Sunday 11 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXX): Khorog

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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24/9/2012

A planície é chamada PAMIER, e atravessa-se ela cavalgando durante 12 dias seguidos, encontrando nada a não ser deserto sem vivendas ou qualquer coisa verde, de forma que os viajantes são obrigados a carregar consigo o que quer que venham a precisar. A região é tão elevada e fria que você não consegue ver quaisquer pássaros voando. E eu devo notar também que, por causa do grande frio, o fogo não brilha tanto, nem produz tanto calor quanto de costume, nem permite cozinhar a comida tão efetivamente."
- Travels of Marco Polo (século XIII)

No caminho.

O carro desce um vale profundo. Estamos em uma montanha de terra seca. Terra ocre, terra avermelhada. Alguns arbustos.

À direita, lá embaixo, bem longe, um pequeno rio vai ziguezagueando em direção a um maior, com uma água bem cinza.

Muita poeira lá fora. Sol forte. Nenhuma nuvem.

O grande rio cinza vai aos poucos se aproximando do nosso possante veículo 4x4, uma espécie de jipe.

Muitas, muitas curvas. Continuamos descendo devagar. Pulando com os buracos da estrada horrorosa.

O rádio toca música pop em alguma língua que nem sei qual é. O motorista segue quieto, concentrado.

Todos no carro estão sem abrir a boca. Se ouve apenas a música e pedras pequenas e grandes colidindo sem parar com a parte de baixo do carro.

Uma hora depois, chegamos lá embaixo. O grande rio toma sua posição à direta. Do meu lado.

Olho ao redor pela minha janela. Pelo para-brisa. Pela janela da esquerda.

O cenário é de arrepiar. Literalmente. Minha pele congela por alguns segundos. Além do rio, no lado direito, picos altíssimos de pura pedra, os mais altos que já vi. Também vejo o mesmo do lado esquerdo, beirando a estrada. E à frente, por onde vai o nosso caminho, mais montanhas.

Em vários momentos, me esforço para tentar enxergar, dentro do carro, o cume dos picos, à direita ou à esquerda, e não consigo. Vejo apenas paredes de pedra.

A estrada é realmente muito dura. Asfalto em pouquíssimos trechos. Na maior parte, cascalhos, rochas. Buracos imensos. Terra que vira poeira. Ao avançar, estamos criando uma nuvem de poeira cinza. Se estivesse chovendo, duvido que qualquer carro passasse por aqui.

Seguem-se as horas.

No caminho, mais, mais, mais montanhas altíssimas. A estrada continua beirando os pés dos picos e o rio.

De vez em quando, o caminho passa por pequenas planícies de pedregulhos que se abrem entre as paredes de pedra e a água. É onde algumas pessoas têm suas casinhas. Gente muito isolada, gente muito pobre. Gente desconhecida com olhos no carro como se o carro fosse um milagre. Vê-se apenas mulheres e crianças. Viram-se para ver o veículo chegar. E viram-se para respirar a poeira e ver o veículo passar. E misturam-se ao cinza. E viram cinza, poeira.

Após uma curva, o rio fica mais raso e amplo. Cria-se uma praia de cascalho e mais um espaço para um vilarejo. Vamos chegando e aparecem apenas crianças. Aparecem do nada, antes mesmo de podermos discernir qualquer casa. Trazem baldes com maçãs muito vermelhas. Trazem colares feitos com sementes de pistache. Risonhas, mas muito sujas, miseravelmente sujas. E com roupas coloridíssimas, como que para ajudar a diferenciá-las da poeira. As meninas com seus vestidos longos, alguns vermelhos, outros verdes. Vejo, depois, um outro grupo, só de meninos. Nos enxergam, estão perto das casas do vilarejo, e vêm correndo na nossa direção. Na corrida, suas sandálias quase escapam do pé. Não trazem nada para vender. Querem apenas nos ver. Sorriem.

Pouco depois, três vacas cismam em tomar o meio da estrada. Esta estrada é delas, não nossa. Devagar, vão-se as vacas, os meninos, as meninas. Vão-se maçãs e pistaches. Vai-se o vilarejo como se nunca tivesse existido. Talvez não tenha.

Voltam as montanhas, apenas as montanhas e o rio Panj, à direita (veja mais um vídeo com um panorama da região abaixo).



Do outro lado do rio, a terra proibida do mundo perdido. Meu celular está ligado, com um chip que comprei no Cazaquistão. De repente, algo surreal. Ele treme no meu bolso. Olho, é um torpedo, em inglês. Um torpedo? Quem me mandaria um torpedo? Abro para ler. É do serviço de roaming. Bem-vindo à Roshan. Fique com a Roshan para usufruir da maior rede de cobertura. Aproveite bem sua visita ao Afeganistão. Pela segunda vez nesta jornada desde Dushanbe, um longo arrepio. A confirmação de que, do outro lado do rio, está a terra do Talibã.

Do lado tajique ao afegão, por quilômetros e quilômetros de estrada que vamos vencendo, não encontramos nenhuma barreira, nenhuma cerca, nada. Só o rio. Diria que é fácil de atravessar, com uma pequena canoa ou mesmo a nado, mas não dá para saber a força da correnteza. Do outro lado, surgem lá e cá casinhas afegãs, isoladíssimas. Depois, um vilarejo. Depois, outro vilarejo. Não vejo neles, à distância, nenhuma alma viva. Parecem cidades fantasmas.

Ninguém parece patrulhar esta fronteira. Se há traficantes operando entre os dois países, eles não devem ter muita dificuldade de cruzar por aqui. Contudo, quem quer que venha para cá com o objetivo de traficar drogas ou armas entre um país ou outro deve enfrentar dois problemas sérios. Um é justamente o isolamento. Chegar a esta fronteira com uma carga não deve ser fácil. Mesmo as cidades afegãs mais povoadas que ficam perto daqui já são isoladas dentro do país pela geografia das montanhas. E o segundo problema é que, dizem, essa fronteira está salpicada de minas terrestres.

Todos gostariam de parar, tirar fotos, esticar as costas. Mas melhor não parar o carro.

Seguem-se as horas.

Lá pelas 22h, tudo escuro, estou conversando com Iker em espanhol - incompreensível para Kim, o motorista e mais um homem e um casal de pamiris que viajam conosco.

A conversa é interrompida. Nós dois nos calamos olhando para frente, vendo o que parece ser o céu negro profundo com estrelas, com um brilho puro que eu nunca havia visto. "Olhe o céu!", digo a Iker.

"Não é o céu", responde, deslumbrado. "É o Afeganistão!".

Estico a cabeça e vejo o céu, claro por causa da Lua crescente quase cheia, sem estrelas. Em baixo, as montanhas criam sombras sobre si mesmas, escondendo completamente as casas do outro lado do rio, menos a luz dentro delas. O firmamento que vimos era o mundo apagado com algumas estrelas caseiras. O universo se inverteu.

Nosso carro, com os faróis, se transformou em um brilhante cometa.

Por volta da 1h a Lua foge para o Brasil, desaparece do nosso céu. O motorista não aguenta mais e para o carro para urinar. Para, repentinamente, no meio da estrada, freia e desliga o motor, só deixando os faróis.

Até onde posso ver no breu, as montanhas ainda altíssimas nos cercam completamente. Somos um nada perto desses titãs. Se o carro é um cometa, somos poeira cósmica. E por falar em estrelas, elas, de verdade, finalmente aparecem. Vejo as Plêiades, vejo Alderbarã, tudo com irreal nitidez. Sinto uma alegria boba de reconhecer algo, as estrelas, nesta dimensão.

As estrelas, como setas, indicam o caminho. Mais estrada, mas falta pouco.


* * *

Pamir. O nome evoca isolamento a um ponto que as duas palavras, Pamir e isolamento, poderiam ser usadas como sinônimos. O local talvez seja de mais difícil acesso que as montanhas do Himalaia, que o próprio Tibete. E talvez seja ainda mais desconhecido - visto que tantos são atraídos ao Himalaia por causa do Everest, e tantos outros ao Tibete pela projeção internacional do Dalai Lama, pelo impacto do romance e do filme Sete Anos no Tibete, pela popularização do Budismo tibetano. Enquanto esses locais têm uma identidade com projeção no mundo atual, que se pode dizer do Pamir? No Ocidente, o local aportou no relato de Marco Polo. E até hoje esse relato permanece sendo a maior referência para ele.

Acho que ninguém sabe ao certo o que é o Pamir. Eu mesmo me incluo entre os ignorantes. Sempre imaginei que Pamir fosse o "Planalto de Pamir", uma região de altiplano. Mas essa é apenas uma parte dele. O Pamir é também um conjunto de altas montanhas entre China, Tajiquistão e Afeganistão.

Geograficamente, no Tajiquistão, há duas regiões distintas do Pamir. Mais a oeste, nas imediações de Khorog, há montanhas imensas e vales profundos onde vivem comunidades que, tradicionalmente, falam dialetos diferentes em cada vale. Culturas com restos de civilizações antiquíssimas, preservadas pelo isolamento. No leste do Pamir tajique, têm-se o altiplano em si, imortalizado pelo nome persa Bam-i-Dunya, "Teto do Mundo", passando dos 4 mil metros. Há quem chame a região de "montanhas Pamires", ou "Pamires". Prefiro chamá-lo de "o Pamir" como se diz "o Himalaia" ou "o Tibete". Pois são montanhas, são altiplano, são vales, são uma diversidade geográfica, cultural. São um micromundo.

Para complicar, o Pamir é dividido em vários "Pamires". Os mais conhecidos são o Pequeno e o Grande Pamir, ambos na parte oriental, incluindo partes do Tajiquistão e do Afeganistão. Se fala também de Pamir de Taghdumbash (na China), Pamir de Sarez (região da cidade tajique de Murghab), Pamir de Alichur (perto do vilarejo tajique do mesmo nome) e outros. Todos micromundos dentro do micromundo. Todos desconhecidos, todos, acenando ao intrépido viajante.

Até o nome vem carregado de mistério. Difícil descobrir que começou a chamar essa região de "Pamir". O nome aparentemente vem do persa antigo, com o significado de "pastagens onduladas", provavelmente associado ao panorama do altiplano. Por outro lado, os chineses se referem a esta região como "Montanhas das Cebolas" ou "Cordilheira das Cebolas", devido a cebolas selvagens supostamente encontradas no solo da região.

Para ir de encontro a este mundo, saímos de Dushanbe às 9h numa gloriosa manhã, tempo maravilhoso. Paramos para almoçar por volta das 13h no sul tajique, na cidade de Emomali Rakhmon, Kulob. Depois, só paramos para jantar, em Kala-i-Khumb, já em plenas montanhas do Pamir, às 19h. Aqui, me informaram que ainda teríamos umas sete horas de curvas. E nesse trecho final fizemos uma pausa apenas mais uma vez, para o motorista se aliviar.

Quando chegamos a Khorog são 2h30 da manhã. Estamos demolidos, exaustos. Faz frio, menos de dez graus. Cada osso do meu corpo solta um suspiro de alívio quando deito na cama da hospedagem providenciada por Rozik na casa do sogro dele. Uma cama quentinha, cheia de cobertores vermelhos.


* * *

Além do puro desgaste físico da estrada, a épica travessia foi pontilhada por encontros desagradáveis com policiais e militares. Nos povoados pelo caminho, vimos pelotões de homens com fuzis marchando, mesmo no meio da noite, no luar. E a cada dois ou três povoados, enfrentamos um bloqueio policial na estrada. Alguns dos policiais pediram nossos passaportes e, é claro, desconfiamos que a demora em liberar nosso carro se devia à ganância ao ver os "endinheirados" estrangeiros.

Apenas um bloqueio, porém, nos trouxe dor de cabeça de verdade.

Perto de Kulob, antes da descida para o rio Panj, paramos em uma cancela em um lugar ermo, empoeirado, no alto de uma montanha de uns 1.500 metros. No Sol e no vento, os soldados pediram todos os passaportes e com eles foram para uma pequena guarita ao lado da cancela. Depois de uma espera de uns 15 minutos, sem nenhuma justificativa, um deles ressurge e pede para que os turistas que não fossem do Tajiquistão o acompanhassem. Fui escolhido para ir sozinho e representar Kim e Iker por ser o único com algum conhecimento de russo.

Cordial, entrei na guarita e apertei as mãos dos três pequenos vermes vestidos com seus uniformes verdes. Me impressionei ao vê-los melhor, verificando quão jovens eram. O líder deles parecia ser especialmente diabólico. Loiro, magro. Parecia russo (a Rússia envia soldados para ajudar o Tajiquistão a patrulhar a região da fronteira com o Afeganistão). Cara de vilão de faroeste. E um cinto-relíquia, com a fivela com o símbolo da foice e do martelo.

Me veio com a história de que nem eu nem meus colegas tínhamos o "passe" especial para avançar rumo a Khorog. Todos nós, evidentemente, tínhamos conseguido previamente, além do visto tajique, um carimbo especial no passaporte autorizando nossa viagem a Gorno-Badakhstan, inclusive detalhando as cidades (entre elas, Khorog) onde tínhamos autorização de passar. O militar, porém, me disse que outro passe (que ele poderia fornecer em troca de dinheiro) era necessário por causa dos problemas recentes que haviam ocorrido no Pamir. Respondi, novamente com educação, que ninguém tinha conhecimento de nenhuma exigência especial, que nos haviam dito em Dushanbe que o passe era o carimbo especial no passaporte e que nada mais era necessário. O líder, não esperando minha reação, coçou o queixo e a cabeça. Eu já sabia o que iria acontecer.

O motorista de nossa 4x4 (que não falava inglês) interveio. Apareceu de surpresa na guarita. Na minha frente, falou longamente com o militar corrupto. Pelo pouco que pude entender da conversa em um russo bem rápido, o motorista tentou argumentar, mas o militar estava irredutível. Afastei-me. Fui para perto do carro chutando montes de poeira no chão, com as mãos no bolso. Iker e Kim, perdidos, me perguntam o que está acontecendo. Lhes digo. Respiram fundo, em silêncio.

Permaneci de pé do lado do carro por uma hora ou mais, até cansar e esboçar voltar para dentro do veículo. Nesse momento, o motorista, enfurecido, com os olhos vermelhos e prestes a explodir, sai da guarita com nossos passaportes. Entramos no carro e a cancela finalmente se abre.

Ficamos então sabendo os detalhes da negociação. O vilão de faroeste havia pedido inicialmente US$ 200, um absoluto disparate, uma fortuna para qualquer tajique. O motorista, um pamir que depende justamente do dinheiro dos turistas que viajam para Khorog e que ficou semanas sem faturar por causa dos problemas na região, manteve a paciência e foi negociando uma diminuição no preço do "passe".

Fomos liberados por cerca de US$ 15 (um montante também bastante considerável para os padrões locais). O motorista pagou do próprio bolso e não quis nos cobrar. Estava absolutamente enojado com os militares.

Vendo a cena, fiquei imaginando como o motorista deve enfrentar o mesmo périplo toda vez que transporta estrangeiros, a cada viagem infinita e dolorosa a Khorog e de Khorog a Dushanbe. Como já devia conhecer o vilão de faroeste de outras ocasiões, e como o vilão de faroeste não estava nem aí com ele, com seu ganha-pão, com a economia local, com os outros pamires que estavam no carro conosco. Total desrespeito, corrupção sólida, profunda. Caso os militares fossem russos, e pareciam ser, isso só aumentaria a dor dos locais, vítimas dessa intimidação cotidiana por parte dos colonizadores de décadas e décadas.

Fiquei pensando nisso e também no outro lado: como esses jovens militares devem ter um treinamento ridículo, um equipamento obsoleto e, principalmente, um soldo absolutamente irrisório, enquanto recebem a responsabilidade de patrulhar uma das fronteiras mais perigosas de toda a ex-União Soviética. Uma fronteira que pode gerar uma fortuna em contrabandos. Uma receita pode ser usada para cooptar esses garotos, fechando o ciclo de perdição.


* * *

Outro problema de saúde. Agora, estou com uma tremenda prisão de ventre. Há cinco dias meu intestino não funciona, embora eu me sinta ótimo e a urina esteja dourada e saudável. Em Khorog, vou ter que procurar um laxante.

Khorog, 25/9, 12h30

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