Sunday, 3 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XIX): Shakhrisabz

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

13/9/2012

Línguas. Buchos rugosos, negros, marrons. Algum tipo de víscera não identificável por mim. Patas decepadas, ensanguentadas, com pele, carne, ossos e tendões. Um açougueiro com gotas de suor pingando na matéria vermelha, trabalhando sob o sol ardido das nove horas da manhã na calçada destroçada, ao lado do asfalto com seus furgões e buzinas e poeira. Ele usa um toco de madeira como mesa. Uma faca suja. Sobe e desce com golpes violentos, rasgando músculos, separando fibras. A cada movimento, abrindo caminho entre as moscas que sugam o sangue escuro e morno, escorrendo lentamente para o chão. Os carrinhos com os miúdos estão à sua frente e pertencem a ele e a outros açougueiros vizinhos.

Este é o mercado de Shakhrisabz. Há muita gente por perto, passando, olhando, pessoas carregadas de sacolas com frutas, pães. As mulheres com seus vestidos e véus multicoloridos. Os homens, quase todos com o chapéu negro uzbeque, o dope. E há quase tantas moscas quanto pessoas. Melhor não respirar pela boca. Sente-se bem o cheiro, uma mistura de gordura fresca, sangue, uvas doces, melões maduros, gás dos escapamentos dos carros e poeira.

Se Otyrar foi o fim, Shakhrisabz foi o início de Tamerlão. O conquistador teria nascido por aqui em 3 de abril de 1336, embora, como é comum ocorrer, estudiosos discordem a respeito da data correta. O historiador Arabshah, uma das principais fontes sobre as origens de Tamerlão, narra a lenda: fala-se que, quando nasceu, de uma mãe descendente de Genghis Khan, ele encontrou o mundo com as mãos cobertas de sangue, e o significado do presságio foi claro, anunciado o sangue que iria derramar. Veio a conquista de um território imenso, da Ásia Menor às portas da China, da Sibéria à Índia. Um império que ousou se comparar ao de Genghis, ainda que nunca tenha sido tão extenso quanto o do grande líder mongol.

Muito embora tenha transformado Samarkand na capital de seus domínios, embelezando-a para ofuscar quaisquer conquistadores que a viessem a cortejar, Tamerlão sempre manteve Kesh (o nome ancestral de Shakhrisabz) como o seu lar espiritual, mantendo com a cidade uma relação muito mais pessoal. Aqui, construiu ainda em vida palácios e mesquitas imensos e até mesmo sua própria tumba, que acabou, contrariando seu desejo original, sendo preterida pelo grande mausoléu Gur-i-Emir em Samarkand. Aqui, enterrou seu mais amado filho, o primogênito, Jahangir. Aqui, permanece ainda mais vivo que na famosa cidade mais ao norte.

Um raro registro histórico, com os nomes em grafias antigas, descreve a cidade em 1404, quando Tamerlão ainda caminhava sobre a Terra:

Se chama Quex: a tal cidade estava em uma planície, e por todas as partes por ela passavam arroios e fontes de água, e havia muitas hortas e casas ao redor delas (...) e desta cidade de Quex era o senhor Tamurbec, e daqui era seu pai. E nesta cidade havia grandes edificações de casas e mesquitas (...)
- Embajada a Tamerlán, Ruy González de Clavijo (narrativa de viagem feita entre 1403 e 1406)

Shakhrisabz me impressionou por razões diferentes das que esperava. Não são apenas os fantasmas timuridas. O mercado, agitadíssimo, margeia a via principal da cidade (a estrada ligando Samarkand a Termez, na fronteira afegã), tomando a calçada e uma área coberta específica para ele, como em outras cidades centro-asiáticas. Ele é uma oportunidade maravilhosa em termos de visualização da cultura uzbeque. Não encontrei turistas como eu, vindos de longe. Encontrei uma orgia de cores, as cores dos vestidos das mulheres, de seda pura, com mil tons que rutilam no Sol. Quase todas usam véus também coloridíssimos e de seda, mas há algumas que exibem o chapéu típico uzbeque para mulheres, pequeno como o dope, frequentemente dourado e com cordões como franjas. Chapéus uzbeques na cabeça da maioria dos homens, mas um ou outro usando turbantes e longas barbas. Essas exceções, tanto no caso das mulheres quanto no dos homens, são bastante incomuns nas grandes cidades do Uzbequistão, e me sinto privilegiado de ainda poder testemunhá-las, verificando um aspecto de séculos de tradição local.

Outra orgia de cores, a das frutas. E quantas frutas. Melões do tamanho de melancias. Vendedores de sucos coloridos que não me atrevi a experimentar; mesas com hortaliças, legumes, roupas e bugigangas chinesas. Mas, sem dúvida nenhuma, os reis da feira livre são os vendedores de carne. A carne é realmente exposta com completa naturalidade no meio da rua, ficam em carrinhos de mão, como os usados em construções no Brasil. Nada de refrigeração. Os vendedores de miúdos são disputados. Os compradores simplesmente espantam a frota de moscas para ver a mercadorias. Vendedores de coalhada - o que julgo ser coalhada, uma pasta de leite - também não se importam com a refrigeração. Os montinhos de pasta ficam expostos em uma mesa, no calor, aos insetos.

Tudo isso sob o olhar de Tamerlão. Os monumentos que ele ergueu são hoje molduras para o mercado. Ou seria o mercado a moldura para estes espectros?

Duas foram as edificações principais, hoje em ruínas. Acredita-se que tanto o Ak Sarai ("Palácio Branco") quanto o Dorussiadat ("Trono do Poder e Força") foram tão impressionantes quanto o mausoléu de Yassawi, em Turkistan. O que sobra do Ak Sarai são os restos de cerca de 40 metros de torres no seu pórtico, cobertas com os familiares mosaicos azuis. É necessário inclinar bastante a cabeça para enxergar até onde no céu vai a construção. O que se vê é o mesmo que exploradores russos e britânicos viram no final do século 19, ou antes, o que me enche de alegria. Até agora, Shakhrisabz ainda não foi atingida nem pela sanha higienista de Karimov nem por delírios de reconstrução que algum maluco possa ter.

Mais - para se ver as duas ruínas bem de perto não se cobra ingresso, o que afastaria a população local e tornaria as construções sem vida, isoladas da rotina diária, Esse é o problema que hoje enfrentam o Registan em Samarkand ou Ichon-Qala em Khiva, que visitei em 2003. De fato, o Ak Sarai fica em um parque público e é parte do cotidiano de Shakhrisabz. Às 6h40 da manhã, com o Sol acordando e eu também, tentando aproveitar as cores da luz matutina, vejo um grupo de velhinhas se aproximando da grandiosa edificação. Todas com seus vestidos coloridos. No perímetro do palácio, eu as vejo fazendo alongamentos. Exercitam-se em grupos, esticam as costas, os braços, as pernas.

Mesmo estando o Ak Sarai incompleto, com a imaginação é fácil encontrar mais alguns pedaços que faltam ao quebra-cabeça da ruína. O difícil mesmo é visualizar a construção como um todo, como ela poderia ter sido. Assim o eternizou o visitante Ruy González de Clavijo:

Nesses palácios havia uma entrada muito longa e um portão muito alto, e aqui, na entrada, havia arcos de tijolos nos lados direito e esquerdo, decorados com azulejos apresentando diferentes padrões. E, debaixo destes arcos, havia como que pequenos quartos sem portas, com o chão coberto de azulejos, e isso foi feito para que as pessoas pudessem se sentar lá quando o senhor estivesse no palácio. E logo depois desses quartos havia outra porta, e atrás dela um grande pátio pavimentado com lajes brancas e todo cercado por portais ricamente decorados; e há uma grande lagoa no meio do pátio, e este pátio ocupa trezentos passos de largura, e por esse pátio se entrava em um grande conjunto de casas no qual havia uma porta muito grande e alta, decorada com ouro, azul e azulejos, trabalhados com grande beleza. E acima da porta havia a figura de um leão dentro do Sol, e nas bordas, a mesma imagem. Era o brasão do senhor de Samarcante.
- Embajada a Tamerlán, Ruy González de Clavijo

Não longe dali, no Dorussiadat, destinado a ser o complexo de mausoléus de Tamerlão e sua família e concluído em 1392, sobrou ainda menos. Foi um conjunto descrito por Clavijo em seu diário como "mesquita e capelas muito ricas e muito bem ornadas de ouro e azul e azulejos". Hoje, há pouco mais do que algumas manchas cor turquesa numa alta parede, a tumba de Jahangir, as fundações das construções... e um segredo.

Escondida nessas fundações expostas ao céu, há uma porta misteriosa. Ela leva ao subterrâneo e está fechada. Um zelador que controla o acesso, de olho em uns trocados, me encontra e me convida para entrar. Diz que é muito interessante. No Sol destruidor, me sinto atraído pela escuridão fresca.

É a cripta, descoberta apenas nos anos 60, em que Tamerlão teria planejado ser enterrado. Um lugar úmido, fantasmagórico. E espantosamente modesto. Nas paredes nuas de pedra, apenas inscrições do Corão. Dentro da grande tumba, embaixo da pesada tampa de pedra, foram encontrados pelos arqueólogos os restos de dois corpos não identificados. Em Samarkand, Tamerlão foi alvo de uma exumação em 1941. Os cientistas soviéticos confirmaram que uma das pernas do esqueleto era mais curta do que a outra - como já se sabia, essa era uma característica peculiar do impiedoso líder. Ou seja, tudo leva a crer que os restos no mausoléu em Samarkand eram mesmo dele, o que só manteve o mistério: de quem eram os esqueletos encontrados em sua cripta em Shakhrisabz? Quem teria se dado ao trabalho de erguer a cobertura de pedra para lá depositar os cadáveres?

Atrás do terreno do Dorussiadat, novos indícios do Tamerlão mecenas, o que conquistou e matou milhares, mas poupou os artistas e os enviou a suas queridas cidades. A mesquita Kok Gumbaz foi construída em 1437 por Ulugubek, o neto de Tamerlão, o mesmo que deu o nome a uma das madrassas do Registan de Samarkand. Vê-se de longe o porquê do nome - Kok Gumbaz significa "cúpula azul". Lindas cúpulas, a grande e principal, acompanhada de outras duas menores. Linda mesquita, ainda hoje usada pelos fiéis, claramente restaurada e mantida com esmero. Sua construção usou a mão-de-obra trazida de longe. Nas brancas paredes internas do templo, ilustrações representam palmeiras - árvores alienígenas na Ásia Central. Possivelmente são criações de artistas deportados de pontos distantes do império, onde tais árvores são comuns. Pérsia? Índia? O conjunto da mesquita é muito bonito. Internamente, as paredes, com a luz da manhã suavemente entrando pelas frestas das janelas, criam um mundo completamente isolado do movimentado mercado, a dois passos dali.


* * *

Novamente, a pousada onde fiquei em Shakhrisabz se superou. O café da manhã farto, magnífico, à sombra da parreira e do caquizeiro, com o paparico constante do pai de Lutfollah.

Me entendi bem com o velhinho, ainda que só falando com ele em russo. Seus olhos eram permanentemente lacrimejantes, meio esbranquiçados. O rosto, escuro e enrugado pelo Sol de décadas e décadas. Seu chapéu uzbeque, sempre na cabeça. Muito curioso, muito carinhoso. Constantes perguntas: tudo bem? Quer mais chá? O que você vai fazer hoje? De repente, entra no quarto onde passei a noite; de lá, de uma prateleira que eu nem tinha visto, tira uma pequena pilha de fotos tiradas com ex-hóspedes, enviadas a ele da França, da Alemanha. Ele, de braços dados com uma linda jovem suíça. Outra foto, com um jovem em um piquenique nas montanhas das redondezas.

O pai de Lutfollah me adotou de tal forma que fez questão de ir comigo à parada de táxis, onde eu ia pegar um por volta do meio-dia para seguir de volta para Tashkent. Me ajudou a negociar um bom preço, me deu um abraço, um aperto de mão. Ofereço dinheiro a ele em agradecimento, ele recusa. Mais um abraço. Volto um dia, prometo. Pode contar com isso, pode preparar a mesa de frutas secas.

Já no caminho, coloco as duas mãos no rosto. Nunca sequer perguntei o nome do senhor. E ele me tratou, este desconhecido, como um filho. Torturo-me de dor de consciência e de amor pelo idoso por longas horas, chacoalhando no carro, na infinita estrada.

O motorista, por outro lado, se mostra um maníaco. Testemunho-o ultrapassando caminhões em curvas fechadas nas montanhas, as mesmas nas que, na ida para Shakhrisabz, as vacas se mostraram tão à vontade passeando no asfalto.

Após Samarkand, a rodovia atravessa longas e entediantes plantações de algodão. As plantas estão carregadas e por toda parte se vê grupos na colheita, caminhões levando as nuvens brancas para processamento. No céu, as nuvens de verdade não aparecem há dias.

Em Tashkent, chego lá pelas nove da noite, moído. Encontro o albergue, um local bem simples, onde eu havia reservado uma cama, louco de vontade de deitar nela e desmaiar. Mas um grande grupo de turistas havia se hospedado nele e decidido de surpresa ficar mais uma noite. Nessa, eu fui solenemente esquecido pela gerência do estabelecimento. Não havia cama para mim. Eles me jogam num canto, no chão de uma sala ao lado de um pátio iluminado e barulhento, ao lado de outros mochileiros. Fico irado (reservei uma cama justamente para evitar uma situação como essa), mas estou cansado demais para ir para outro lugar ou mesmo para brigar. Sou obrigado a tomar remédio para dormir, para vencer o ruído.

Sinto falta do paparico de Shakhrisabz.

Tashkent, 14/9, 12h45

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