Thursday, 1 June 2023

Novas Fronteiras (XXVI) - Erbent, Turcomenistão



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25/8/2018

Tive mais oportunidades para entender F, meu companheiro de viagem, na manhã seguinte, após nos despedirmos de J e da cratera de fogo eterno. Às 7h40, já estávamos na estrada, a caminho de Ashgabat, com o sol morno batendo no rosto.

F mora em Hong Kong e, antes, já havia morado no Golfo Pérsico. Apesar de estar na ex-colônia britânica, onde muitos vêm com extrema desconfiança as autoridades de Pequim, sua opinião sobre o governo chinês, e de forma mais abrangente qualquer governo, ecoava justamente a linha oficial do PC chinês. "Eu acho", disse ele em relação à China, em tom um tanto professoral, "que não cabe a nós criticar. É o país deles. Eles que se entendam. O que sei é que a China funciona e que não temos que assumir uma postura de superioridade. Direitos humanos, questões sociais, política. São assuntos deles. Temos que respeitar nossas diferenças. E eu vivo muito bem lá".

F estava sentado no banco da frente do carro ao lado de T, nosso motorista. Após sua resposta, me calei. Não necessariamente, naquele momento, por rejeitar totalmente seu pensamento, nem por concordar incondicionalmente com ele, mas porque precisava de tempo para refletir.

Na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos, somos bombardeados, diariamente, por uma onda de críticas à China que alimentam um sentimento que, francamente, beira o preconceito. Mas, se há comportamentos incentivados por essa propaganda que são condenáveis (qualquer ato de generalização a chineses, esteorotipização, tratá-los sem o respeito que merecem), por outro lado muitas das críticas feitas às autoridades chinesas não podem ser relevadas e não têm nada a ver com preconceito. Como no tocante aos tempos soviéticos, é inútil tentar absorver Stálin dos crimes hediondos que cometeu contra seu próprio povo, da mesma forma é inegável que o governo chinês atua como um rolo compressor sobre quaisquer setores da sociedade que antagonizam seus interesses de controle total. Há os moradores de Hong Kong, preocupados com a possibilidade de perda de seus direitos democráticos. E há os membros de etnias que têm pouco ou nenhuma identidade com os chineses de etnia han, que formam a maioria. É o caso dos tibetanos e dos uigures. Alguns dos piores horrores de Stálin foram associados às deportações forçadas de povos inteiros durante a Segunda Guerra, as quais, na prática, equivaleram à execuções de milhares de pessoas, arrancadas de suas terras, colocadas em trens em temperaturas baixíssimas e forçadas a viajar como gado aos confins da Sibéria e da Ásia Central, onde tinham que encontrar uma forma para sobreviver. Os chineses aprenderam perfeitamente as lições da era soviética. Seus abusos são um pouco mais sutis. Não deportam, mas prendem e executam pessoas, além de perseguir pensamentos dissonantes até um ponto em que as populações problemáticas não mais representem um empecilho ao Estado autoritário.

Os uigures, naturais da região autônoma de Xinjiang, no extremo oeste da China, moram no meu coração. Ocupam a região do berço geográfico dos povos túrquicos, de onde saíram há séculos para ocupar boa parte da Ásia. O nome da etnia evoca um breve reino (o Khanato dos uigures) que existiu entre Mongólia, Manchúria, Tibete e Turquestão nos séculos VIII e IX. Falam uma língua muito parecida com o uzbeque e têm uma cultura que é inequivocamente centro-asiática. Nos últimos anos, esse povo tem sido vítima de um processo de afogamento cultural que inclui o assentamento de milhares de chineses de etnia Han em Xinjiang (hoje, os uigures já são minoritários em algumas áreas); assédio policial contra aqueles que falam a língua uigur, praticam a tradicional religião muçulmana ou hábitos culturais locais; e até mesmo destruição do patrimônio cultural arquitetônico (mesquitas). Há relatos de uigures sendo presos em campos de concentração onde sofreriam um processo de "educação" para se tornarem bons chineses, de acordo com a linha do partido. Assim, essa cultura aceitável por Pequim vai sendo enfiada goela abaixo desse povo. Para ter chance de empregos e paz, os jovens são tentados a abandonar sua identidade, suas raízes. Assim, um povo que tem uma importância inestimável para a história da humanidade vai sendo aos poucos eliminado. Não é à toa que muitos uigures recorrem à violência contra as autoridades (e são justamente esses atos isolados que tornam a repressão mais brutal, justificando-a).

F me coloca um contraponto. Sim, temos que respeitar nossas diferenças com os chineses. De fato, cada país tem seus desafios e, se o Brasil tem hoje a felicidade de não ter que conviver com conflitos étnicos, provavelmente é porque os colonizadores fizeram "o favor" de eliminar em massa os povos originários e se apossar de suas terras, um processo que continua ainda hoje sem muitos pudores, com pouco alarde na grande imprensa. No tocante ao avanço chinês na esfera global, concordo com F quando diz que não cabe a ninguém no Ocidente criticar os planos de Pequim. Não entendo qual seria a utilidade de atacar esse ponto específico. Não vejo motivo para temer uma China agressiva, impondo seus interesses econômicos, por exemplo. Os Estados Unidos, a Rússia e tantos países fazem o mesmo. Se não há derramamento de sangue, se não há injustiça, não vejo motivos para alarde. O temor é alimentado sobretudo por parte dos competidores de Pequim, como os Estados Unidos. É claramente do interesse dos Estados Unidos que o mundo tenha preconceito em relação à China. Não necessariamente se fechando aos chineses o mundo como um todo sairia ganhando.

Se há injustiça provocada pelos chineses, é outra história. Há posições chinesas que são indefensáveis. É necessário proteger minorias, a fonte da maior riqueza da humanidade, sua diversidade. Nunca vou conseguir entender a eliminação sistemática de culturas ou povos. As pessoas devem ser sempre livres para terem a identidade que tiverem. Se isso representa um risco ao regime, o regime precisa se adaptar de forma a respeitar essas minorias. Sem supressão. Do contrário, evidentemente, o país como um todo empobrece. Talvez seja impossível, talvez seja inocência minha achar que um regime não-democrático possa proteger minorias. Não sei ao certo. Só sei que não posso aceitar o que acontece com os uigures.

Quando a reflexão terminou, olhei para F. Ele estava sério, seus óculos escuros estavam refletindo o sol. Naquele momento, me lembrou um general-presidente do nosso período militar, quem sabe um Geisel ou Figueiredo. Ele parecia desprezar com naturalidade o que me atormentava. Isso me assustou. E, de repente, tive uma revelação: no Turcomenistão, F é o turista que anseiam ver as autoridades, o turista correto: endinheirado e com a visão que tem. Eu, por outro lado, uma pessoa que gosta do povo, da cultura e da história da Ásia Central, que há décadas sonha em visitar o Turcomenistão, sou o turista errado.

A estrada estava então com um asfalto perfeito, bem diferente do que tinha na saída de Konye Urgench. O deserto também havia continuado a mudar. Havia agora mais dunas, dromedários mais frequentemente apareciam à beira do caminho. Em alguns lugares, só areia, nenhuma vegetação. O carro ia em alta velocidade, o ar condicionado foi ligado logo às 8h e não era desligado um segundo sequer.

Aproximadamente uma hora depois, T novamente fez um desvio, tirou o carro da estrada. Encontramos algo inédito em todo o caminho desde Konye Urgench: uma cidade. Na verdade, não uma cidade, um vilarejo, no meio do caminho entre Darvaza e Ashgabat. T queria nos mostrar um pouco da vida tradicional turcomena. Logo entendi que essa era uma mensagem oculta do nosso guia para nós. Ele queria que víssemos o Turcomenistão além dos pontos turísticos e do que o governo queria que víssemos.

A primeira impressão de Erbent, o nome da vila, foi que era um lugar bem pobre. Muitas das casas eram de tijolos de barro sem nenhum tipo de reboco. Havia algumas iurtas empoeiradas feitas de palha erguidas ao lado das casas. Pelos cantos, havia cercas com a familiar lenha retorcida das árvores saxaul, as mesmas do Mar de Aral, as únicas que conseguem aguentar o deserto. Não havia, na verdade, ruas. O caminho entre as casas e iurtas era de pura areia. O carro passava onde podia, onde havia espaço para passar. E, ao passar, levantava poeira, e ela refletia o sol.

Uma secura absurda. Não entendi como essas pessoas poderiam estar ali, de onde vinha a água para sobreviverem.

Logo percebi, para minha surpresa, que a pobreza não era completa. Encontramos algumas casas boas de alvenaria e muitas antenas parabólicas. Mesmo sem muito dinheiro, as pessoas investem o que for possível para não ficarem isoladas.

O carro parou ao lado de uma estrutura curiosa, um forno de pão chamado tandyr, mesma etimologia do forno tandoor indiano, feito de barro e decorado com motivos tradicionais. O pão, chamado no Turcomenistão de çörek, é tão sagrado para eles como para os demais centro-asiáticos. Mas, ao menos em Erbent, parece ser mais importante do que a própria água. O forno e sua decoração chamativa parecem estar em um lugar de destaque no povoado, como um monumento. Impossível não notá-lo. Deve ser uma referência para todos na ausência de uma praça ou mesmo ruas definidas.

O turcomeno ainda é um povo nômade no coração, explicou T. Em gerações passadas, viviam sem lugar definido, no deserto, procurando locais com comida e água para si e seus dromedários. Mas o governo soviético começou, e o governo turcomeno continuou, empurrando-os para a vida urbana. E aqui estão eles. Fiquei curioso em saber se estão melhores hoje do que estavam seus antepassados.

Na porta de uma casa, encontramos uma senhora com um longo vestido azul, em silêncio, sentada em degraus que dão acesso à residência. Com ela havia três crianças, dois molequinhos de uns cinco anos e um menor, de uns três, que arregalaram os olhos e empinaram as orelhas ao ver os estranhos chegando. As crianças se desvencilharam dos braços da mulher e vieram ao nosso encontro. Logo, do nada, apareceram mais quatro, uma menina com uns dez anos, uma um pouco menor que ela, e outros meninos. Nos cercaram, mas sem jamais nos tocar, diferentemente do que acontece com frequência em lugares tomados por turistas. Eram muito educadas e respeitosas, tão respeitosas que comecei a desconfiar que, na verdade, estivessem com medo de nós.

Fiquei sem saber bem o que fazer, sem saber se falava algo mesmo que não entendessem, se as tocava.

Me agachei, olhei para um menino, seu rosto diretamente contra a luz do sol, os olhos meio fechados pela claridade. Houve então um momento mágico em que nós dois ficamos em silêncio, fixamente, um olhando bem nos olhos do outro.

Sorrimos.

F é mais esperto que eu. De repente, tirou do bolso algo. Eram contas coloridas, pedrinhas. Não tenho ideia de por que as levava no bolso, me pareceu algo surreal de se carregar. Também tirou um novelo de uma linha bem fina. Se agachou e pôs-se a falar em inglês com os pequenos. "Venham, venham, tenho um presente para vocês." E todas as crianças, inclusive o menino à minha frente, foram em sua direção. F começou a desenrolar a linha e, meio ofuscado com a luz do sol, a coloca-a em buraquinhos nas contas. Uma conta por linha. Liberava um pouco de linha para ficar bem folgado e a cortava. Amarrava. Pronto. Colares. "Quem quer?" Duas ou três crianças levantaram o braço, entendendo perfeitamente. O primeiro colar foi para um menininho.

Que bom poder dar às crianças algo, e esse algo nem era o óbvio, um doce ou um pacote de bolachas. Não. Era algo especial, cujo significado suas poderosas imaginações irão se encarregar de definir. Uma pedra mágica trazida de longe por um estranho. Uma pedra colorida cuja origem é incerta, misteriosa; que esteve do outro lado do mundo e veio morar perto do peito de uma criança em um povoado no meio do deserto turcomeno. Uma joia para cada uma. Brilhando com o sol.

Fiquei comovido. Que boa ideia a de F! Aquela seria, sem dúvida, a lembrança definitiva que eu teria do meu companheiro de viagem, não sua visão sobre a China. De repente, todas as crianças estavam sorrindo, comparando seus colares com os das outras. Imaginando suas habilidades sobrenaturais e indicando ao amigo que a sua pedra era a mais bonita, a mais colorida, a mais poderosa.

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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