça.

São povos irmãos, mas com diferenças significativas que estão ligadas não apenas à história de como surgiram, mas à geografia da região.

Os turcomenos ocupam uma vasta região onde as áreas disponíveis para a agricultura ficam apenas no norte, perto do Amu Darya e do Uzbequistão, e numa faixa no sul e leste, no caminho do gigantesco canal de Karakum, um dos maiores do mundo (mais de 1000 km), construído durante os anos soviéticos com a água do Amu Darya. O resto é o deserto do Karakum. Historicamente, é difícil falar de um "povo turcomeno". O povo até hoje é dividido em tribos que tinham numerosos integrantes vivendo como nômades do deserto até os tempos da URSS, cada uma falando um dialeto do que é hoje a língua turcomena. A tribo considerada mais dominante é a Teke, que ocupa tradicionalmente o sul; mas há outras com muita força regional ainda hoje, como os Yomuts na costa do Cáspio e no norte ou os Ersari no nordeste. O deserto marcou muito mais os turcomenos que os uzbeques, onde a cultura dos oásis, com a sua arquitetura concomitante, deu a tônica. No Turcomenistão muitos desses oásis deixaram de existir com o tempo, vítimas de mudanças naturais, ou foram destruídos por invasões sucessivas. Na chegada dos russos, no século XIX, o mais conhecido deles, Merv, já era uma vasta ruína. Nessa mesma época, os oásis de Bukhara e Samarkand, ainda que decadentes, ainda concentravam vasta população e eram centros regionais de poder. Além disso, uma região tão fértil como o Vale de Fergana, onde ficam algumas das cidades mais populosas do Uzbequistão, não encontra um análogo à altura no Turcomenistão. E o Vale é geograficamente muito próximo de regiões que tiveram uma imensa influência chinesa e mongol, mais do que jamais teve o Turcomenistão. Com menos oásis, até a chegada dos russos muitos turcomenos viviam basicamente de saquear caravanas que se aventuravam pelo perigoso deserto do Karakum, vendendo os seus integrantes em mercados de escravos como o de Khiva. Justamente essa foi a principal desculpa para os russos invadirem a região.

Outra diferença marcante entre o Uzbequistão e o Turcomenistão vêm da sua raiz túrquica, seu tronco etnolinguístico específico. Os turcomenos traçam sua ancestralidade às tribos túrquicas do ramo Oghuz, que eram dominantes no império túrquico seljúcida. Os seljúcidas, com capital em Merv, dominaram boa parte da Ásia Central, o Irã e a Anatólia por volta do século XI. Com a decadência deles, que coincidiu com os anos anteriores à chegada de Gengis Khan, os Oghuz mantiveram o domínio sobre a Anatólia e seriam, justamente, a origem do Império Otomano e da Turquia moderna. Assim, turcos e turcomenos têm uma profunda ligação histórica e cultural que se vê primeiramente na língua: os dois idiomas são baseados no dialeto Oghuz e são mais facilmente inteligíveis mutuamente hoje do que, por exemplo, turco e uzbeque. Os uzbeques tiveram origem étnica e linguística ligada a outras tribos túrquicas. No território do país atual, o patrimônio do império kharakhanida, por exemplo, se faz sentir até hoje, e os kharakanidas eram de outro ramal túrquico (tribos Qarluk, Tukhsi, entre outras) separado dos Oghuz.

Em Dashoguz, fui deixado por T em um hotel que me lembrou o de Navoi, um prédio antigo e baixo com detalhes modernos acrescentados posteriormente. O guia se despediu lembrando que no dia seguinte passaríamos a ter a companhia de outro turista, um espanhol, que havia pagado pelo mesmo passeio que eu, mas que estava chegando de avião a Dashoguz. Fiquei empolgado, afinal, poderia conversar com o companheiro em uma língua que me era muito familiar. Também lembrei do passado, da experiência com Iker, o simpático espanhol que me acompanhou em 2012 na aventura no Pamir. Mas não tinha como saber como seria o meu companheiro de viagem desta vez. Jovem? Velho? Sério? Piadista? Interessado em cultura e história, ou apenas interessado em experiências inusitadas de turismo? A empolgação que sentia era misturada com grande curiosidade. T não sabia de nada. Disse apenas que no dia seguinte estaria na porta do hotel às 8h nos esperando. E confirmou que, apesar das regras, eu estava livre para explorar Dashoguz como quisesse, sozinho, até nosso próximo encontro.

Não perdi muito tempo. Há tantos anos esperava o momento de colocar os olhos no Turcomenistão. Apesar do cansaço, do calor, não fiz mais que deixar a mochila no hotel. Com a mesma roupa suada da travessia da fronteira, ganhei as ruas.

Dashoguz tem uns 200 mil habitantes. O hotel ficava em uma esquina entre duas avenidas que me pareceram largas demais para o tamanho da cidade; uma delas tinha um parque linear no centro entre as pistas de sentidos opostos, e, segundo o mapa que eu havia baixando no celular, levava ao centro da cidade. Foi por ela que segui, a avenida com o previsível nome de Turkmenbashi ("Líder dos Turcomenos"), o título dado ao primeiro presidente do Turcomenistão, Saparmurat Niyazov (1940-2006).

A avenida ia mudando de cara à medida que me aproximava do centro. No início da caminhada, fui pelo meio do parque, com brinquedos gastos para crianças, uma estátua do próprio Niyazov e outra em homenagem ao cavalo da raça nacional, akhal-tepe, esguio e forte, um orgulho do país (a ponto de erguerem estátuas a ele). Os prédios à beira da avenida nesse trecho eram baixos, casas térreas ou de um andar, não aparentando ter nada de antigo. Mas, um quilômetro ou menos rumo ao centro, a transformação começou. Prédios brancos monumentais. Um era claramente um grande hospital; outros, tinham apenas dizeres incompreensíveis em turcomeno na fachada, impossível dizer o que eram. Todos prédios brancos, alguns com arquitetura futurista, com linhas de neon iluminando apenas o contorno da fachada.

A via prosseguiu até uma grande rotatória perto de prédios do governo e hotéis. Ninguém nas calçadas. Nessa altura, após umas duas horas de caminhada, tudo já estava escuro; os neons nas fachadas da avenida me causavam uma sensação estranha de estar dentro de um parque de diversões vazio. Ou em uma Las Vegas sem cassinos ou gente nas ruas, triste, apenas com alguns edifícios incomuns, elementos decorativos que em outros lugares poderiam trazer alegria, mas não aqui.

Voltei para o hotel de táxi. Após agradecer e pagar, percebi, em frente ao hotel, um outdoor. Uma foto do novamente sorridente presidente Berdimuhamedow, com seus dentes alvos, segurando dois filhotes de cachorro raça alabai (também conhecido como pastor-da-ásia-central ou mastim-da-ásia-central), outro orgulho do país. A cor predominante dos filhotes era branca. O presidente na foto usava um chapéu telpek típico, de pele, alto, gigante. Também branco. Uma aura de pureza, de santidade.

(Uma estranha constatação. Nem o taxista, nem os funcionários do hotel, nem meu guia, nem os guardas na fronteira, nem os poucos que encontrei na rua... Nenhuma pessoa viva que encontrei nesse primeiro dia no Turcomenistão vestia branco.)

Como em relação aos cavalos akhal-teke, o governo atribui uma incrível, inacreditável, importância aos alabai. Bizarro para um visitante como eu, mas com alguma lógica. O cão e os cavalos foram instrumentalizado para reforçar a identidade turcomena, como um elemento unificador entre as diversas tribos. As raças são consideradas parte do patrimônio do país. Além disso, à moda dos pandas na China, os cães são usados pelo governo turcomeno para fazer diplomacia. Em 2017, o presidente russo Vladimir Putin fazia 65 anos quando encontrou Berdimuhamedow na cidade russa de Sochi. Na ocasião, o líder turcomeno lhe entregou seu presente especial de aniversário — um fofo filhote de alabai.

Mas nem sempre foi assim. É ainda mais interessante verificar a diferença entre a forma como Berdimuhamedow e o seu antecessor, Saparmurat Niyazov, se relacionavam com cachorros, um animal visto, notoriamente, como sujo e despresível por muçulmanos mais conservadores. Todo-poderoso, conhecido pelos seus decretos aparentemente malucos (como trocar a palavra "pão" pelo nome de sua própria mãe e mudar o nome dos meses do ano), Niyazov chegou a banir os cachorros da capital turcomena alegando que eles fediam. Berdimuhamedow, por sua vez, favoreceu os alabais a tal ponto que determinou que eles fossem usados como cães farejadores pela polícia. Mas os dois líderes, criatura e criador, compartilham o mesmo ódio de cães (e gatos) vira-latas nas ruas. Há relatos de matanças em massa de cães de rua, inclusive com funcionários do governo espalhando comida envenenada pelas calçadas — o que teria levado à morte também de mascotes com dono, que apenas estavam sendo levados na coleira para passear. Um escândalo para os fãs de pets no Ocidente.

No totalitário Turcomenistão, evidentemente, não houve quem pudesse protestar.

Dashoguz, 23h17, 23/8

Clique aqui para ler o próximo capítulo





































Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

Clique aqui para ler o primeiro capítulo deste diário
Voltar para o topo desta página
.

No comments:

Post a Comment