Thursday, 9 February 2023

Novas Fronteiras (II) - Tashkent, Uzbequistão



O que é "Novas Fronteiras"?
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5/8/2018

"De onde você é?", perguntou o taxista em Tashkent, em russo, quando eu, atrasado, estava a caminho de pegar o trem para Termez. "Do Brasil", respondi, distraidamente, enquanto olhava pela janela do carro, com minha cabeça explodindo de dor, com o pensamento totalmente dedicado a antecipar o que eu teria que fazer na estação antes de embarcar.

"Sério? Fala português?", respondeu o senhor com um sorriso luminoso no rosto. Perguntando em português.

Olhei para ele. Me espantei, evidentemente. Mas, naquele momento, pensei também que talvez ele apenas tivesse decorado uma frase na minha língua, talvez para impressionar turistas, talvez porque tinha boa memória e havia lido em algum lugar. "Sim, falo", respondi também em português, com um sorriso cordial, olhando para ele, esperando sua próxima jogada.

"Finalmente! Há tanto tempo que eu não falo!" E desembestou a falar um bom, excelente português de Portugal. Ele era uzbeque. Em tudo, de fato, ele era uzbeque — o biotipo (o cabelo negro, olhos amendoados, os traços inconfundíveis no semblante misturando a genética turca e chinesa), a sonoridade ao falar, parecida com a de um russo falando português, mas com os acordes inconfundíveis de seu próprio idioma. Sim, me confirmou, era uzbeque, completamente uzbeque. Sim, agora sim, eu estava boquiaberto. Nunca antes encontrei um uzbeque que falasse português fluente. Havia achado e completamente por acaso.

Seu nome era C — um nome português que escolheu para si. Implorei que me contasse sua história, a história na certa insólita de como passou a dominar o idioma de Camões. Eu não poderia sair da capital sem saber o porquê de algo tão incomum.

"Vivi em Portugal nove anos", explicou em meio a risadas, com um quê de orgulho, ao perceber o quanto eu estava desconcertado. "Trabalhava com instalação de painéis solares. No primeiro ano eu já peguei o idioma, já falava." Nunca deixou de me impressionar como os uzbeques têm facilidades para línguas. O uzbeque em geral fala bem, ou entende bem, pelo menos três idiomas completamente diferentes (russo, uzbeque e ou caracalpaque, cazaque, quirguiz ou tajique, dependendo da parte do país onde vive). "Eu morava em Portugal com outros imigrantes, inclusive brasileiros. Os brasucas eram os melhores! Sempre tinha festa!", completou, com um suspiro, um sorriso de doçura nostálgica. Adorei o "brasuca", sem a menor dúvida isso provou que ele conhecia minha espécie.

E o que achou de Portugal? "Eles pensam que nós aqui do Uzbequistão somos atrasados. Mas eles são mais atrasados do que nós em um monte de coisas! Por exemplo, eles não..." e toca o celular. "Se for a esposa, atenda! Senão vai ter problemas, hem", gracejei. "Ah, mas é a amante!", respondeu com um sorriso safado. Fiquei um pouco preocupado com ele falando ao telefone e nós circulando a 80 km/h na avenida Shota Rustaveli, uma das principais de Tashkent, com a pressa que lhe pedi para que eu pudesse pegar o trem a tempo.

"Então", disse C, um minuto depois, após desligar o celular (falou em uzbeque, nenhum detalhe supostamente picante da conversa chegou a meu conhecimento). "Em Portugal, ninguém entendia que aqui no Uzbequistão é tudo normal. A gente tem duas ou três mulheres. Não entra na cabeça deles." Claro, a religião muçulmana aceita homens com mais de uma esposa (se puderem mantê-las). Não quis me estender no assunto; apenas achei curiosa a completa franqueza com que C se referiu à sua "poligamia". Embora sejam cordiais e hospitaleiros, os uzbeques costumam ser muito reservados com desconhecidos. Eles têm até ditados sobre sua discrição — Aytkan gap, atqan oq ("Uma palavra dita é um tiro disparado"). Outro: Kob oyla, az soyla ("Pense bastante, diga pouco").

Continuou abrindo o coração. Havia voltado ao Uzbequistão havia pouco tempo por saudade de sua terra. E ficou curiosíssimo ao saber que esta era minha quarta vez em Tashkent (e no seu país). Falei do sentimento de que algo aqui sempre faz eu me sentir bem-vindo, apesar da barreira da língua e da solidão de viajante. Ele sinalizou com a cabeça que compreendia os problemas e se solidarizava, "não é fácil".

Como foi bom falar com C em português. Em uma jornada de 15 minutos de carro, ganhei um melhor amigo instantâneo.

Nos despedimos, com lentidão relaxada apesar da minha pressa, na frente da estação ferroviária. Queria ter tido mais tempo para conhecê-lo melhor. Lhe ofereci um pedaço de papel e uma caneta, me passou seus telefones ("este, sempre ligado, para a minha mulher e às vezes para a amante!"). Prometi a C que ele iria ouvir falar de mim no futuro, em novas visitas. Quando, não sei. Peguei minha mochila. Um aperto de mão, acenos. E saí correndo com toda a velocidade rumo à entrada da estação.


* * *

Havia tomado café da manhã umas 7h30 no refeitório às moscas do hotel em Margilan. Havia bandejas gigantes cheias de ovos fritos e panquecas, mas nenhum outro hóspede à vista, apenas eu. O chá preto estava insuportavelmente quente. Retoquei o filtro solar, ajustei o chapéu e a carga nas costas. Desci as escadas e fui saudar o céu azul e o sol ainda amistoso.

Em 2003, eu havia visitado um mercado em Margilan, no centro da cidade, perto da fábrica Yodgorlik. Fiquei impressionado com a riqueza humana, com as cores, com os cheiros. Foi o melhor mercado daquela minha visita ao Vale de Fergana. Desta vez, porém, havia decidido seguir indicações diferentes que me recomendavam um outro, supostamente fantástico, um pouco afastado do centro. Lá, aparentemente, multidões encontravam todo tipo de produto à venda, inclusive animais vivos. São nesses mercados abertos, ancestrais, onde se trava contato com o que existe de mais mágico no Uzbequistão. Não é a arquitetura de séculos de história, tão linda, tão promovida pelas autoridades para impulsionar o turismo. Mas o povo.

Em dez minutos de lotação, desembarquei no turbilhão de vida do mercado, chamado Kumtepa. Um oceano sensorial, onde mergulhei de cabeça para me afogar.



Muitas visões. As mulheres, com seus vestidos coloridíssimos de seda, se espremendo entre as barracas, roçando as ancas nos sacos carregados de especiarias perfumando o ar, algumas delas lindíssimas, com suas sobrancelhas grossas e unidas com maquiagem. As mais velhas, duras, fortes, bravas, mas com olhares doces.

As vendedoras de seda em um canto exibindo os lenços que refletem a luz solar. Estrelas no cosmos das milhares de pessoas encaixadas no espaço reduzido dos corredores.

Dez minutos depois, já suado, achei um caminho para um descampado com um fedor característico, fezes e urina. Lá estavam os animais vivos. Patos e galinhas, amarrados, tremendo, mijados de pavor, enquanto os vendedores de pé trocavam dinheiro e berravam. Alguém por perto pilotava uma grelha, torrando as carnes desses mesmos animais. Atravessei nuvens de fumaça. Passei ao lado do vendedor de pombos, numa gaiola. Pombos brancos da paz, para se comer. Imóveis, sentindo a fumaça.

Tirei o celular-máquina fotográfica do bolso. Passei a clicar a esmo. Saí do inferno dos animais, voltei para a área principal do mercado. Sacos gigantescos de batata, sacos colossais de pimentões. Encontrei duas meninas. Elas sorriram, posaram para mim, tirei uma, duas, cinco fotos. Elas rapidamente se entendiaram. Voltei para a parte das sedas. Vi uma mulher — estava completamente cercada de senhoras mais velhas, todas de costas para ela, todas comprando sedas. A mulher parecia o sol, as senhoras, seu raios de luz.

Em outro canto, mais quieto, estavam as vendedoras de sedas mais longas e caras, as khan-atlas. Menos gente aqui, segui por um corredor. Lá encontrei, como em uma gruta feita com os panos, uma mulher mais velha e uma mais jovem. Estavam conversando, olho no olho, sozinhas. Conversa feminina. Conversa geracional. Conversa privada. Apareci, as duas pararam, olharam para mim, esperaram eu passar. Sou parte agora de suas vidas tão secretas, coloridas pela luz forte que atravessava as camadas de seda colorida da barraca, iluminando suas cabeças, criando na jovem uma aura angelical. Sobre o que conversavam?

Na avenida que atravessa o mercado, um congestionamento terrível de vans coreanas (modelo Damas, da extinta Daewoo, produzidas localmente e extremamente populares na Ásia Central). Buzinas sem parar. Atravessei a avenida, cá e lá, voltei. O sol foi ficando muito mais forte, beirando o intolerável, quase não conseguia abrir os olhos, mas não queria usar óculos escuros para não perder as cores desta tapeçaria viva. Comprei uma garrafa de água, virei na goela e engoli com desespero quase que um litro inteiro. Minhas costas, na parte de contato com a mochila, estavam encharcadas.

Comprei mais presentes. Ao contrário de ontem na loja da fábrica Yodgorlik, achei lenços de seda coloridos por um preço irrisório, 4000 sums (aproximadamente US$ 0,5) cada. Um chapéu uzbeque feminino, lindo, 5000 sums (US$ 0,6). Desenvolvi técnicas mais aprimoradas para negociar os preços com o passar dos anos. O segredo principal é não ter pressa, não titubear em oferecer mais do que a oferta inicial se receber um não de cara. E ir jogando o jogo. Estou cada vez mais tomando gosto pelo esporte nacional.

A manhã finalmente se foi no transe do bazar Kumtepa. Meu plano de ir a Rishon, uma vila conhecida por ser o centro de produção de cerâmica do Uzbequistão, foi por água abaixo. Sem tempo. Me esperavam agora cinco longas horas de táxi até Tashkent.

Que calor imenso. No táxi compartilhado que encontrei, mesmo sentado à sombra no banco de trás, ao desembarcar em Tashkent eu estava com uma enorme dor de cabeça por causa do sol da manhã inteira.

Tinha umas horas na capital uzbeque antes de pegar o trem. Almocei em um restaurante ocidental, italiano, na avenida Shota Rustaveli. Dois únicos atrativos no restaurante para mim: era próximo da estação ferroviária e tinha ar condicionado. Um local completamente deslocado da Ásia Central tradicional, frequentado pela elite de origem russa e estrangeiros. Uma salada césar foi trazida à mesa como se fosse caviar pelo garçom se esforçando em falar inglês. Agradeci efusivamente. O conforto de falar uma língua na qual eu tenho fluência e comer um prato conhecido era o que eu precisava naquele exato momento, apesar de certamente não ser o que busco nesta viagem. A dor de cabeça estava me matando. A nutrição, que esperava ajudar um pouco a passar a dor, não ajudou muito.

Peguei um ônibus e desembarquei na rua Sailgokh, mais conhecida pelo seu apelido, "Broadway", a via de pedestres no centro da capital uzbeque que, em uma de suas extremidades, termina na praça Tamerlão, a principal da cidade. Tive uma nova impressão da Broadway, diferente das que tive em 2001, em 2003 e em 2012. Nas duas primeiras visitas, era o caos alegre, a multidão andando de cá para lá, os vendedores em suas barracas, os cozinheiros ao ar livre preparando o arroz uzbeque plov, fumaça, barulho, algazarra, vida. Em 2012, vi uma Broadway vazia, esterilizada; as árvores podadas, eliminando a sombra, as multidões e barracas, desaparecidas. Agora, uma mistura das duas. Estava pouco movimentada. Vi jovens andando em grupos, algumas barracas, brinquedos de parque de diversão. As árvores recuperaram muitos de seus galhos, mas a sombra de 2001 e 2003 era mais impenetrável, uma bênção no verão. Um pintor vendendo seus quadros em um canto: lindas imagens a óleo, imagens de Bukhara, Samarkand, imagens idealizadas, de sonho, com camelos e rostos cobertos por véus. É a imagem que os turistas compram, atrás da qual vêm para cá. Um sinal do rumo da transformação: a Broadway que vi em 2001 foi a mais tradicionalmente uzbeque. Logo, veio e foi a Broadway violentada pelo líder Islam Karimov, que visitei em 2012: limpa, sem vida, triste. E o ciclo segue para esta Broadway, a do novo presidente Shavkat Mirziyoyev: uma Broadway um pouco mais confortável e carinhosa, reencontrada com seu povo, mas certamente muito mais turística, alinhada com o grande objetivo de torná-la mais palatável para os visitantes, para que venham, cada vez mais, consumir perseguindo a visão idealizada das pinturas.

Imaginei o lugar de noite, agitado, com os adolescentes vibrando com os brinquedos, com os visitantes ocidentais tomando sorvete e vendo os suvenires, caminhando até a estátua de Tamerlão da praça, sempre ele, Tamerlão, o avatar do país, ele ainda está lá na praça, imponente. Ainda é a estátua que substituiu a de Lênin em todo o país, como vi nas visitas passadas. Um obscuro conquistador do século XIV que poucos conhecem no Ocidente, aqui, ubíquo.

Não tenho tempo de me despedir. De novo me distraí, de novo a hora passou. Corri para encontrar um táxi. Encontrei C. e falei português enquanto latejavam minha testa, minha nuca, meus olhos.

A dor de cabeça só passou de verdade no trem, quando, finalmente, pude parar para tomar uma aspirina. Lembranças de uma vez anterior em que peguei meu único trem noturno na Ásia Central, de Almaty a Taraz, no Cazaquistão, em 2012. Como daquela vez, a composição parecia ser bem velha, certamente dos tempos soviéticos, mas, aqui, pior preservada. Luz amarelada e fraca nos corredores. Sinais evidentes de desgaste no banheiro — uma torneira oxidada, dura de abrir e fechar. Superfícies gastas. No meu compartimento, novamente como em 2012, quatro camas em dois beliches. Tomado o remédio, pus-me a atualizar meu diário, compenetrado, ignorando a dor. Meus companheiros de quarto (nenhum turista: um era um senhor de mais idade usando o tradicional chapéu uzbeque, na cama de baixo ao lado da minha, e nas camas de cima dois jovens fortes) não me dirigiram a palavra a noite inteira. Após 20 minutos de frenética escrita, pela segunda noite seguida, simplesmente desmaiei. O chacoalhar da composição saindo pelos subúrbios da capital uzbeque me entorpeceu com imensa rapidez com a ajuda da aspirina.

Acordei algumas vezes no meio da noite. Pela janela do compartimento, luzes fortes às vezes conseguiam entrar e se chocavam com força contra minhas pálpebras antes de correr rapidamente pelo lençol abaixo, depois pelo chão, então para fora do trem. Eu voltava rapidamente a dormir. Estava tudo mais fresco e agradável.

Longa viagem. Doze horas até Termez, na fronteira com o Afeganistão.

Trem Tashkent-Termez, 7h10, 6/8

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UM PASSEIO PELO MERCADO KUMTEPA, MARGILAN, UZBEQUISTÃO










Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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