Thursday, 23 February 2023

Novas Fronteiras (VI) - Samarkand, Uzbequistão



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8/8/2018

A água. Levemente acariciada pela brisa e protegida do sol pelas árvores e pela sombra do mausoléu. Peixes que hipnotizam. Sentado em um banco à beira de um aquário natural, eu estava cercado de serenidade. Passava um ou outro homem indo rezar na mesquita ao lado, me olhava com curiosidade. Eu era o único visitante. Tive sorte de encontrar este lugar, não havia nada que indicasse, na rua, que aqui estava este paraíso oculto.

Difícil acreditar que eu estava em Samarkand, uma das cidades mais inundadas por turistas do Uzbequistão.

Na verdade, o mausoléu Hoja Abdi Darun fica um pouco longe do complexo de prédios islâmicos Registan, a maior atração para os visitantes da cidade. Dá uma meia hora de caminhada, e o caminho é pela cidade velha — um labirinto de ruas todas parecidas, com poucas referências. O mausoléu, datado originalmente do século XII, mas reconstruído no século XV, divide o delicioso pátio interno com a mesquita. O pátio tem quatro árvores altas que marcam os vértices da linda piscina de pedra. Tais piscinas costumavam ser comuns no Uzbequistão antigo, hoje, são raras, sendo que a mais conhecida sobrevivente é a Labi-Haus de Bukhara. Esta tem água cristalina... e dezenas de peixes que, pelo formato, acreditei serem tilápias. Como a piscina fica na sombra, os peixes se tornam visíveis apenas nos pontos por onde chega a luz, filtrada pelas árvores e pela barreira da frágil fachada do mausoléu. Ele em si estava fechado; não me foi possível ver a tumba do santo enterrado embaixo do pórtico cedendo aos séculos, perigosamente inclinado, sob a cúpula azul, diretamente à minha frente, do outro lado da piscina.

Meia hora de silêncio. Então me levantei e fui enfrentar o sol da tarde.

Fora, do outro lado da mesma rua, um outro mausoléu. Bem maior, sem nada da fragilidade fascinante do anterior. Este mausoléu, chamado Ishratkhona, do século XV, jamais poderia fazer parte de qualquer excursão de turistas, pelo menos não no estado em que o encontrei. Estava literalmente em ruínas, a fachada e o interior, ambos obliterados por buracos, por desmoronamentos, pelo desgaste do tempo, por vandalismo. Vi que alguém iniciou o trabalho longo e complicado de restauro — há algumas escadas e paredes limpas e rebocadas. Todo o conjunto, externamente, foi coberto com um telhado de zinco para protegê-lo dos elementos. Os trechos das paredes que mostram seus detalhes restaurados trazem a incrível riqueza em azulejos azuis que o identificam como um tesouro de Samarkand. Sutilezas azuis com mandalas geométricas, rutilâncias douradas. Dos trechos em ruínas, elevou-se uma sensação de fantasmas me rondando.

No chão, uma escada semidestruída levava a uma cripta. Vendo de cima, lá dentro, apenas enxerguei escuridão, nada além disso. Senti um desejo instintivo de descer e explorar. Queria ter uma lanterna para ver melhor. Por fim, triunfou o bom senso — havia pedaços de pedra pontiagudos por todos os lados, na escada e no chão em cima também. A própria escada poderia ser ainda mais danificada com meu peso. Permaneci no meu andar. Circulando, encontrei outros cômodos no mausoléu. O salão principal, onde a luz entrava com mais facilidade. Mais paredes sobreviventes, em algumas delas um azul intenso, desbotado, mas ainda intenso.

Outra surpresa de Samarkand. Como pôde um local tão lindo e vetusto, tão próximo ao ponto mais visitado deste país, ter sido deixado decair a tal ponto? A pergunta me veio à cabeça e estava longe de ser uma reclamação. Pelo contrário, era um elogio. Que alívio foi ver ainda estes locais, o mausoléu Hoja Abdi Darun e o Ishratkhona, não totalmente "melhorados" pela sanha reconstrutora do governo uzbeque. O segundo me sugeriu a magia da descoberta. Como no Kyrk Kyz de Termez. Me senti um explorador do século XIX que, de repente, em uma missão em um país exótico, se encontra com uma colossal indicação do rico e ignorado passado da região e não sabe bem como reagir sob o feitiço de seu azul. Imaginei o mausoléu Ishratkhona semienterrado por areias e escombros, sendo revelado pelo explorador e sua equipe. Raros locais tão sugestivos resistem assim no Uzbequistão hoje, ainda mais em Samarkand. E, visto que há um trabalho de restauro em andamento, essa magia do Ishratkhona também está com os dias contados. Terão que fazer um teto novo, recriar paredes inteiras. E, depois, ele será visitado por ricos turistas alemães e americanos e legiões de excursões chinesas.

Ele sobreviverá ao teste do tempo por mais séculos, mas não mais será o mesmo.


* * *

Minha habilidade na negociação de preços tem melhorado: para viajar de Termez a Samarkand, cheguei ao ponto de saída das vans e táxis compartilhados às 7h30 com o objetivo de conseguir pagar no máximo 100 mil sums (aproximadamente US$ 10). Cercado de taxistas, intimidado, assumi minha persona charmosa e astuta, oferecendo a princípio 70 mil. O único que ia para Samarkand queria 125 mil. Fazendo piadas, lembrando o fato de eu ser brasileiro (ou seja, "pobre", não um americano ou um europeu) e puxando papo sobre futebol, o motorista por fim cedeu. Cem mil. O preço justo, pago por todos os outros três passageiros, todos uzbeques. Fiquei orgulhoso.

O motorista era um ser estranho. Parecia estar escondendo algo. Pouco depois de chegarmos a um acordo sobre o preço, ele me chamou para um canto. "Você provavelmente vai ter que mostrar seu passaporte em algum ponto da viagem", disse. "Estamos indo passar a fronteira". "Qual fronteira?", perguntei. "Não é internacional. É entre regiões do Uzbequistão. E talvez tenha que pagar, mas vai ser pouco", explicou, indicando que poderia haver policiais corruptos.

Nos preparativos para esta viagem à Ásia Central, me certifiquei de que não havia mais a necessidade de um visto ou autorização especial para visitar Surkhandarya, a viloyat (região administrativa) onde fica Termez. Até alguns anos atrás, por ser uma região de fronteira com o Afeganistão, era preciso ter uma autorização especial para conhecer a cidade. Embora isso tenha caído por terra, o que permanece é algo que sinceramente não esperava que me afetasse: as regras que dificultam a imigração interna de uzbeques. É um legado dos tempos soviéticos que o presidente Mirzoyev prometeu eliminar. Segundo uma dessas regras, se um uzbeque que mora em uma região quiser migrar para viver em outra região, precisa ter autorização do governo. Essa autorização é emitida de uma forma meio obscura. É mais fácil obtê-la se você tiver contatos na região onde você quer viver, e, claro, os mais ricos têm vantagem ao poder subornar os funcionários responsáveis pela burocracia. Outro legado soviético é a exigência de algo semelhante a um "passaporte interno" para pessoas que queiram se deslocar de uma região a outra. Essas regras criaram um sistema perverso que há muito mantém ilhas de pobreza no país e gerou distorções: áreas que sofrem com desemprego enquanto outras procuram trabalhadores para preencher as vagas que têm e que poderiam ser ocupadas por esses mesmos uzbeques que moram em outras regiões. O fim do sistema já foi cogitado, mas sempre enfrentou resistência. Há o temor de que ele leve a uma migração interna descontrolada ou que o governo perca a capacidade de estabelecer estratégias para desenvolvimento econômico regional. E, claro, há o medo, nunca explicitado, de que uma rica fonte de subornos seque.

Me parecia evidente que o medo do motorista neste caso era encontrar um policial interessado em explorar essas leis em troca de dinheiro fácil em algum posto de fiscalização entre Surkhandarya e Kashkadarya, a próxima região ao norte, a caminho de Samarkand. Entretanto, o que o motorista me falou a seguir me fez desconfiar de que havia algo mais, de fato, outro motivo para ele se preocupar com a polícia. "Vou levar um amigo na viagem, espero que você não se importe. Teremos que fazer uns desvios no caminho. Ele tem umas coisas a resolver em Samarkand". Deu alguns detalhes em um russo macarrônico. Respondi simplesmente que, se eu fosse desembarcado em Samarkand pagando o preço combinado pela viagem, tudo bem.

Durante a jornada, realmente tivemos que parar na saída de Surkhandarya. Foi em um posto de fiscalização, uma casa cercada de altas montanhas sem árvores, terra clara, sol ofuscante, sem nuvens, vento seco e fraco, incessante e quente. No estacionamento do posto, eu e outros três passageiros, inclusive o amigo do motorista, fomos obrigados a sair do veículo e entrar na casa, passando por vários corredores no seu interior, todos vazios. Parecia um posto de fronteira internacional. Imaginei que, dependendo do estado da insurgência no Afeganistão, ou da relação entre o conturbado país e este seu vizinho do norte, as autoridades uzbeques devessem ocupar esta casa com policiais para praticar o escrutínio máximo nas cargas e bagagens. Mas não naquele momento. A única presença de guardas foi a enfrentada pelo motorista do nosso carro, que havia permanecido no veículo. Os policiais presentes o fizeram descer do veículo para checar displicentemente seu interior. Porta-malas aberto. Nos aproximamos, eu e os outros passageiros, já depois de termos saído da casa. No momento em que chegamos a uns dez metros de distância, o motorista já estava todo sorrisos. Conversava com o guarda com gracejos, risadas. O guarda ria timidamente. Depois ajeitou o quepe, fez um gesto de "pode ir" com a mão direita e deu as costas, foi para o próximo carro da fila.

O motorista olhou na nossa direção e se aproximou. Sorriso aliviado. Muito aliviado.

A viagem prosseguiu nesta que é uma das regiões com provavelmente mais impacto histórico do Uzbequistão. Ao lado da estrada, as paredes de pedra nua anunciavam a localização provável de um ponto de passagem importantíssimo. O chamado Portão de Ferro, um vasto desfiladeiro por onde Alexandre, o Grande e depois os árabes invasores do século VIII tiveram que passar nas suas conquistas da Ásia Central. É a fronteira natural entre a região do rio Amu Darya e do norte do Afeganistão, centrada na histórica cidade de Balkh (hoje eclipsada por Mazar-i-Sharif, a cidade mais importante do norte afegão) e a região de Sogdiana, terra do povo de mesmo nome, o povo das construções fortificadas como o Kyrk Kyz, um povo valente que costumava teimar em não se alinhar a grandes impérios. A passagem quebra as montanhas Hissar, um braço do maciço do Pamir e, em dado momento, de fato teria tido um portão de verdade que impedia a passagem dos viajantes não autorizados pelo monarca da vez, embora não se saiba muito, nem mesmo se era de ferro mesmo. Sua localização exata também é motivo de debate, mas acredita-se que ficasse em um vão de três quilômetros de extensão por onde vamos a toda velocidade. O que sim é fato é que o lugar, também conhecido como "portão de ferro de Sogdiana" é citado em inúmeras fontes históricas, o que atesta sua imensa importância como divisor de mundos.

Ainda se passaram mais algumas horas de estrada e muito sol até Samarkand. Os desvios, esperados após a advertência do motorista antes da jornada, começaram a acontecer. Chegamos à cidade, mas, em vez de ir em direção ao centro, pegamos um pouco da estrada para Tashkent, saindo novamente de Samarkand. Logo paramos em um ponto no acostamento da estrada. O motorista fez uma ligação com o celular e iniciou uma conversa nervosa, com frases curtas e rápidas, aos berros. Era uzbeque, não entendi nada. Parecia estar dando instruções para alguém. Depois da ligação, o amigo dele, sentado no banco da frente ao lado do motorista, tirou de uma sacola que levava uma quantidade grande, assustadora, de notas de mil sum, em grossos maços — calculei que era algo entre US$ 100 e US$ 200. O dinheiro foi colocado em cima do painel do carro e ficou lá, cozinhando na luz filtrada pelo para-brisa, mais uns 15 minutos, até o receptador aparecer em uma visita relâmpago. Chegou do nada, esperou o motorista e seu amigo saírem do carro, os cumprimentou, pegou o dinheiro, colocou em uma sacola e desapareceu.

Sem falar nada, o motorista e o amigo entraram no carro. Trocaram olhares. Sorriram. O motorista tirou do bolso da camisa o maço de cigarros, acendeu um, prendeu a fumaça no pulmão por uns cinco segundos e a soltou numa longa baforada pela janela aberta. Disparamos para Samarkand.


* * *

Cada jornada pela Ásia Central é uma busca por Samarkand. Talvez não exista nenhum outro lugar na Terra que soe tão peculiarmente tentador como este, tão carregado de isolamento, emoção e uma pitada afrodisíaca de perigo.
— Geoffrey Moorhouse, Apples in the Snow, 1990

Gloriosa como sempre, como sempre ensolarada, assim me recebeu Samarkand pela terceira vez. Cheguei no meio da tarde.

Uma mudança que logo notei foi, claro, a nova estátua colocada no parque ao lado do Registan. Não lembrava de nada especial em relação a esse parque, que atravessei com pressa nas visitas anteriores quando estava tentando aproveitar ao máximo meu tempo com os grandes tesouros na capital de Tamerlão. Mas, agora, havia lá uma estátua, e, ao redor dela, algumas pessoas se reuniam. Umas, apenas a olhavam. Outras três tinham câmeras e tiravam fotos. Era a estátua de Islam Karimov, o finado primeiro presidente uzbeque, falecido em 2016, um dos filhos mais ilustres de Samarkand. Estranho vê-lo como uma estátua. Em anos anteriores, me chamou a atenção como Karimov não aparecia em homenagens a ele nas ruas — em vez de estátuas do líder, havia apenas estátuas de Tamerlão. Em vez de cartazes com fotos de Karimov, apenas grandes outdoors com frases atribuídas a ele. Mais ainda do que verificar as mudanças no país desde sua saída de cena, está sendo interessante verificar como seu legado está sendo encarado pelo povo que ele controlou com mão de ferro de 1989, antes mesmo do fim da URSS, até sua morte.

Vista a estátua, me registrei em um hotel barato para mochileiros que surpreendentemente resiste ao lado do Registan. Uma casa tradicional, com um pátio com muita sombra e tapchans, as camas-mesas uzbeques, onde encontrei viajantes sem muito dinheiro trocando dicas e impressões. Uma anomalia em um país em que cada vez mais o turismo massivo, de ônibus de excursão e turistas endinheirados, dita os rumos das cidades mais visitadas. Cheguei e os donos do hotel, apesar de estarem abrigando tanta gente, me receberam com um prato com fatias de melancia, chá e pão. Me reclinei sobre as almofadas de um tapchan e respirei, olhando os raios de sol atravessando as trepadeiras do pátio interno. Em outro tapchan, vizinho, dois ciclistas conversavam animadamente com um mochileiro, que fazia perguntas sobre o roteiro deles. Os ciclistas estavam dando uma volta pelo Uzbequistão e cogitando ir para o Tajiquistão, mas diziam que haviam cancelado os planos depois do ocorrido em território tajique. No dia 29 de julho, um grupo de ciclistas estrangeiros foi atacado no sul do país por aparentes ativistas islâmicos; quatro morreram. Muito raros são os ataques a estrangeiros nesta região, mesmo os crimes comuns de roubo ou furto são bem pouco frequentes. Ataques islâmicos são ainda mais raros (apesar da proximidade com o Afeganistão), o que fez com que o crime, atribuído a gente ligada ao Estado Islâmico, causasse grande alarde. Eu mesmo poderia ver isso como motivo de preocupação, visto que vou para o Tajiquistão em breve, mas entendi o ocorrido como uma exceção. Além disso, não posso imaginar que tamanha afronta ao regime autoritário tajique, sedento por dólares do turismo, fique impune e não leve a uma massacrante resposta contra inocentes e talvez coniventes da região, o que certamente deve neutralizar qualquer novo ataque contra visitantes por um longo período. Os ciclistas que encontrei também não pareciam muito preocupados. Falavam de uma maneira descontraída, não com medo nem susto na voz. Apenas acontece, esse tipo de coisa acontece, disseram. Mas, desta vez, melhor não ir, melhor ficar no Uzbequistão. E voltaram a conversa para o que já haviam visto de maravilhoso no país. O outro viajante, um português, sorriu e acrescentou suas sugestões de destinos uzbeques. Eu preferi não participar da conversa. Apenas ouvia e me lambuzava com a melancia, cujo suco escorreu pela minha barba e pingou em minha camisa.

Tomei coragem de rever o sol uma meia hora depois. Espantosamente, há muitos lugares nesta cidade que ainda não conheço. E não seria hoje que veria todos.

Ao lado do mausoléu de Tamerlão, o Guri Amir, há um outro mausoléu, bem menor, escondido atrás do muro traseiro do complexo. É chamado de Ak Sarai. Do lado de fora, não há nada de excepcional — a fachada típica de mausoléus, portal e cúpula de tijolos, claramente reconstruída e sem sequer azulejos decorativos. Como o Guri Amir, pode ser visitado apenas por aqueles que compram um ingresso. E poucos, depois de se cegar com a riqueza das paredes do mausoléu maior, têm ânimo para ver o menor. Mas deveriam. O administrador, um jovem com barba rala vestindo camiseta da Nike, bermuda com camuflagem militar e sandália, um sujeito que poderia ser confundido com qualquer um nas periferias do Brasil, ficou felicíssimo em me ver. Falava um pouco de inglês e fez questão de me acompanhar. Entramos e encontramos uma antecâmara vazia, paredes brancas, nada para se ver nos tetos ou nos cantos, nem sequer outros visitantes. "Calma, é para cá, à esquerda", disse, sorrindo, apontando para uma porta atrás de uma barreira de madeira.

Era outra câmara. Radiante.



O teto do pequeno mausoléu tem ouro em uma profusão de padrões geométricos em tal escala que pode deixar qualquer um tonto. Em termos de ouro, encontra rivais em Samarkand provavelmente apenas na madrassa Tilla Kari do Registan e no próprio mausoléu de Tamerlão. Difícil descrever os desenhos. Conchas ou rabos de pavão ou leques, caligrafia árabe, pétalas. Lágrimas. O ouro e o azul escuro, linhas que se movem estando paradas. O administrador não conseguia conter o orgulho. Os outros visitantes, poucos, pareciam, como eu, sem palavras. Tão bonito quanto o Guri Amir, como é possível? "Mas você ainda não viu o segredo", novamente interrompeu o administrador, com uma risadinha. "Aqui. Coloque os pés aqui. Isso. Não olhe para o teto ainda. Agora. Olhe agora!"

À minha frente, os dois olhos de um monstro, um gênio, um demônio. Me fitavam, ameaçadores, aflorando de seu esconderijo em meio à decoração.

A história do Ak Sarai é interessante. Data do período de decadência da dinastia timurida, na segunda metade do século XV, muito depois da morte de Tamerlão. Naquele tempo, os timuridas enfrentavam a si mesmos num processo que preparava sua eliminação do trono centro-asiático. Os timuridas então se dividiam em dois sub-reinos, com duas capitais, Samarkand e Herat, cidade no atual oeste do Afeganistão. Perdendo terreno e riqueza, o então rei em Samarkand, um descendente de Tamerlão chamado Sultan Ahmed Mirza, se viu diante de um problema. O mausoléu Guri Amir já não tinha mais espaço para guardar os restos de membros da família real e de seus fiéis assessores. Assim, decidiu-se construir o Ak Sarai, logo ao lado. Mas, com a falta de recursos, ocasionada ou talvez agravada por corrupção na corte, o mausoléu nunca foi completado; o exterior foi, exatamente, o que faltou decorar, já que Mirza priorizou o suntuoso interior. Poucos foram enterrados nele, nem mesmo, ironicamente, Mirza, que foi levado para Herat. O mais famoso ocupante é o infame Abdal-Latif Mirza, filho de Ulug Bek, neto de Tamerlão. Mirza se eternizou na história pelo assassinato do próprio pai, mudando o destino dos timuridas de Samarkand.

O administrador explicou que foram longos anos de esforço paciente de restauradores, usando técnicas seculares, até que aqueles olhos do monstro no teto, aquela luz amarela riquíssima, voltasse a aflorar. Nem tudo foi revivido, porém. Em um canto, na parede abaixo, entre superfícies cuidadosamente rebocadas e pintadas de branco, se vê um trecho em estado miserável, com pedaços de azulejos. Aparentemente, a câmara era ainda mais suntuosa: a riqueza do teto descia até o chão. Mas, nas paredes, tal era o estado de dilapidação do mausoléu que se avaliou que não compensaria o esforço de reconstruir. Manteve-se esse buraco na parede como testemunha. Lembrou-me um outro Ak Sarai, o palácio de Tamerlão em Shakhrisabz, onde a monumental construção tampouco foi recuperada. Foi mantida congelada, tal qual foi encontrada pelos restauradores, como testemunha da tortura do tempo.

Novamente, fui atacado pelo constante incômodo que sinto com a excessiva recuperação dos monumentos de Samarkand. O Ak Sarai de Samarkand é deslumbrante, mas me pergunto se um dia foi realmente assim, tão maravilhoso. Que bom que o buraco foi deixado.

Também do lado do Guri Amir, mas bem visível, sem muros, há um outro mausoléu, ainda menor que o Ak Sarai, que eu também nunca tinha notado. Chama-se Rukhobod. Fica dentro de um mercado de artesanato em frente ao mausoléu de Tamerlão. No formato de um cubo de tijolos, sem azulejos externos e com três portas, o Rukhobod não chama a atenção, não tem riqueza decorativa. Seu tesouro é mais sutil.

Verificando as paredes peladas, notei que em algumas partes havia o que pareciam ser pichações em caracteres árabes. À primeira vista, julguei que fossem de turistas. Evidentemente, não fazia muito sentido; em um local com tantos turistas e levando-se em conta a importância que as autoridades uzbeques dão a seu patrimônio histórico, tais pichações já deveriam há muito ter sido apagadas. O mausoléu poderia ser modesto, mas tinha clara importância histórica — trata-se de uma edificação erguida em 1380, ou seja, contemporânea de Tamerlão. Mais que isso. Segundo as crônicas, o mausoléu teria sido construído por ordens do próprio conquistador sobre a tumba de um sábio islâmico, Xeque Burhaneddin Sagaradzhi, muito admirado pelo próprio Tamerlão e conhecido por espalhar o Islã pelo oeste da atual China. Sagaradzhi, cuja data exata de morte não é conhecida, casou-se com uma princesa chinesa e por isso tinha alguma influência na corte da dinastia Yuan, aquela que surgiu a partir da conquista mongol da China (e da qual o mais ilustre monarca foi Kublai Khan). A arquitetura modesta é incomum pelo fato de não ter um portal, o que se esperaria em um local erguido para alguém tão importante. Entretanto, novamente não se sabe ao certo por que tal estilo foi escolhido. Coroando os mistérios, há a lenda de que nas paredes do mausoléu teriam sido escondidos pelos da barba do Profeta Maomé, que estavam em posse de Sagaradzhi.

Mas não há charada maior no Rukhobod do que as inscrições nas paredes. Cocei a cabeça olhando os caracteres gastos. Um amável senhor idoso que estava sentado em um canto, curioso, se aproximou. Me saudou e, sem que eu pedisse, me disse que eu estava em um lugar muito importante. "Aqui está enterrado o professor de Tamerlão", explicou. Possivelmente um erro: há quem diga que o sábio morreu no século X ou na metade do século XIII (em ambos os casos, longe do período de vida de Tamerlão). Por outro lado, o lendário viajante Ibn Battuta, no seu diário de viagem, afirmou que que Burhaneddin Sagaradzhi era o chefe da missão muçulmana na corte Yuan na década de 40 do século XIV, o que explicaria seu envolvimento com a princesa. Nessa mesma época, Tamerlão era ainda muito criança e dificilmente teria tido acesso a educação com alguém tão qualificado. Além disso, Sagaradzhi teria morrido na China, o que reforça ainda mais a impressão de que, embora conhecido e admirado por Tamerlão, estava distante e não foi seu professor. Sem contradizer o idoso, lhe perguntei sobre as enigmáticas inscrições nas paredes. Nesse caso, sua resposta pareceu fazer todo o sentido. "Esses são trechos do Corão. Foram escritos por fieis em homenagem a ele", explicou. Não seria possível jamais apagar frases do Livro sagrado.


* * *

Sinto uma conexão muito grande com minha primeira viagem a Samarkand, em 2003. Daquela vez, cheguei à cidade com dois franceses que seguiam para o Tajiquistão pela fronteira próxima à cidade, a fronteira que, durante muitos anos, esteve fechada e só voltou a reabrir com a morte de Karimov. Em 2003, eles seguiriam para Penjikent, a primeira cidade tajique do outro lado da linha internacional; eu, para Namangan, no Vale de Fergana. Na última noite, tivemos uma despedida inesquecível com um jantar em um restaurante ao qual nunca mais voltei, perto do Registan. No dia seguinte, nos despedimos na rua, eles embarcando no táxi que os levaria até a fronteira. Nunca mais nos vimos ou nos falamos. Uma intensa amizade enquanto durou, que me ensinou os primeiros passos da exploração da Ásia Central. E que criou em mim aquela centelha de querer atravessar a fronteira para o Tajiquistão. Amanhã, farei precisamente o que eles fizeram, seguirei para Penjikent. Nada mais justo do que me despedir do fantasma de 15 anos atrás naquele mesmo restaurante da última janta com os franceses. Hoje, o reencontrei.

Um lugar difícil de entender, o Café Labigor. Fica realmente bem perto do Registan. Tem uma decoração incrível de azulejos e colunas replicando o estilo das madrassas milenares, tapchans relaxantes e um segundo andar com vista para a agitada rua do Registan (Registan Kochasi). Sentei-me no andar de cima e tive sorte de conseguir uma mesa vendo a calçada e as vans indo e vindo no anoitecer. O calor já diminuía, com o vento que vinha leve da rua. Ao meu redor, poucos turistas. Vi mais aqueles que eram claramente locais, com as roupas surradas após o dia de trabalho, talvez comerciantes que tinham suas lojas nas redondezas, talvez motoristas de vans e táxis, todos aqueles que vivem do dinheiro dos visitantes de longe. Achei difícil entender por que o Labigor tinha poucos turistas. O motivo, porém, logo ficou claro logo. O local estava uma bagunça; muitas mesas estavam sujas, esperando para serem trocadas. Os três ou quatro garçons cuidando dos dois andares passavam esbaforidos, esbarrando nas pessoas, que escolhiam elas mesmas onde se sentar. Os garçons estavam precisando urgentemente de mais companheiros para ajudá-los. Me veio um menino, literalmente; devia ter uns 14 anos. Gordinho, suado, com um pano branco sujo deitado sobre o ombro, a roupa suada de tanto vaivém. Anotou displicentemente meu pedido (nem precisei olhar o cardápio, pedi sem titubear laghman, o macarrão com sopa típico daqui, o mesmo prato da noite de despedida em 2003). Também pedi uma cerveja. Sequer olhou para mim. Desapareceu desfalecido, correndo por pura inércia para outra mesa que esperava para fazer pedidos ao lado. O menino era um zumbi. Senti pena.

Ele esqueceu na mesa o cardápio e dei uma olhada. Uma folha plastificada com pouquíssimas opções; basicamente saladas, laghman e shashlik, carnes no espeto. Preços bastante razoáveis. O gordinho me reapareceu como um raio pouco depois; trazia um pão non de vários dias (duro de partir, emborrachado por dentro, sem gosto, sem cheiro) e a cerveja — uma linda caneca suada, com o líquido excelente de uma marca que nem sei. Desceu pela garganta me causando imenso prazer.

Na rua, tudo mais escuro. As luzes dos carros já iluminavam mais que o sol se despedindo.

E a comida chegou pouco depois, não mais que uns cinco minutos. A sopa com macarrão. Estava fervendo. Mergulhei o pão e fui enfrentar o calor do líquido. Estava com uma pequena lagoa de óleo na superfície. Em resumo, o laghman era óleo e água quente com pedaços de carne que eram pura gordura, branca, como vi nos mais inesquecíveis jantares do Pamir e mais recentemente em Termez. O macarrão estava cozido demais, sem gosto, sem sal nenhum. Pedi um saleiro e a pimenta; o gordinho os trouxe, os frascos estavam pegajosos e praticamente vazios, tinham apenas uma caspa para realçar a triste, tristíssima comida.

Um dia, um empresário vai perceber o potencial do Labigor. Vai investir em mais garçons, em um cardápio mais ao gosto dos turistas e triplicar os preços. Mas que ele não mude jamais a cerveja.

Um brinde, meus amigos franceses. Aqui, 15 anos depois, seguindo seus passos.

Pandrud, 9/8, 21h50

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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