Wednesday 8 March 2023

Novas Fronteiras (X) - Samarkand, Uzbequistão



O que é "Novas Fronteiras"?
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12/8/2018

Montes infinitos de terra seca esturricada, geradores de poeira. Infinita poeira. Levantando com o sol, com a lua. Sendo levada para o rio Zerafshan, para os desertos, para as montanhas.

Em Penjikent, um arqueólogo pode perder sua sanidade. Há pelo menos dois lugares na cidade para planejar grandes escavações, apesar de muito neles já ter sido explorado e catalogado desde os tempos soviéticos. Sim, muito neles já foi desvendado, mas muito também parece ser ainda um completo mistério, ainda sepultado, esperando a curiosidade humana fazer o que está destinada a fazer.

O primeiro lugar fica a um pulinho do centro de Penjikent. Basta andar meia hora ou menos a partir do mercado da cidade. Trata-se da velha Penjikent, explorada pelos arqueólogos quase que de forma ininterrupta desde 1947 e chamada por alguns de "A Pompeia da Ásia Central". É um mar de montes de terra pelada com formas que sugerem tesouros e palácios. Um imenso ponto de interrogação com uma história igualmente imensa. Trata-se de quizá a principal cidade da civilização dos sogdianos, um povo antiquíssimo — o mesmo ao qual estudiosos atribuem, em uma de suas hipóteses, a construção do Kyrk Kyz de Termez. Antes mesmo de Alexandre, o Grande tomar a região para seus domínios, os persas aquemênidas já tinham por aqui a sua sátrapa (província) de Sogdiana. Mas não se sabe ao certo o que existia por aqui naquela época tão longínqua; o que se sabe é que esta Penjikent de barro foi fundada no século V no que era o extremo leste de Sogdiana e teve seu auge na primeira metade do século VIII, ou seja, imediatamente antes da chegada, no mesmo século, dos árabes à região. Antes da conquista dos muçulmanos, os sogdianos eram uma confederação de cidades onde ainda o zoroastrismo dos tempos dos persas Ciro e Xerxes era uma das religiões dominantes; na parte norte desta ruína foram erguidos dois grandes templos. No oeste, ficava a fortaleza da cidade, abrigando sua administração, e, no sul, estavam seu cemitério e seus subúrbios. Dentro das muralhas da cidade era possível encontrar casas de dois e até três andares, pertencentes aos mais ricos membros da aristocracia. Com os árabes, acredita-se que a cidade entrou em declínio, deixando de ser habitada em seu local original por volta do ano 780. Isso é muito, muito antes de Gengis Khan e Tamerlão, embora bem depois dos kushanos que ocuparam a atual Termez e criaram o Fayoz-Tepe.

As escavações soviéticas das ruínas sogdianas renderam tesouros irreais em se tratando de um sítio tão antigo. Baixo-relevos e murais com influência budista, grega e indiana foram encontrados ainda com as cores originais embaixo de toneladas de terra. O mais famoso mural que sobreviveu, o do chamado "salão azul", é um deslumbrante conjunto que foi inteiramente arrancado de Penjikent e transportado pelos soviéticos para a Rússia, e que hoje jaz escondido em alguns dos centenas de corredores do Hermitage de São Petersburgo. Foi encontrado no que era o palácio de um aristocrata e deve seu nome ao seu fundo azul, feito com um pigmento de lápiz lazúli, o mais caro e raro na Ásia Central. Traz cenas de batalha de Rustam, um herói épico dos povos iranianos, e inclui ilustrações de leopardos, dragões e demônios. A imagens, feitas entre os séculos VI e VIII (sua conclusão foi interrompiada pela invasão dos árabes trazendo o Islã), mostram os sogdianos como representantes de uma zona de transição entre a estética indiana e iraniana, entre a túrquica e a chinesa, talvez a mais pura definição da alma ancestral centro-asiática.

A ausência do mural do salão azul é como uma ferida que não irá se cicatrizar jamais nas ruínas de Penjikent. O pequeno museu ao lado do labirinto de barro apresenta alguns artefatos que escaparam à pilhagem soviética e fotos saudosas desse tesouro roubado. A esse museu se chega por uma avenida que vem da cidade nova e corta a área do vasto sítio arqueológico, separando sua fortaleza do resto. No entanto, passar pela estrada não permite se ter uma ideia clara do tamanho do lugar. Isso só é possível ao subir em um de seus montes de terra, seguindo a trilha a partir do museu. Sua imensidão meu deixou boquiaberto. Dez mil metros quadrados.

Fui viajar naquele mundo de barro e poeira. Em vários pontos, cravados no solo, encontrei bandeirolas vermelhas e áreas cercadas por cordas, indicando o trabalho ativo dos arqueólogos. E, diferentemente do que encontrei em sítios no Cazaquistão, no chão não há pedaços de porcelana vitrificados e coloridos. Há, sim, fragmentos de porcelana, mas provavelmente a ausência das cores se deve à antiguidade do sítio, já que o uso da vitrificação colorida na cerâmica se tornou mais comum na Ásia Central apenas a partir do século VIII, justamente quando a cidade encontrou seu fim. Além disso, os pedaços que encontrei, sem cor ou brilho, só aparecem ao lado dos locais sendo escavados profundamente pelos arqueólogos, como se os cientistas os tivessem deixado lá, jogados, por julgá-los desinteressantes. Procuram tesouros maiores. Talvez um novo salão azul para substituir o ausente.

Na caminhada, a sensação já familiar de estar sendo assombrado por lembranças desconhecidas, de séculos e séculos. Como em todas as ruínas que podem ser visitadas na Ásia Central: muito a dizer, mas, tanto, que faltam palavras, e o visitante se perde em sua ignorância, engolido pelos fantasmas.

Fui até a extremidade do sítio. Não havia placas. Não havia gente. Muito difícil fazer algum sentido vendo a terra disforme sendo lentamente dissolvida pelo tempo. Mas encontrei lá um lugar com uma vista perfeita. Me sentei para admirar de lá a cidade moderna de Penjikent e as montanhas, distantes, além do vale do rio Zerafshan, o rio que vou continuar seguindo nos próximos dias: primeiro, na volta a Samarkand, depois, por Navoi e Bukhara. Sinto que é hora de seguir seu curso de volta ao Uzbequistão.

Voltei novamente caminhando para o centro da cidade, deixando para trás as ruinas. Era por volta do meio dia. Fiz uma despedida com sorvete para aplacar tanto calor. Depois, procurei um taxista disposto a cobrir a curta distância até a fronteira uzbeque. "Vamos", disse ele, "mas estou com outros passageiros que vou deixar pelo caminho". Logo, a moderna Penjikent desapareceu no retrovisor e novamente eu estava em zona rural. Mas, à minha direita, logo notei algo estranho na paisagem, uma anomalia. Uma placa na estrada indicava, com uma seta, a entrada de Sarazm. Perguntei ao motorista se tinha ideia do que se tratava. Ele disse que só sabia que eram ruínas. Aceitou me deixar lá e me resgatar em meia hora. Parou o carro no meio do lugar, agarrei minha mochila e voltei para o sol. Lembrei que já havia lido algo no meu guia a respeito de Sarazm — uma menção minúscula, simplesmente um nome em alguma página. Nem sabia que ficava aqui.

Sarazm representa um período completamente diferente do coberto pelos restos da Penjikent ancestral, e isso só testemunha a formidável riqueza histórico-cultural desta região. Ele data originalmente da era do bronze, quarto milênio antes de Cristo, antes das primeiras pirâmides do Egito, o que coloca o sítio entre os mais antigos assentamentos da Ásia Central. Neste caso, uma placa lhe faz o justo tributo, indicando que Sarazm foi agraciado com a inclusão na lista de Patrimônios Culturais da Humanidade da Unesco em 2010.

Talvez pela honra, o sítio ganhou algumas regalias que não foram oferecidas à velha Penjikent. Aqui, as escavações estão cobertas por toldos e há inúmeras placas com explicações detalhadas em inglês. Por meio delas, descubri que se acredita que Sarazm era uma "protocidade" — um assentamento que se diferencia do que viria a ser depois uma cidade pela falta de governo central e qualquer planejamento urbano — de uma época da qual pouco se sabe ao certo. Nos buracos escavados na terra, surgiram o que parecem ser ricas casas, incluindo altares e sinais de sacrifício de animais.

Uma lástima que, como em Penjikent e tantos outros locais na Ásia Central, o sítio é apenas terra escavada. Seus principais tesouros sobreviventes estão longe. No caso de Sarazm, o grande tesouro está no Museu Nacional de Antiguidades da capital tajique, Dushanbe, que visitei em 2012 (pelo menos, mais perto que o Hermitage de São Petersburgo). Trata-se do que viria a ser conhecido como "Princesa de Sarazm", um esqueleto achado numa câmara mortuária de entre 3 mil e 3,5 mil antes de Cristo. No esqueleto foram achados os restos de uma extravagante vestimenta, ornamentada com lápis-lázuli, jaspe, azeviche e outras pedras ornamentais, além de um espelho de bronze. De acordo com os cientistas, a descoberta é importante porque mostra que, em uma época tão longínqua, a população local já tinha acesso a materiais vindos do Afeganistão (o lápis-lázuli das minas citadas por Marco Polo em suas crônicas) ou Índia, indicando que uma rota comercial, uma "Rota da Seda", ou já estava em gestação ou mesmo já existia naqueles tempos.


* * *

Bem-vindo de volta ao Uzbequistão.

Atravessei a fronteira sem problemas. Eram umas 16h. Conheci duas portuguesas, elas fizeram a travessia internacional comigo. Imagine a surpresa das duas quando o companheiro de fila começou a puxar conversa no idioma em que elas conversavam. Todos nós, imensos sorrisos. Apesar da diferença dos sotaques português e brasileiro, falar nosso idioma neste mundo distante é sempre um conforto, um abraço, um carinho. Eram duas aventureiras incomuns — não mochileiras adolescentes jogadas ao vento e esperando que o destino as levasse pelos desertas e estradas centro-asiáticas, ao léu; nem excursionistas luxuosas, atreladas a grandes grupos de passeio preguiçoso. Eram senhoras de meia idade, professoras escolares, aventurando-se por sua conta e risco, vendo o mundo. Estavam indo de Dushanbe a Samarkand e haviam pagado um motorista na capital tajique para transportá-las o caminho inteiro, até entregá-las na capital de Tamerlão. Tratava-se de mais um braço de uma ousada jornada que já as havia levado ao Pamir. Muito me admirei por elas estarem explorando locais tão incomuns, e ficamos amigos sem nenhum esforço. As convidei para dividir o preço do resto da jornada no táxi delas até Samarkand e aceitei ficar no mesmo hotel que elas na primeira noite, pois eu só tinha reserva em um hotel na segunda noite na cidade. Certamente seria uma boa oportunidade para conhecer mais uma opção de acomodação. Na longa espera pelo desembaraço do táxi tajique na fronteira, troquei dinheiro com os outros taxistas esperando seus clientes e ofereci a minhas novas amigas todas as informações que pude sobre Samarkand. Perguntaram e respondi: essa seria minha quarta passagem pela cidade, incluindo uma havia poucos dias, antes de vir para o Tajiquistão, e as das duas viagens anteriores.

— Mas por que você gosta tanto daqui? — perguntaram.
— Olha lá, aquele não é o nosso taxista? Está nos chamando — respondi, fugindo do assunto.

No carro, no caminho, pensei em dar uma resposta a essa pergunta sempre tão complicada de responder, mas o assunto mudou para a dificuldade imposta pelos guardas da fronteira ao nosso motorista, bastante irritado após mais de uma hora de suplício. Secretamente, me senti aliviado. Há poucas coisas mais difíceis do que explicar meu amor por Samarkand em poucas palavras e, em muitas, poucos têm paciência de ouvir. Melhor assim, pensei, poupando-as da digressão apaixonada.

O hotel, como o albergue que me recebera havia poucos dias, era ao lado do Registan. Um lugar bem mais caro, mas também muito tranquilo e mais confortável — uma bênção após a simplicidade dos quartos de GS nas montanhas Fan. Roupas de cama novas em folha, ar condicionado, um pátio com uma árvore e um tapchan. As portuguesas ficaram em um quarto separado, só delas. Larguei minha mochila e saí para aproveitar o fim da tarde e sua temperatura mais amena. Fui em direção à mesquita Bibi Khanoum, caminhando por uma rua que não via desde 2012 e que não visitara dias atrás quando estivera em Samarkand.

Voltei a me espantar com o "embelezamento" da cidade. A rua, basicamente, havia se transformado em um ponto de lojas de suvenires, com os estabelecimentos ocupando os dois lados da via. O bairro tradicional, palco da vida da região, sujo e feio, tinha sido escondido. Para vê-lo, o visitante agora precisa prestar atenção. Em dado momento, entre as lojas, aparece um barreira de metal, sem nenhuma indicação, com uma porta. Na verdade, alguém poderia até pensar que ela dá acesso a uma área particular e que atravessá-la seria proibido. Poucos turistas parecem cruzar a barreira. Talvez, imagino, para a maioria seja melhor assim, melhor que a verdadeira Samarkand seja escondida atrás de um biombo que a isole dos tesouros arquitetônicos da cidade, como se os dois não fizessem parte do mesmo todo e pudessem ser entendidos, e sentidos, isoladamente. Mas essa é a norma no Uzbequistão caça-níqueis. A segregação cria uma área "artificial" para os turistas, uma "Disneylândia", e outra completamente separada. E é nessa onde eu quis, precisei caminhar.

Esperava que os locais me olhassem com estranhamento, que pensassem que eu havia me perdido. Ou que fossem me incomodar — perguntar se queria comprar algo, se eu buscava um guia, se eu estava perdido. Nada disso. Senti uma imensa felicidade. Atravessar o portão me levou a uma rua iluminada pelo sol baixo, laranja, me ofuscando, diretamente à minha frente. Na rua, vi crianças jogando futebol, algazarra, algumas até me abordaram querendo falar em inglês comigo; o caminhar apressado de homens e mulheres jovens vindo do trabalho, alguns deles com roupa exatamente como a das pessoas no Brasil, mas algumas mulheres vestindo suas sedas tradicionais, coloridas. Vi idosos e idosas sentados em cadeiras nas portas de suas casas, conversando, medindo o movimento da via. Alguns me viram, sorriram. Perguntaram de onde eu era.

Vida. Vida urbana. Não entendo por que higienizar a vida.

No meio do labirinto de ruelas, havia pérolas salvas pela falta de "embelezamento". Pequenas mesquitas, velhas, esperando reforma, lindas por sua tinta gasta, testemunhas dos sovietes, dos czares, dos khans.

Avancei até o fundo de uma rua, até as tripas do bairro, e encontrei algo que, honestamente, não me lembrei de ter visto antes na Ásia Central: era uma hammam, ou banho turco, em atividade. Há ruínas de hammans em vários lugares que visitei, mas nunca vi uma que ainda fosse usada pela população. Esta, no caso, estava ativa desde o século XIX. Uma curiosa demonstração da incomensurável ligação cultural entre os uzbeques e os turcos. Do lado de fora, pouco se via; havia um portão e, logo em seguida, uma área coberta onde se viam cúpulas brotando diretamente do chão. Pareciam ser metálicas. Me aproximei para ver, bater nelas, para confirmar minha teoria. Adentrei a área coberta. Bati, eram bem sólidas, não eram de metal, pareciam ser de pedra. Nisso, um homem gordo e peludo, sem camisa, só de shorts, toalha no ombro, suado e relaxado, saiu de uma porta mais à frente e me abordou. Não parecia interessado em nada a não ser saciar minha curiosidade: "Entra, entra aqui, pode ver."

Uma ruína de hammam que visitei ficava em frente do mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi, o monumental edifício construído por Tamerlão em Turkistan, no sul do Cazaquistão. Naquela, havia uma sucessão de câmaras subterrâneas, salas de pedra com locais para se sentar e outros para se deitar, mas o lugar era abstrato demais para mim. A hammam que eu descobri em Samarkand, chamada Hammomi Davudi, por fim me explicou o que aquela ruína significava. As cúpulas brotando do chão eram os tetos de uma sequência de saunas com paredes de pedra, cada uma com diferentes temperaturas. Em uma delas, havia um homem sendo massageado por um funcionário que parecia estar amassando uma massa de pão, tamanha a violência como se atirava no lombo do cliente, deitado de costas. O alvo do ataque parecia desacordado, com um sorriso lânguido, gemendo levemente. Fiquei um tanto constrangido, ainda mais porque o meu anfitrião, o senhor sem camisa, havia me seguido e parecia observar cada passo e olhar meu. Nada mais para se ver e logo tive uma sensação de sufocamento, com os vapores da sauna misturados ao cheiro de suor. Antes de sair, agradeci ao homem, que, para minha surpresa, não perguntou se eu queria uma massagem. Perguntei se as mulheres também frequentavam a hammam. Sim, em dias alternados, explicou. Agradeci novamente.

Perto da hamman, vestigios do que um dia foi o centro da comunidade judaica de Samarkand. Como em Bukhara, a cidade era o local de muitos que, após a queda da URSS, migraram para Israel. Os que ficaram são poucos e velhos. Há uma sinagoga, perdida entre as casinhas humildes. A encontrei de portões fechados. Aparentemente, pode ser visitada, mas apenas se o transeunte tiver muita sorte de estar passando em um dia e horário de culto ou se organizar a entrada com antecedência. Aos não sortudos, ficam os pequenos detalhes, visíveis do lado de fora: uma calha de chuva ornamentada com a imagem de um menorá e a estrela de David, lindo trabalho em metal, certamente obra de um artesão.

A noite chegou.

Sai da cidade escondida, entrei na cidade dos turistas, segui em direção ao Registan e depois em direção ao Café Labigor. Meu local favorito de despedidas em Samarkand é onde eu havia combinado com Shackleton e o moleque de nos encontrarmos uma última vez. Para ser honesto, não os esperava ver — as referências que eu havia passado a eles sobre como encontrar o lugar eram um tanto vagas. O que faz dos viajantes viajantes é o fato de estarem à mercê do caminho, de sua curiosidade natural, de suas pernas e olhos; submeter o encanto da viagem a um jantar a mais com um semi desconhecido não me parecia algo especialmente atraente para os tchecos, que em breve estariam deixando a Ásia Central. Disse a eles: estarei lá às 20h, apareçam, podemos tomar uma cerveja no único lugar com boa cerveja que encontrei perto do Registan. Já estava me preparando para tomar a cerveja, ou mais de uma, sozinho, novamente com a visão da agitação noturna de Samarkand e acompanhado de alguma comida de qualidade duvidosa. Nada mal.

Mas eles apareceram! Eis que os viajantes não eram apenas exploradores, eram caçadores de companheirismo. Foi uma grande alegria dar um abraço no doce moleque, com quem eu só podia falar inglês, e no paradoxal, frio e amigável, amistoso e distante Shackleton, com quem eu só podia falar espanhol.

Sentamos em um tapchan, as mesas-camas típicas. Pedimos churrascos no espeto. Shackleton, sem pudores, pediu um frango inteiro, que veio empalado na haste de metal, com um cheiro maravilhoso de pele derretida e crocante. Em segundos veio o ruído das mordidas imensas do tcheco, que alternava a carne com pedaços de pão que enchiam toda sua boca e deixavam migalhas em sua barba. Após tanto tempo no Tajiquistão, era a primeira vez que os dois atravessavam a fronteira, a primeira vez que vinham ao Uzbequistão, a primeira vez que viam as glórias da capital de Tamerlão. "E então, o que acharam?", perguntei, com genuína curiosidade. Moleque: empolgadíssimo. Falou longamente das madrassas do Registan, da sutil geometria e das sutis cores, de suas sombras e do sol dourado do anoitecer sobre uma das fachadas. Queria mais tempo para explorar, entrar em todos os prédios, conhecer as ruas e ruelas, ver a luz da lua sobre as fachadas. "Os turistas, bem, são muitos, mas este lugar é lindo, que bom que viemos", resumiu o jovem. Shackleton: "É bonito". Só disse isso.

Entre um gole e outro da cerveja gelada, lembramos com nostalgia a viagem de meros dois dias atrás aos sete lagos das montanhas Fan. Só dois dias atrás! Isso não é nada! Mas já parecia fazer tanto tempo. Fomos aos poucos entrando no transe da bebida, rindo, rindo.

"É uma boa cerveja", avaliou Shackleton. "Mas você precisa conhecer melhor as cervejas tchecas. Ah! Que maravilha. Você precisa vir a Praga, vou te levar em um bar bom que conheço!" Eu disse que queria, sim, voltar a Praga, já fazia tempo desde minha visita. E afirmei que, quando voltasse, além de beber, queria certamente ouvi-lo tocar violino.

Já sentia, e sinto, saudade, mesmo sabendo que dificilmente vamos nos ver de novo. Se de fato não nos vermos, que fique essa lembrança maravilhosa de viajantes, das risadas e das cervejas no café das despedidas de Samarkand.

Samarkand, 13/8, 21h28

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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5 comments:

  1. Senhor viajante, poderia explicar porque gosta tanto de Samarkand?

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    1. Tremenda cidade, com histórias e coisas lindas para se ver e descobrir!

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  2. Banho turco... me fez lembrar as termas Gellert, em Budapeste. Eu teria ficado para a sauna e a massagem, sou fã:)
    Sobre tesouros arrancados, nunca vou esquecer o sufocamento que passei a Museumsinsel de Berlim ao deparar com o Pergamon e o Portal de Ishtar transplantados para uma construção fechada e centro-europeia do século 19. Arquitetura é arte do sítio, da implantação no ambiente. Pena que a Sanha imperialista arrancados tesouros de seus lares originais

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  3. *arranca tesouros de seus lares originais

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  4. PS. Sim, a cerveja tcheca é a melhor do mundo, e o por do sol sobre o Vltava um dos mais lindos que já vi. Sobre seu amor por Samarkand, suspeito que a cidade conecte seu Eu ancestral

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