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17/9/2012
Estou em um ônibus velho. Ao lado da estrada esburacada, um vale, um lindo vale. Ao lado da estrada e do vale, montanhas, completamente peladas, lembram montes de terra. Em dado momento, a estrada se aproxima delas, e se vê uma superfície com muitas pedras e alguma grama seca. O vale é extremamente fértil, e por isso me chama a atenção tamanho contraste ao ver a terra ocre que surge nas alturas. Perto da estrada há plantações, milho, algodão, árvores frutíferas, algumas vezes tudo separado, algumas vezes tudo misturado. A cada 100 metros de caminho, vejo pela janela algo diferente plantado. Lá embaixo do vale, o rio, com força, vindo de algum ponto da serra, praticamente invisível atrás do verde. O Sol ainda está alto, são 15h30. Cá e lá, mulheres trabalham a terra com enxadas, revolvem o duro solo. Crianças conduzem as vacas. Meu ônibus quase atropela uma ovelha que cismou em atravessar o caminho. À beira da estrada, em vários lugares, há banquinhas com potes de vidro grandes, transparentes, que em princípio achei estarem cheios de mel. Depois descobri ao ver uma placa. Na verdade é gasolina, vendida a granel nesta região pobre e remota do misterioso Tajiquistão.
Me sinto distante de tudo de uma forma que nunca me senti antes.
O ônibus chega a Chorku, um vila quem nem aparece nos mapas a aproximadamente 40 minutos de Isfara, em si já uma cidadezinha isolada neste canto perdido em que três países se misturam - além do Tajiquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão. Isfara, onde tive que parar para pegar este ônibus para Chorku, é uma cidade majoritariamente uzbeque no pouco conhecido lado tajique do Vale de Fergana. A fronteira é por aqui um verdeiro inferno, uma maldição. Não só o território do Uzbequistão fica a poucos quilômetros de onde estou como também o do Quirguistão. Vilarejos irmãos, povos irmãos, são brutalmente separados pela burocracia irracional. Assim, há uzbeques vivendo aqui e tajiques vivendo do outro lado da fronteira. Quirguizes aqui, com seus lindos chapéus ak kalpak, e, lá no Quirguistão, uzbeques e tajiques.
Essa perversa situação, edificada por Stálin a partir de 1924 (num dos mais claros exemplos de sua estratégia de "dividir para conquistar" os povos de seu vasto território), evidentemente gera tensão. Embora Chorku e Isfara fiquem ligados fisicamente ao resto do Tajiquistão, há enclaves que pertencem oficialmente a um país dentro do outro. Ilhas de território completamente cercadas pelo território do país vizinho. Não que isso não exista em outras regiões do mundo, mas no Vale de Fergana essas ilhas são especialmente inconcebíveis. Para os povos daqui, foram séculos e séculos e séculos de união. Antes dos soviéticos, não existia na cabeça deles a identidade nacional - a ideia de ser uzbeque ou tajique ou quirguiz. Eram todos amigos, vizinhos, falando línguas diferentes às vezes, às vezes um pouco fisicamente diferentes, mas todos iguais, cumprindo suas funções na sociedade. Os mapas desenhado por Stálin criaram as repúblicas seguindo o aconselhamento de elites locais, que muitas vezes têm seus interesses mesquinhos, e tentando se basear nas línguas faladas em cada lugar. Nesta região de curvas e montanhas, era possível encontrar tajiques vivendo em um lado, quirguizes em um outro, uzbeques no meio. O que fazer? Qualquer divisão seria traumática. E foi.
Há três enclaves principais - Vorukh, que pertence ao Tajiquistão e fica quase ao lado de Chorku, mas é cercado pela terra do Quirguistão, e Sokh e Shakhimardan, uzbeques, também dentro do território quirguiz. Viajar entre os enclaves e o resto do país a que pertencem durante os tempos soviéticos, evidentemente, nunca foi um problema. Entretanto, com a independência em 1991, os vizinhos (agora com suas identidades nacionais artificialmente desenvolvidas) começaram a colocar para fora suas desconfianças mútuas e caiu por terra a tranquilidade soviética. Necessidade de vistos, papelada, postos de fronteira, guardas, guardas corruptos pedindo subornos, soldados, soldados bêbados, soldados entediados, armas, contrabando, guaritas fechadas, guaritas abertas, feriados de um lado impedindo cruzar a divisa, feriados do outro também fechando tudo. Imagine se você mora deste lado e sua mãe, depois do fim da URSS, ficou morando do outro. Imagine se o mercado mais próximo, aquele que você visitou toda sua vida para comprar pão, fica do outro lado da guarita. Ninguém avisou que a orgulhosa independência traria tanta dor de cabeça. E violência. Já ocorreu algumas vezes que grupos de um lado, movidos por ideais nacionalistas, se apossam de território do outro lado. Tropas dos dois lados são enviadas para a região, segue-se um nervosíssimo impasse, quase sempre resolvido de última hora nas capitais. Até agora, a tensão nunca descambou para uma guerra - provavelmente porque não seria interesse de ninguém em Bishkek ou em Tashkent ou em Dushanbe. Mas, para as criaturas daqui, que têm que amargar um dia a dia de complicações, a tensão vai continuar existindo, terreno fértil para nacionalistas de araque, até que uma solução seja encontrada. O que poderia ser? Troca de territórios entre os países envolvidos? Passe livre nas fronteiras para os moradores locais? Criação de corredores para ligar todos os enclaves ao resto de seus países? Cada solução implica em outros problemas, em resistência.
* * *
Se as fronteiras são artificiais, e as pessoas todas têm os mesmos traços físicos, pelo menos do lado tajique existem algumas diferenças visíveis e impressionantes que têm que ver com a história recente. O país ainda se recupera de anos de uma sangrenta guerra civil (1992-1997) que teve um efeito devastador sobre boa parte da herança infraestrutural soviética. As estradas estão ruins; não há postos de gasolina. Há muita, muita pobreza, mais do que no lado uzbeque, onde pastores e fazendeiros já não são tão abastados. Um regime linha dura como o que há no Uzbequistão, pelo menos neste canto esquecido no Tajiquistão, não está presente.
Tudo isso transformou este lugar em um terreno fértil para o que o Ocidente mais teme - o radicalismo islâmico. Isso realmente eu não esperava ver. Mas não há como esconder. A ironia é que, com as pessoas por aqui tentando se esconder, elas fazem com que esse fenômeno se veja mais claramente. Todas as mulheres em Chorku escondem a cabeça embaixo do véu islâmico, deixando o rosto à mostra. Outras, na verdade poucas, vão além, mas mesmo sendo poucas é algo notável de se ver - é a primeira vez que encontro na Ásia Central mulheres até mesmo com o rosto coberto, só deixando visível os olhos. É um sinal do forte conservadorismo desta região, mas algo que vai muito além do conservadorismo tradicional e entra pelo caminho do que foi trazido para cá por influência estrangeira, acima de tudo saudita, no período pós-independência. Outro sinal - vejo, com mais frequência do que em qualquer lugar em que estive nesta viagem até agora, mulheres sendo transportadas de carro, no banco de trás e inteiramente cobertas com suas vestimentas, pelos seus barbados maridos. Andando na rua, encontro algumas. Sinto-as desconfortáveis ao me verem, eu, claramente um estrangeiro. Fogem rapidamente de mim, me olham como se eu estivesse com alguma doença contagiosa e aceleram o passo. E puxam uma ponta do véu para cobrir o rosto ao cruzar meu passo.
Até mesmo as crianças têm que seguir as rígidas normas de vestimenta. Perambulando, com minha câmera à mão, encontro duas meninas muito sapecas em uma ponte. Me coloco do outro lado da rua - elas estão lá do lado oposto e rapidamente percebem minha presença. Eu me contagio com a alegria delas, rindo alto, olhando para mim. Parecem entender que eu as quero fotografar, e tentam se esconder, mas só de pirraça. Aliás, logo percebem que nem têm onde se esconder, só se saírem correndo. Então, riem mais. Têm uns sete, oito anos. Usam o véu cobrindo todo o cabelo e vestidos longos, coloridos. Acabam decidindo se esconder de mim atrás delas mesmas - usam as mãos para cobrir os olhos brevemente; em um segundo, olhando por entre os dedos, percebem que estou lá ainda e riem mais, como se dissessem que eu as havia descoberto. Brinco junto, tiro fotos. Em um desses momentos em que cobriam o rosto, de repente a câmera capta uma mulher mais velha. Ela passa com roupas negras, pesadas, indo até os pés, e o rosto inteiramente coberto. Apressada, corta minha visão das meninas por um milissegundo e segue pela calçada. Flutua. Não olha para os lados. É como um espectro, um fantasma. As meninas, se escondendo em alegria; a mulher, se escondendo em tristeza.
Senti tanto carinho por aquelas meninas. Quis abraçá-las por serem minhas amigas, por serem tão lindas, tão sorridentes.
Minha impressão é que Chorku é o lugar perfeito para ser o esconderijo de wahhabistas (adeptos de uma corrente ultraconservadora do Islã oriunda da Arábia Saudita, com frequência associada a extremistas) na Ásia Central. Tomado pela miséria, este lugar parece distante de tudo, esquecido pelo Estado. Também miseráveis e esquecidas pelo Estado, as favelas no Rio de Janeiro se transformaram em redutos de traficantes, que estabeleceram um governo paralelo, uma justiça paralela. Aqui, o poder paralelo e insidioso está no Islã radical. Ele dá um caminho para jovens sem futuro no período pós-guerra civil, dá preceitos morais quando tudo foi destruído e se tornou sem esperança, perdido. Um governo ditatorial pode fortalecer isso. O presidente tajique é um bom representante da elite pós-soviética que governa para manter o seu próprio poder, reprimindo vozes que ousam pensar em alternativas (como as propostas pelo Islã moderado e tradicional desta região). Tudo isso impulsiona os Wahhabistas, aumenta o número de pessoas que vê na radicalização a única saída.
Em Chorku, visito o Khazrati-Bobo.
Trata-se de um complexo arquitetônico antigo, escondido em algum ponto entre o vilarejo e as montanhas. O lugar hoje abriga uma mesquita, com um telhado de metal nada atraente cobrindo seu pátio externo. Você chega e não é possível entender por que o complexo é interessante. A mesquita não parece ter, à primeira vista, nada de especial. Mas, cruzando o pátio, atrás de uma porta, entre quatro paredes, como que propositalmente fazendo contraste com tudo, está um mausoléu de madeira do século X, guardando os restos de um santo local.
A penumbra torna mais difícil inspecionar o tesouro, mas aumenta o mistério.
Há sete colunas de madeira, cada uma feita de uma única árvore. Nelas, intricadas inscrições em alfabeto árabe, quase impossíveis de discernir de outros elementos decorativos esculpidos naquela madeira de séculos e séculos. Os detalhes são zoomórficos, animais desconhecidos, pássaros, peixes. São geométricos, são de plantas. Um capricho desgastado, mas lindo.
Embora as pessoas por aqui chamem o santo do mausoléu por vários nomes, o mais curioso é Amir Hamza Sokhibkiron. Significa "mestre na combinação auspiciosa de estrelas". Talvez tenha a ver com a lenda associada ao local. Dizem que o mausoléu foi erguido em apenas uma noite, uma noite mágica.
Descubro logo que a mesquita ao lado não é tão nova assim - é uma adolescente, do século XVIII. Adentro um de seus salões, aparentemente nunca restaurado. Suas paredes têm afrescos coloridos, desbotados pelo tempo, novamente tentando me contar histórias das quais ninguém mais se lembra.
O complexo certamente não é parte principal do circuito turístico centro-asiático. Eu mesmo o descobri por meio de relatos desencontrados que me levaram a uma pesquisa mais aprofundada na internet. Não havia nenhuma citação em meu livro-guia. E, como já me aconteceu antes nesta mesma jornada em Shakhrisabz, o fato de o local ser menos visitado aumenta exponencialmente o carinho dos meus anfitriões por mim. Fui tão bem tratado pelos funcionários da mesquita que senti envergonhado em não ter como retribuir. Os três senhores, com seus chapéus dope pretos, me espantaram dizendo que já receberam muitos visitantes, inclusive gente do Brasil. Tentando conversar com esses "guardiões" do mausoléu, basicamente estávamos trocando sorrisos, mímicas e simpatia. É um povo que te acolhe como você fosse um parente distante e morre de orgulho ao ouvir que alguém vêm de longe, enfrenta os vistos, as fronteiras e as estradas desgastadas para ver seu patrimônio.
Neste caso, o meu contato com os três funcionários me empolgou até mais do que visitar o mágico mausoléu. Em um reduto tão conservador, eles me surpreenderam pela simplicidade, pelo sorriso, pela imensa hospitalidade, oferecendo chá, convidando para adentrar seus domínios em pestanejar. Espero que meus compatriotas que tenham vindo aqui tenham, da mesma forma, abrido os olhos para o que está ao redor. A complicada viagem até Chorku vale menos pelo mausoléu secreto e suas estrelas do que por essas pessoas que você encontra, maravilhosas, encarnando o espírito ancestral da rota da seda.
Espero que a doença wahhabista nunca as faça mudar.
* * *
O Khazrati-Bobo foi de fato a conclusão de um dia longo e difícil. Do meu hotel em Kokand até o tenebroso quarto em Isfara, foram seis vans e ônibus.
A primeira das várias aventuras do dia foi a travessia entre Uzbequistão e Tajiquistão, em um posto de fronteira que eu já sabia que não era muito usado pelos turistas. No transporte até o posto, foram duas vans. Fiquei repetindo aos motoristas que ia para a Tamojnaia (alfândega em russo), como eles mesmos se referiam ao local de passagem entre as duas nações. O motorista da segunda van me deixou, juntamente com outro passageiro, no meio do nada - uma estradinha vazia, com pastos e plantações baixas dos dois lados e Sol a pino. Caminhamos uns 30 metros e encontramos a casa da guarda de fronteira uzbeque e cancelas. O único som que ouvimos na caminhada era o de um burro desesperado, berrando alto em algum lugar em casebres distantes à esquerda.
Esperava neste ponto encontrar, como é normal, algum lugar antes da fronteira para trocar dinheiro - eu levava ainda grossos maços da desvalorizada moeda uzbeque e não tinha nenhum centavo de somani, a moeda tajique. Mas não havia ninguém para trocar meus sums.
Após o encontro tranquilo com os policiais dos dois lados, em menos de uma hora eu estava do outro lado. Alguém já aguardava pelo senhor que atravessou comigo. Ele foi embora, e eu fiquei completamente sozinho. Também não esperava não encontrar nenhuma cidade, nenhum ponto de ônibus, nada, do outro lado. Só havia a estradinha e pasto, pasto dos dois lados e seguindo pela beira do caminho até se perder de vista.
Sem dinheiro, sem ideia da distância até a cidade mais próxima, fui em frente, caminhando. Pé na estrada, olho no horizonte.
A aventura incerta, porém, foi curta - em dez minutos, comecei a avistar algumas casas à beira do caminho, e uma van surgiu do nada com três pessoas a bordo. Acenei - o motorista parou. Com um sorriso só de dentes de ouro e o rosto brilhante de suor e fuligem, disse que me levaria a Kanibodom - e que (quanta felicidade!) aceitava sums uzbeques.
Cerca de 15 minutos depois, cheguei a Kanibodom, também transliterada como Konibodom. Adorei o som do nome da cidade - fiquei bobamente rindo, parecia uma onomatopeia para uma explosão. Logo vi uma imensa estátua soviética em homenagem a soldados mortos na Segunda Guerra Mundial e o primeiro retrato de Emomali Rakhmon, o ditador tajique, adornando um prédio. A cidade tem um mercado agitado onde (novamente para meu espanto) tive muita dificuldade em encontrar um quiosque que se dispusesse a aceitar meu saco com notas uzbeques. Só então imaginei que existia alguma lei que proibia levar sums para fora do país. Encontrei um único quiosque que aceitou trocar minhas pilhas de notas uzbeques. A taxa de câmbio era muito desfavorável, perdi muito dinheiro. Quanto arrependimento. Deveria ter trocado tudo no lado uzbeque.
Passado o sufoco cambial, procurei uma Coca-Cola para matar minha sede nos restaurantes e nas barraquinhas no mercado. Mas não só não encontrei nenhuma latinha de Coca, como também não achei Pepsi. Inacreditável.
Por outro lado, em vez das duas marcas que me acompanharam em todos os países que em estive em minha vida até então, encontrei uma bizarra marca produzida por um outro fabricante americano, mas da qual eu nunca havia ouvido falar. Trata-se da RC (Royal Crown), do Estado da Geórgia, sul dos Estados Unidos. Essa "poderosa" concorrente da Coca-Cola domina o mercado local. Além de fornecer um substituto do líquido preto e gelado, a RC também distribui em Kanibodom "genéricos" de Fanta, envasados no próprio Tajiquistão. Estranhíssimo. A Coca-Cola e a Pepsi desprezaram o mercado tajique por algum motivo, e a RC se aproveitou disso.
No almoço ao lado do ponto de ônibus para Isfara, pedi uma Coca RC para experimentar. Me trouxeram por engano uma garrafinha da RC diet. Ainda mais horrorosa que a Coca Diet original. Acabei tomando apenas um terço e pedindo uma garrafa d'água para ajudar a engolir a gordura do meu shashlik.
Meia hora depois, segui para Isfara e, de lá, para Chorku.
* * *
Após a visita ao Khazrati-Bobo, embarco em uma van de volta a Isfara. Novamente, o clima sinistro, nada mais contrastante do sentimento bom que senti conversando com os meus amigos instantâneos no mausoléu.
Apesar de haver outros homens na van, as passageiras me olhavam de um jeito estranho, extremamente desconfiado. Os olhares eram tortos, indiretos, os rostos, fechados, até mesmo enraivecidos. Uma delas, para quem sobrou se sentar no banco ao meu lado, está ocupando apenas a beirada do assento, o mais longe possível de mim, quase caindo com o traseiro no chão. Assim que outro banco da van ficou vago, foi com pressa se mudar para ele. A van está com todos os bancos tomados, menos o ao lado de mim. A princípio, me sinto igualmente desconfortável e estranhamente culpado de ser um estranho no ninho. Depois, entre as curvas e os solavancos do caminho, passo a achar engraçado. Fico imaginando que eles me acham um impuro ou um tarado simplesmente por ser estrangeiro, não muçulmano, ou se é 100% temor do desconhecido, o que, na verdade, sempre existe.
Em Isfara, me deparo com uma situação semelhamente à que vivi em Chorku: Não tenho nenhuma, absolutamente nenhuma, informação sobre a cidade em meu livro-guia, que sequer a cita. Não sei onde vou dormir e vasculho o centro atrás de um hotel. Na avenida principal da cidadezinha encontro uma velha construção de três andares, dos tempos soviéticos, que parece com um. Na entrada, não há nenhuma identificação, mas meu instinto me conduz para seu interior.
A primeira sensação ao entrar no pequeno saguão do hotel Isfara foi de medo. O lugar não é apenas velho - está evidentemente em péssimo estado de conservação -, ele parece ser um esconderijo para criminosos, onde nenhuma pessoa de bem sequer pensaria em entrar. Não vejo nenhum outro cliente, apenas percebo, de forma distante, os gritos de um homem discutindo com outro no primeiro andar. Em uma salinha que aparentemente é a recepção, vejo uma senhora russa, gorda, com seus 50 anos, com uma cara de imenso tédio. Diz que há dois quartos disponíveis - a suíte simples e a suíte "lux", mais cara. As duas ridiculamente baratas. Qual a diferença? "Lux, maior, melhor", diz a senhora, rosnando. Após lembrar de minha experiência no quarto dos horrores no hotel Turist em Shymkent, decido apostar que a tal "lux" seria mais tolerável que a outra. Paguei os 25 somanis tajiques, ou cerca de US$ 3, e subi ao terceiro andar sem imaginar exatamente o tamanho da encrenca.
Uma coisa ficou clara logo de cara - pelo preço, recebi espaço de sobra para uma pessoa. Encontrei um apartamento com sala de estar com sofá, poltrona e TV, além de um quarto separado com duas camas de solteiro e um banheiro. Havia espaço para pelo menos umas quatro pessoas, duas dormindo nas camas e mais duas com sacos de dormir, no sofá e no chão da sala.
Por outro lado, a suíte "lux" logo assumiu o primeiro lugar no pódio da lugares mais horrorosos e inóspitos em que eu passaria uma noite. Muito pior do que o quarto em Shymkent.
A "lux" cheirava a pó e mofo. Todos os móveis estavam velhos, carcomidos pelo tempo e sujos. A mesa que sustentava a TV tinha uma camada de pelo menos cinco milímetros de poeira. A TV, pequena e com imagens em branco e preto, ligava, mas não permitia sintonizar em nada, só estática. As paredes tinham papéis de parede brancos com manchas que pareciam criadas por vazamentos, há décadas precisando de troca, amarelecidos, tristes, tristes demais. Mas o pior, sem dúvida, era o banheiro - cheirava a urina envelhecida, com paredes escuras, um chuveiro só com água fria, um vaso sanitário cuja cor original era impossível saber. Um banheiro sem porta que só usei para urinar, rapidamente, com os olhos fechados.
Pensei em sair correndo, procurar qualquer outra coisa na cidade. Mas eu sequer tinha um mapa de Isfara, estava cansado e já havia anoitecido. Tranquei a porta, genuinamente com medo de aquele lugar ser invadido de madrugada por amigos da gorda russa. Coloquei meu pijama e decidi que era melhor tentar transportar minha mente para algum lugar distante, na esperança de dormir algumas horas e sair bem cedo pela manhã.
Embaixo do cobertor esburacado e gasto, passei muito frio. Nunca me senti tão sozinho.
Isfara, 18/9, 10h30
(Continua domingo, 21/1/2018)
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