Saturday 25 February 2023

Novas Fronteiras (VII) - Penjikent, Tajiquistão



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9/8/2018

Levantei com o Sol. Muita expectativa. Iria cruzar uma fronteira que vinha ansiando em cruzar desde 2003.

Mesmo chegando ao Registan antes das 7h da manhã, já havia turistas. Tiveram certamente a mesma ideia que eu — se deliciar com os monumentos antes do dia entrar em seu ápice e serem atropelados pelas legiões de visitantes e pelo sol de rachar. Os poucos madrugadores, porém, não atrapalharam minha contemplação e minhas fotos do lindo conjunto. Fiquei apenas cinco minutos. Então, parei um táxi. Empurrei a mochila para dentro. Seria uma jornada de mais dez minutos até um mercado próximo, onde então subi em uma van que me levaria por uma estradinha onde eu jamais estive, em rota de colisão com o sol.

O caminho estava dourado, o dourado delicado da manhãzinha.

Estava indo para a luz.

O vento entrava pela janela, fresco. Um cheiro de mato molhado. Atravessei áreas de pastos, pequenas vilas. A van chegou ao ponto final em uns 20 minutos. "É para lá, só seguir", disse o motorista.

Pé na estrada, contra o doce sol.

Vi a cancela, a casinha da nova fronteira se aproximando lentamente.

Eu estava tenso. O cenário me lembrou a travessia do Vale de Fergana uzbeque para o Tajiquistão em 2012; a mesma situação ocorreu, tive que caminhar os últimos metros pela estrada em uma área rural, sem ter ideia do que me esperava do outro lado. Daquela vez, do outro lado, não havia nada, apenas mais estrada e pasto dos dois lados — tive sorte de encontrar transporte pouco depois. E aqui, o que iria acontecer? Como seria a famosa divisa que ficou fechada por anos por causa da briga entre o finado presidente uzbeque Islam Karimov e seu vizinho, o presidente tajique Emomali Rakhmon? Karimov, que era conhecido pelo isolacionismo, não teve muito pudor em se afastar de Rakhmon, particularmente depois dos ataques no final dos anos 1990, no Uzbequistão, de um grupo islâmico baseado no Tajiquistão. A relação nunca melhorou de verdade. Dizem que há até hoje minas colocadas pelos uzbeques em trechos remotos da fronteira. Só com a morte de Karimov haveria distensão.

Esta é uma fronteira-chave, ao lado de Samarkand, uma das principais cidades uzbeques. Reabriu há alguns meses apenas. Eu esperava ver nela dezenas de pessoas, famílias divididas há anos, que deviam estar ansiosas para se rever. Acreditava que tudo seria especialmente rigoroso por aqui, na já compreensivelmente complicada burocracia de fronteiras, para evitar que contrabandistas aproveitassem o momento. Respirei fundo.

Ao lado da casinha da alfândega, em um muro, uma foto imensa saudava os visitantes. Eram os dois presidentes, Rakhmon e o sucessor de Karimov, Shavkat Mirziyoyev, se cumprimentando, sorrindo, com dizeres embaixo da foto exaltando a amizade entre os dois povos-irmãos. Nunca deveriam ter sido separados, mas, nos anos de Karimov, estavam mais distantes do que nunca.

Na pequena fila, tanto do lado uzbeque como do tajique, um clima que não era apenas cordial. Era leve, era alegre. As pessoas, esperando sua vez, estavam sorridentes, conversando entre si e com os guardas que as atendiam e verificavam seus documentos. Nunca vi uma fronteira assim. Passo a passo, fui contagiado. Quando chegou a minha vez, arrisquei algo que não conheço ninguém que tenha feito em sã consciência ao cruzar as temíveis linhas internacionais do Turquestão: simplesmente decidi oferecer ao guarda uzbeque que me atendeu um comentário sem ser convidado a fazê-lo. Seu uniforme não me intimidou em nada enquanto olhava meu passaporte. Aliás, ele sequer pediu os comprovantes de registro nos hotéis onde me hospedei no país, uma relíquia burocrática da URSS que o Uzbequistão ainda formalmente exige que o turista exiba na sua saída, mas que na prática está caindo em desuso.

"Nossa! Que maravilha que esta fronteira está aberta agora!", disse eu ao guarda, com um sorriso misturando incredulidade e alívio.

O guarda, que estava sério, olhando meu documento, levantou os olhos na minha direção. Seu rosto inteiro se iluminou, sorriso de orelha a orelha: "Sim! Não é mesmo uma beleza?"

O processo todo, nas duas fronteiras, não durou nem 15 minutos, nem mesmo o mesmo tempo da caminhada a pé desde o ponto final da van até o posto uzbeque da divisa. E, do lado tajique, um grupo pequeno e civilizado de taxistas esperava os que chegavam. Um deles me levou por mais 20 minutos até a cidade de Penjikent. Isso me impressionou. A cidade é tão perto de Samarkand! Tão perto! E tão longe das maiores cidades tajiques! Durante toda a história, os moradores de Penjikent sempre se deslocaram a Samarkand para fazer compras, para passear, para encontrar parentes, para viajar para outros pontos da região. Não consigo nem imaginar o suplício que era para seu moradores com a fronteira fechada. De Penjikent a Dushanbe, a capital do Tajiquistão, são pelo menos quatro horas de carro enfrentando montanhas altíssimas, buracos, curvas perigosas e enjoativas.

Reabrir as fronteira foi, enfim, uma festa: uma medida fácil para Mirziyoyev ganhar popularidade. A euforia tomou a capa dos jornais e sites. Eu mesmo fui procurado por jornalistas uzbeques, meus amigos, que quiseram me entrevistar para entender o que a mudança significava para um estrangeiro que viaja pela região. Minha reação: "Finalmente vou conhecer Penjikent!", disse, erguendo os dois braços e provocando risadas nos meus amigos.


* * *

Passada a alegria que mudanças bem-vindas trazem, sinais sinistros e familiares na volta ao feudo de Rakhmon.

"Assalam Aleykum", me surpreendeu um velhinho, repentinamente, quando eu estava prestes a atravessar a avenida Rudaki, a principal de Penjikent. Ele me desejava paz na saudação típica dos muçulmanos. Era mais baixo que eu; se vestia com um estilo claramente antiquado, saído dos anos 70, mas elegante: calça social cinza, camisa social sem gravata, colete marrom, uma boina. Impecável. Um olhar estranho, febril, fixo demais. Talvez tivesse problemas mentais. Evidentemente me reconheceu como estrangeiro, o que a mochila nas minhas costas não se preocupava em absoluto em esconder. Me pegou pelo braço, me afastou da beira da rua. Fiquei assustado, primeiramente, depois apenas curioso. Será que ele queria praticar o inglês dele? Me perguntar de onde eu sou? Contar (sempre bem-vindas) histórias do seu passado glorioso nos tempos soviéticos?

Uma vez que estávamos seguros na calçada, ele largou meu braço e colocou a mão dentro de um bolso no peito da camisa, atrás do colete de lã. Tirou dele uma carteira. A abriu. "Olha, olha isso!", disse, com uma excitação que impulsionava um leve tremor. De dentro da carteira com mirrados trocados amassados, tirou uma foto de seis por cinco centímetros, um santinho, de um homem de meia idade, com sobrepeso e semblante sério e orgulhoso, meio sorriso, terno e gravata. "Quem é ele? Quem é ele?", perguntou o velhinho para mim. "Ah! É o presidente do Tajiquistão!", respondi. "Muito bem!", reagiu, com um sorriso agora triunfal no rosto. Guardou o santinho na carteira, guardou a carteira no bolso. "Para onde você vai? Vai para as montanhas? É só seguir reto, descer a avenida. É só não sair dessa direção", disse, sem esperar nem eu perguntar. E antes que eu pudesse lhe agradecer da forma que gostaria, ele deu as costas e saiu andando na direção contrária. Nem se despediu.

Passos depois do insólito encontro introdutório, encontrei à beira da Rudaki um banco, um prédio de uma repartição do governo e outro prédio que nem sei do que era. Todos com grandes, imensos retratos de Rakhmon na fachada. Como em 2012 em Khojand e Dushanbe, como até em Khorog, no coração do Pamir. Ele é o dono e senhor desta terra. E ganha pontos o tajique que lembrar aos visitantes estrangeiros esse fato inescapável da vida no país. Afinal, sabe-se lá quem os estará vigiando.

Contudo, dizer que as coisas permaneceram exatamente as mesmas provavelmente é errado. Pioraram. De 2012 até agora, a já então massacrada oposição tajique sofreu um golpe ainda maior. Após a guerra civil que destruiu o país entre 1992 e 1997, um dos elementos-chave do acordo de paz era que uma agremiação chamada Partido do Renascimento Islâmico (PRI) seria incluída no governo do país. Uma número de cadeiras no parlamento estaria reservado ao partido. Era e é, até hoje, o único partido islâmico autorizado a operar legalmente em um país da Ásia Central da ex-URSS. Com o passar dos anos, Rakhmon foi aos poucos ampliando seu controle sobre o governo, estabelecendo cada vez mais o domínio absoluto das instituições. Até que, em 2015, após uma clara campanha de descrédito que alimentou o medo da população, o PRI foi declarado uma organização terrorista e jogado na ilegalidade. No exterior, o governo tajique tem pressionado nações com as quais mantém relações a entregar simpatizantes e membros do PRI. Dentro do próprio país, a obsessão com o secularismo leva policiais periodicamente a barbear à força homens que insistem em usar barba, mesmo que isso, usar barba, não seja necessariamente um sinal de ativismo islâmico. Prisões lotadas são palcos de massacres. A população do Pamir continua isolada, alvo da desconfiança do presidente. Enquanto isso, o líder prepara a perpetuação de sua dinastia, após ter conduzido o filho Rustam Emomali em 2017 à prefeitura de Dushanbe.

Segui para o mercado de Penjikent para almoçar, trocar dinheiro, comprar água e... procurar um banheiro. A última tarefa não foi tão complicada quanto eu esperava. Bastou encontrar um restaurante, no caso, uma casinha humilde na Rudaki que servia samsas, uma espécie de pastel local. Perguntei para a garçonete onde ficava o local do alívio. Ela sorriu, deu as costas, voltou com a chave, um rolo de papel higiênico que parecia uma lixa de parede e me indicou uma porta no fundo. Ela dava para o quintal, onde duas crianças de uns quatro anos brincavam com um velocípede sob o chão de terra batida. Não é à toa que a porta do banheiro era trancada: a latrina era um buraco no chão com excrementos quase até o topo. O fedor era tão imenso que quase me fez desmaiar.

Sob o lindo sol, o mercado não era nada como o de Samarkand, que havia sido completamente reformado e "higienizado" há alguns anos para que atrair os turistas. Era como o de Margilan, mas mais pequeno. Um bazar centro-asiático como deve ser: cores por todas as partes, nos véus e vestidos das mulheres, nas frutas, nas especiarias amontoadas nos pratos. Vi, por outro lado, certos detalhes que não cheguei a ver nem em Margilan, raridades nos tempos de hoje: um velhinho muçulmano com turbante e barba branca, indicando que fizera a peregrinação a Meca, saudado com reverência pelos mais jovens; duas meninas, de uns sete anos, usando chapéus coloridos típicos e inteiramente vestidas de seda (ou tecido copiando seda) colorida do tipo khan-atlas, desfilando sob o olhar orgulhoso dos locais entre as barracas, alegres, pululando, com duas tranças longas de cabelo negríssimo saindo de debaixo do chapéu. Circulavam olhando tudo, mas procurando especificamente material escolar. Passaram pela minha frente, nem perceberam minha existência. O mercado, como Penjikent, evocava o passado perdido da vizinha Samarkand: sem turistas, sem maquiagem, muito mais autêntico. Parei num canto, ao lado do velhinho com o turbante, que conversava animadamente com outro idoso, vozes finas, enquanto meus olhos fitavam as meninas que atravessavam o portão principal do mercado e lentamente desapareciam do meu campo de visão, pipocando entre os carrinhos cheios de vegetais. Aproveitei para tomar um pouco de água e encontrar a ladeira, à direita, onde eu teria que procurar o próximo transporte.

Havia um estacionamento poucos metros para baixo, à direita. Muitas pessoas vinham de carro até o mercado e o deixavam lá, mas o local também era usado como rodoviária informal de furgões que levam e trazem os moradores das vilas nas chamadas Montanhas Fan, que ficam por perto, e dos povoados no vale do rio Zerafshan (um afluente do grande rio Amu Darya que passa por Samarkand e à beira do qual fica também Penjikent). A principal linha de transporte público para as vilas das montanhas, a linha mais regular e confiável, usada pela maioria das pessoas, sai das montanhas cedinho e chega aqui ainda pela manhã, voltando na metade da tarde. Logo eu encontro o único veículo responsável pelo transporte, uma velha UAZ-452 preta com capacidade para umas 15 pessoas. Com um visual inconfundível, as UAZ-452 poderiam de forma simplificada ser chamadas de as "Kombis" do mundo soviético. Foram produzidas a partir de 1965 pela montadora Fábrica de Automóveis de Ulianovsky (de cuja sigla, em russo, é UAZ) e ainda podem ser vistas com alguma frequência na Ásia Central. Lembro de ter achado uma em Bishkek que estava sendo usada pela polícia. Contudo aquela UAZ quirguiz não se comparava com a que estava à minha frente em Penjikent. Calculei que o veículo era bem mais velho, deveria ser dos primeiros anos de produção, um legítimo exemplo da durabilidade dos produtos da era soviética. Ainda que, nesse caso, a durabilidade fosse mantida muito além do razoável.

Por dentro, o veículo dava medo. A barra de direção, conectando o volante ao motor, parecia ter sido consertada com fita adesiva na altura do volante. O rádio permanecia no seu lugar também com o auxílio de durex. Entre o motorista e o passageiro da frente, era possível acessar diretamente o motor levantando-se uma tampa. Eu fui o escolhido para ir na frente. Antes de partirmos, o motorista (um jovem coberto de manchas de graxa, da cabeça aos pés), trouxe uma garrafa de plástico, levantou a tampa do motor e virou água no radiador. Depois, bateu a tampa e acenou: dois moços jovens como ele atenderam o chamado e vieram se sentar em cima da tampa, entre eu e o motorista. Enquanto isso, o número de passageiros nos bancos de trás foi enchendo: muitas mulheres, crianças, até um bebê. Um sujeito chegou com uma bicicleta; o motorista saiu de seu lugar para ajudá-lo a amarrá-la em cima da UAZ. Muita força para amarrar, puxa a corda aqui, puxa acolá e pronto. Voltou o motorista a seu assento. Mais espera, mais meia hora, e o veículo foi enchendo mais. Apenas quando estava impossivelmente lotado, um completo absurdo, com crianças sentadas nos colos e adultos espremidos ao limite, o motorista sorriu e deu a partida. Se no veículo deviam caber confortavelmente 15 pessoas, contei 25 no início daquela jornada para as montanhas.

Saindo de Penjikent o veículo tremia, tremia demais. Especialmente na dianteira. No meu colo, eu levava minha mochila, abraçada como um escudo contra meu peito.

Eram 14h. A temperatura acumulada das últimas horas, que umedecia minha camiseta inteira, foi arrefecendo à medida que subíamos rumo à primeira parada, o vilarejo de Shing. Primeiro, pegamos a estrada principal, a que vinha da fronteira com o Uzbequistão, de asfalto, bem sinalizada. Em dado momento, saímos, pegando um caminho estreito de terra, à direita, apontando em direção aos picos distantes. Logo o caminho seguiria paralelo a um rio que surgiu, também chamado Shing. Ele tinha nascente nas montanhas e claramente se dirigia ao Zerafshan. As montanhas se apresentavam pouco a pouco completamente peladas, sem árvores, cobertas de pedras ocres ou, quando muito, arbustos; à direita, o rio estreito descia em corredeiras fortes, violentas, e criava, em trechos, regularmente, praias de cascalho. Em uma delas, ainda no início da estrada de terra, um grupo de garotos vencia o calor mergulhando nas águas. Que inveja.



O caminho foi piorando, fortes solavancos vinham mais e mais constantemente. A UAZ vencia com valentia cada buraco, e parecia que quem pagava mais caro por cada chacoalhão não era a máquina de Ulianovsky, mas o lombo de cada passageiro. Todo o cenário me lembrava enormemente o Pamir, do outro lado do país. A mesma sensação de estar indo para um mundo perdido, isolado. O rio violento, lá, era o Panj, aqui, este regato perdido, afluente do Zerafshan.

A maior parte dos passageiros desceu em Shing — que, pela janela, não era nada mais do que um amontoado de casas sufocadas pela poeira, nas encostas das montanhas, à beira do rio, nenhuma alma à vista. Parecia que os passageiros que desciam, assim como a vila em si, estavam prestes a desaparecer na poeira como se nunca tivessem surgido. E, de fato, o motorista deu a partida e rapidamente todas as senhoras com sacolas carregadas de legumes e suas crianças se enfiaram em alguma ruela que sequer percebi que existia. Mais pó se levantou quando o veículo voltou a andar. O aclive continuou, assim como o rio Shing, descendo em suas corredeiras.

Esta é uma região das Montanhas Fan conhecida como Haft Kul. O nome, em tajique, reflete seu principal tesouro: quer dizer sete lagos. Os lagos são formados pelo represamento do rio Shing em degraus de cada vez maior altitude. O primeiro vem logo depois do vilarejo; um corpo de água com algo como um quilômetro quadrado ou um pouco menos. Pedi para ser desembarcado na própria estrada já a caminho do segundo, em uma área alta com uma vista panorâmica do primeiro, ainda sem poder ver o lago que viria a seguir. A UAZ parou, abriu a porta, joguei a mochila em um monte de barro seco e pulei para fora. Eram umas 15h30. Sol forte. Felizmente, pela posição do sol, as montanhas faziam sombra sobre meu caminho, permitindo um aclive confortável com a carga nas costas. Infelizmente, sem sol direto, ficaria mais difícil ver a beleza dos lagos, como ocorreu no caso do primeiro.

Assim foi. O feitiço da água limpíssima das montanhas (de fato, um braço do Pamir) demorou a aparecer: não foi nem no segundo lago, que logo veio, muito perto do ponto de partida da caminhada, mas a partir do terceiro. Em uma área reduzida exposta ao sol desse lago, a água tinha virado um prisma, destilando os raios solares em tons de verde e azul escuro.

Pela estrada, foram cruzando pelo meu caminho os moradores da região, o misterioso povo das montanhas, com praticamente nenhum conhecimento de russo. Vinham lentamente pela estradinha, com um sorriso fácil e olhares de genuína curiosidade. Um espantoso contraste em relação a todos que já havia encontrado, mesmo no coração do Pamir, particularmente em termos de vestimentas. Encontrei algumas mulheres com crianças. Levavam roupas exuberantes de lã, tingidas com cores berrantes, predominância de vermelho. Tinham véus ocultando um pouco o rosto, mas não escondendo-o por completo. Eram vestidos ornamentados e grossos, uma resposta à temperatura mais fresca pela altitude. No terceiro lago, o termômetro já havia descido para não mais que 23 graus, muito menos à sombra, e esboçava despencar de vez com o anoitecer e o vento frio que já soprava, intermitente.

Fui acompanhando o caminho do rio Shing. Às 18h, cheguei a Nofin, uma vila entre o terceiro e quarto lagos. O frio a essa altura já tinha aumentado bem mais, exigindo o impensável em Penjikent — que eu tirasse da mochila um casaco e o vestisse. Também já estava começando a ficar escuro. Uma placa que encontrei indicava uma pousada e fui direto para lá, subindo por uma trilha à beira de um riacho que seguia para os lagos. O dono da pousada, um senhor pançudo de bigodes e olhar doce chamado GS, me recebeu literalmente com os braços abertos.

GS, uns 50 anos, vestido uma camisa social branca surrada e suja, mangas arregaçadas e calças penduradas no cinto escondido sob o barrigão, havia usado da melhor forma possível o vasto terreno do seu sítio. Tinha erguido três casas: em uma, ao meu lado, ficava a cozinha e era onde permanecia durante o dia ele e sua família; em outra, com dois andares, havia quartos de dormir amplos para os visitantes e seus familiares; e na terceira casa, um pouco separada das outras duas, à qual se chegava apenas atravessando um jardim, havia mais dormitórios apenas para turistas. Parecia fazer um bom dinheiro com os visitantes que usavam sua propriedade como base para ambiciosas voltas pelas montanhas ou apenas para ver os lindos lagos, como eu. "Se temos um quarto para você? Claro! E jantar também!", disse o empresário, bonachão e extrovertido.

Mas senti, tinha certeza, que havia algo oculto. Conversava comigo sob o olhar próximo e pouco amistoso de uma mulher que parecia ser sua esposa (meio escondida na sombra da cozinha) e de uns garotos jovens, que acreditei serem seus filhos. Falava russo excelente e procurava mostrar empatia, fazendo perguntas sobre minha jornada. Fala pausada, atenta, preocupada em ajudar, mas um tanto tímida. Nunca se aprofundava além das perguntas iniciais. Havia outras preocupações, imensas, em sua cabeça, mas, apesar disso, ele se esforçava em fazer bem seu trabalho com os turistas. O olhar estava opaco, como se afogado em lágrimas não derramadas. A cada duas frases, olhava para a mulher. Olhava para os filhos. Havia tensão. Havia muito que não podia ser falado.

Pensei em conversar mais, porém, ele me interrompeu com muita educação e indicou, ao lado, um tapchan onde estavam outros turistas, um casal de viajantes, americano e tailandesa, já pouco visíveis no lusco-fusco do anoitecer. Agradeci ao anfitrião, saudei os outros estrangeiros, dei as costas a GS e me sentei na plataforma. Quando fui ver, ele havia desaparecido dentro de sua cozinha escura. E a comida, carregada pela esposa e uma mulher que eu não tinha visto antes, chegou também nesse mesmo instante. Vegetais de vários tipos, cozidos, juntamente com pedacinhos de carne frita. Fatias de melancia.

Para manter a tradição, me lambuzei com a melancia. Um, dois, três pedaços. Deliciosos demais, doces, leves, cheios de líquido. Mas o dono da pousada não apareceu mais. Enquanto os turistas lembravam de como foi cruzar a fronteira e suspiravam com as memórias de Samarkand, eu me senti mais à vontade em silêncio. Pensando em GS, torcendo por ele.

Mazor-i-Sharif, 11/8, 12h40

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Thursday 23 February 2023

Novas Fronteiras (VI) - Samarkand, Uzbequistão



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8/8/2018

A água. Levemente acariciada pela brisa e protegida do sol pelas árvores e pela sombra do mausoléu. Peixes que hipnotizam. Sentado em um banco à beira de um aquário natural, eu estava cercado de serenidade. Passava um ou outro homem indo rezar na mesquita ao lado, me olhava com curiosidade. Eu era o único visitante. Tive sorte de encontrar este lugar, não havia nada que indicasse, na rua, que aqui estava este paraíso oculto.

Difícil acreditar que eu estava em Samarkand, uma das cidades mais inundadas por turistas do Uzbequistão.

Na verdade, o mausoléu Hoja Abdi Darun fica um pouco longe do complexo de prédios islâmicos Registan, a maior atração para os visitantes da cidade. Dá uma meia hora de caminhada, e o caminho é pela cidade velha — um labirinto de ruas todas parecidas, com poucas referências. O mausoléu, datado originalmente do século XII, mas reconstruído no século XV, divide o delicioso pátio interno com a mesquita. O pátio tem quatro árvores altas que marcam os vértices da linda piscina de pedra. Tais piscinas costumavam ser comuns no Uzbequistão antigo, hoje, são raras, sendo que a mais conhecida sobrevivente é a Labi-Haus de Bukhara. Esta tem água cristalina... e dezenas de peixes que, pelo formato, acreditei serem tilápias. Como a piscina fica na sombra, os peixes se tornam visíveis apenas nos pontos por onde chega a luz, filtrada pelas árvores e pela barreira da frágil fachada do mausoléu. Ele em si estava fechado; não me foi possível ver a tumba do santo enterrado embaixo do pórtico cedendo aos séculos, perigosamente inclinado, sob a cúpula azul, diretamente à minha frente, do outro lado da piscina.

Meia hora de silêncio. Então me levantei e fui enfrentar o sol da tarde.

Fora, do outro lado da mesma rua, um outro mausoléu. Bem maior, sem nada da fragilidade fascinante do anterior. Este mausoléu, chamado Ishratkhona, do século XV, jamais poderia fazer parte de qualquer excursão de turistas, pelo menos não no estado em que o encontrei. Estava literalmente em ruínas, a fachada e o interior, ambos obliterados por buracos, por desmoronamentos, pelo desgaste do tempo, por vandalismo. Vi que alguém iniciou o trabalho longo e complicado de restauro — há algumas escadas e paredes limpas e rebocadas. Todo o conjunto, externamente, foi coberto com um telhado de zinco para protegê-lo dos elementos. Os trechos das paredes que mostram seus detalhes restaurados trazem a incrível riqueza em azulejos azuis que o identificam como um tesouro de Samarkand. Sutilezas azuis com mandalas geométricas, rutilâncias douradas. Dos trechos em ruínas, elevou-se uma sensação de fantasmas me rondando.

No chão, uma escada semidestruída levava a uma cripta. Vendo de cima, lá dentro, apenas enxerguei escuridão, nada além disso. Senti um desejo instintivo de descer e explorar. Queria ter uma lanterna para ver melhor. Por fim, triunfou o bom senso — havia pedaços de pedra pontiagudos por todos os lados, na escada e no chão em cima também. A própria escada poderia ser ainda mais danificada com meu peso. Permaneci no meu andar. Circulando, encontrei outros cômodos no mausoléu. O salão principal, onde a luz entrava com mais facilidade. Mais paredes sobreviventes, em algumas delas um azul intenso, desbotado, mas ainda intenso.

Outra surpresa de Samarkand. Como pôde um local tão lindo e vetusto, tão próximo ao ponto mais visitado deste país, ter sido deixado decair a tal ponto? A pergunta me veio à cabeça e estava longe de ser uma reclamação. Pelo contrário, era um elogio. Que alívio foi ver ainda estes locais, o mausoléu Hoja Abdi Darun e o Ishratkhona, não totalmente "melhorados" pela sanha reconstrutora do governo uzbeque. O segundo me sugeriu a magia da descoberta. Como no Kyrk Kyz de Termez. Me senti um explorador do século XIX que, de repente, em uma missão em um país exótico, se encontra com uma colossal indicação do rico e ignorado passado da região e não sabe bem como reagir sob o feitiço de seu azul. Imaginei o mausoléu Ishratkhona semienterrado por areias e escombros, sendo revelado pelo explorador e sua equipe. Raros locais tão sugestivos resistem assim no Uzbequistão hoje, ainda mais em Samarkand. E, visto que há um trabalho de restauro em andamento, essa magia do Ishratkhona também está com os dias contados. Terão que fazer um teto novo, recriar paredes inteiras. E, depois, ele será visitado por ricos turistas alemães e americanos e legiões de excursões chinesas.

Ele sobreviverá ao teste do tempo por mais séculos, mas não mais será o mesmo.


* * *

Minha habilidade na negociação de preços tem melhorado: para viajar de Termez a Samarkand, cheguei ao ponto de saída das vans e táxis compartilhados às 7h30 com o objetivo de conseguir pagar no máximo 100 mil sums (aproximadamente US$ 10). Cercado de taxistas, intimidado, assumi minha persona charmosa e astuta, oferecendo a princípio 70 mil. O único que ia para Samarkand queria 125 mil. Fazendo piadas, lembrando o fato de eu ser brasileiro (ou seja, "pobre", não um americano ou um europeu) e puxando papo sobre futebol, o motorista por fim cedeu. Cem mil. O preço justo, pago por todos os outros três passageiros, todos uzbeques. Fiquei orgulhoso.

O motorista era um ser estranho. Parecia estar escondendo algo. Pouco depois de chegarmos a um acordo sobre o preço, ele me chamou para um canto. "Você provavelmente vai ter que mostrar seu passaporte em algum ponto da viagem", disse. "Estamos indo passar a fronteira". "Qual fronteira?", perguntei. "Não é internacional. É entre regiões do Uzbequistão. E talvez tenha que pagar, mas vai ser pouco", explicou, indicando que poderia haver policiais corruptos.

Nos preparativos para esta viagem à Ásia Central, me certifiquei de que não havia mais a necessidade de um visto ou autorização especial para visitar Surkhandarya, a viloyat (região administrativa) onde fica Termez. Até alguns anos atrás, por ser uma região de fronteira com o Afeganistão, era preciso ter uma autorização especial para conhecer a cidade. Embora isso tenha caído por terra, o que permanece é algo que sinceramente não esperava que me afetasse: as regras que dificultam a imigração interna de uzbeques. É um legado dos tempos soviéticos que o presidente Mirzoyev prometeu eliminar. Segundo uma dessas regras, se um uzbeque que mora em uma região quiser migrar para viver em outra região, precisa ter autorização do governo. Essa autorização é emitida de uma forma meio obscura. É mais fácil obtê-la se você tiver contatos na região onde você quer viver, e, claro, os mais ricos têm vantagem ao poder subornar os funcionários responsáveis pela burocracia. Outro legado soviético é a exigência de algo semelhante a um "passaporte interno" para pessoas que queiram se deslocar de uma região a outra. Essas regras criaram um sistema perverso que há muito mantém ilhas de pobreza no país e gerou distorções: áreas que sofrem com desemprego enquanto outras procuram trabalhadores para preencher as vagas que têm e que poderiam ser ocupadas por esses mesmos uzbeques que moram em outras regiões. O fim do sistema já foi cogitado, mas sempre enfrentou resistência. Há o temor de que ele leve a uma migração interna descontrolada ou que o governo perca a capacidade de estabelecer estratégias para desenvolvimento econômico regional. E, claro, há o medo, nunca explicitado, de que uma rica fonte de subornos seque.

Me parecia evidente que o medo do motorista neste caso era encontrar um policial interessado em explorar essas leis em troca de dinheiro fácil em algum posto de fiscalização entre Surkhandarya e Kashkadarya, a próxima região ao norte, a caminho de Samarkand. Entretanto, o que o motorista me falou a seguir me fez desconfiar de que havia algo mais, de fato, outro motivo para ele se preocupar com a polícia. "Vou levar um amigo na viagem, espero que você não se importe. Teremos que fazer uns desvios no caminho. Ele tem umas coisas a resolver em Samarkand". Deu alguns detalhes em um russo macarrônico. Respondi simplesmente que, se eu fosse desembarcado em Samarkand pagando o preço combinado pela viagem, tudo bem.

Durante a jornada, realmente tivemos que parar na saída de Surkhandarya. Foi em um posto de fiscalização, uma casa cercada de altas montanhas sem árvores, terra clara, sol ofuscante, sem nuvens, vento seco e fraco, incessante e quente. No estacionamento do posto, eu e outros três passageiros, inclusive o amigo do motorista, fomos obrigados a sair do veículo e entrar na casa, passando por vários corredores no seu interior, todos vazios. Parecia um posto de fronteira internacional. Imaginei que, dependendo do estado da insurgência no Afeganistão, ou da relação entre o conturbado país e este seu vizinho do norte, as autoridades uzbeques devessem ocupar esta casa com policiais para praticar o escrutínio máximo nas cargas e bagagens. Mas não naquele momento. A única presença de guardas foi a enfrentada pelo motorista do nosso carro, que havia permanecido no veículo. Os policiais presentes o fizeram descer do veículo para checar displicentemente seu interior. Porta-malas aberto. Nos aproximamos, eu e os outros passageiros, já depois de termos saído da casa. No momento em que chegamos a uns dez metros de distância, o motorista já estava todo sorrisos. Conversava com o guarda com gracejos, risadas. O guarda ria timidamente. Depois ajeitou o quepe, fez um gesto de "pode ir" com a mão direita e deu as costas, foi para o próximo carro da fila.

O motorista olhou na nossa direção e se aproximou. Sorriso aliviado. Muito aliviado.

A viagem prosseguiu nesta que é uma das regiões com provavelmente mais impacto histórico do Uzbequistão. Ao lado da estrada, as paredes de pedra nua anunciavam a localização provável de um ponto de passagem importantíssimo. O chamado Portão de Ferro, um vasto desfiladeiro por onde Alexandre, o Grande e depois os árabes invasores do século VIII tiveram que passar nas suas conquistas da Ásia Central. É a fronteira natural entre a região do rio Amu Darya e do norte do Afeganistão, centrada na histórica cidade de Balkh (hoje eclipsada por Mazar-i-Sharif, a cidade mais importante do norte afegão) e a região de Sogdiana, terra do povo de mesmo nome, o povo das construções fortificadas como o Kyrk Kyz, um povo valente que costumava teimar em não se alinhar a grandes impérios. A passagem quebra as montanhas Hissar, um braço do maciço do Pamir e, em dado momento, de fato teria tido um portão de verdade que impedia a passagem dos viajantes não autorizados pelo monarca da vez, embora não se saiba muito, nem mesmo se era de ferro mesmo. Sua localização exata também é motivo de debate, mas acredita-se que ficasse em um vão de três quilômetros de extensão por onde vamos a toda velocidade. O que sim é fato é que o lugar, também conhecido como "portão de ferro de Sogdiana" é citado em inúmeras fontes históricas, o que atesta sua imensa importância como divisor de mundos.

Ainda se passaram mais algumas horas de estrada e muito sol até Samarkand. Os desvios, esperados após a advertência do motorista antes da jornada, começaram a acontecer. Chegamos à cidade, mas, em vez de ir em direção ao centro, pegamos um pouco da estrada para Tashkent, saindo novamente de Samarkand. Logo paramos em um ponto no acostamento da estrada. O motorista fez uma ligação com o celular e iniciou uma conversa nervosa, com frases curtas e rápidas, aos berros. Era uzbeque, não entendi nada. Parecia estar dando instruções para alguém. Depois da ligação, o amigo dele, sentado no banco da frente ao lado do motorista, tirou de uma sacola que levava uma quantidade grande, assustadora, de notas de mil sum, em grossos maços — calculei que era algo entre US$ 100 e US$ 200. O dinheiro foi colocado em cima do painel do carro e ficou lá, cozinhando na luz filtrada pelo para-brisa, mais uns 15 minutos, até o receptador aparecer em uma visita relâmpago. Chegou do nada, esperou o motorista e seu amigo saírem do carro, os cumprimentou, pegou o dinheiro, colocou em uma sacola e desapareceu.

Sem falar nada, o motorista e o amigo entraram no carro. Trocaram olhares. Sorriram. O motorista tirou do bolso da camisa o maço de cigarros, acendeu um, prendeu a fumaça no pulmão por uns cinco segundos e a soltou numa longa baforada pela janela aberta. Disparamos para Samarkand.


* * *

Cada jornada pela Ásia Central é uma busca por Samarkand. Talvez não exista nenhum outro lugar na Terra que soe tão peculiarmente tentador como este, tão carregado de isolamento, emoção e uma pitada afrodisíaca de perigo.
— Geoffrey Moorhouse, Apples in the Snow, 1990

Gloriosa como sempre, como sempre ensolarada, assim me recebeu Samarkand pela terceira vez. Cheguei no meio da tarde.

Uma mudança que logo notei foi, claro, a nova estátua colocada no parque ao lado do Registan. Não lembrava de nada especial em relação a esse parque, que atravessei com pressa nas visitas anteriores quando estava tentando aproveitar ao máximo meu tempo com os grandes tesouros na capital de Tamerlão. Mas, agora, havia lá uma estátua, e, ao redor dela, algumas pessoas se reuniam. Umas, apenas a olhavam. Outras três tinham câmeras e tiravam fotos. Era a estátua de Islam Karimov, o finado primeiro presidente uzbeque, falecido em 2016, um dos filhos mais ilustres de Samarkand. Estranho vê-lo como uma estátua. Em anos anteriores, me chamou a atenção como Karimov não aparecia em homenagens a ele nas ruas — em vez de estátuas do líder, havia apenas estátuas de Tamerlão. Em vez de cartazes com fotos de Karimov, apenas grandes outdoors com frases atribuídas a ele. Mais ainda do que verificar as mudanças no país desde sua saída de cena, está sendo interessante verificar como seu legado está sendo encarado pelo povo que ele controlou com mão de ferro de 1989, antes mesmo do fim da URSS, até sua morte.

Vista a estátua, me registrei em um hotel barato para mochileiros que surpreendentemente resiste ao lado do Registan. Uma casa tradicional, com um pátio com muita sombra e tapchans, as camas-mesas uzbeques, onde encontrei viajantes sem muito dinheiro trocando dicas e impressões. Uma anomalia em um país em que cada vez mais o turismo massivo, de ônibus de excursão e turistas endinheirados, dita os rumos das cidades mais visitadas. Cheguei e os donos do hotel, apesar de estarem abrigando tanta gente, me receberam com um prato com fatias de melancia, chá e pão. Me reclinei sobre as almofadas de um tapchan e respirei, olhando os raios de sol atravessando as trepadeiras do pátio interno. Em outro tapchan, vizinho, dois ciclistas conversavam animadamente com um mochileiro, que fazia perguntas sobre o roteiro deles. Os ciclistas estavam dando uma volta pelo Uzbequistão e cogitando ir para o Tajiquistão, mas diziam que haviam cancelado os planos depois do ocorrido em território tajique. No dia 29 de julho, um grupo de ciclistas estrangeiros foi atacado no sul do país por aparentes ativistas islâmicos; quatro morreram. Muito raros são os ataques a estrangeiros nesta região, mesmo os crimes comuns de roubo ou furto são bem pouco frequentes. Ataques islâmicos são ainda mais raros (apesar da proximidade com o Afeganistão), o que fez com que o crime, atribuído a gente ligada ao Estado Islâmico, causasse grande alarde. Eu mesmo poderia ver isso como motivo de preocupação, visto que vou para o Tajiquistão em breve, mas entendi o ocorrido como uma exceção. Além disso, não posso imaginar que tamanha afronta ao regime autoritário tajique, sedento por dólares do turismo, fique impune e não leve a uma massacrante resposta contra inocentes e talvez coniventes da região, o que certamente deve neutralizar qualquer novo ataque contra visitantes por um longo período. Os ciclistas que encontrei também não pareciam muito preocupados. Falavam de uma maneira descontraída, não com medo nem susto na voz. Apenas acontece, esse tipo de coisa acontece, disseram. Mas, desta vez, melhor não ir, melhor ficar no Uzbequistão. E voltaram a conversa para o que já haviam visto de maravilhoso no país. O outro viajante, um português, sorriu e acrescentou suas sugestões de destinos uzbeques. Eu preferi não participar da conversa. Apenas ouvia e me lambuzava com a melancia, cujo suco escorreu pela minha barba e pingou em minha camisa.

Tomei coragem de rever o sol uma meia hora depois. Espantosamente, há muitos lugares nesta cidade que ainda não conheço. E não seria hoje que veria todos.

Ao lado do mausoléu de Tamerlão, o Guri Amir, há um outro mausoléu, bem menor, escondido atrás do muro traseiro do complexo. É chamado de Ak Sarai. Do lado de fora, não há nada de excepcional — a fachada típica de mausoléus, portal e cúpula de tijolos, claramente reconstruída e sem sequer azulejos decorativos. Como o Guri Amir, pode ser visitado apenas por aqueles que compram um ingresso. E poucos, depois de se cegar com a riqueza das paredes do mausoléu maior, têm ânimo para ver o menor. Mas deveriam. O administrador, um jovem com barba rala vestindo camiseta da Nike, bermuda com camuflagem militar e sandália, um sujeito que poderia ser confundido com qualquer um nas periferias do Brasil, ficou felicíssimo em me ver. Falava um pouco de inglês e fez questão de me acompanhar. Entramos e encontramos uma antecâmara vazia, paredes brancas, nada para se ver nos tetos ou nos cantos, nem sequer outros visitantes. "Calma, é para cá, à esquerda", disse, sorrindo, apontando para uma porta atrás de uma barreira de madeira.

Era outra câmara. Radiante.



O teto do pequeno mausoléu tem ouro em uma profusão de padrões geométricos em tal escala que pode deixar qualquer um tonto. Em termos de ouro, encontra rivais em Samarkand provavelmente apenas na madrassa Tilla Kari do Registan e no próprio mausoléu de Tamerlão. Difícil descrever os desenhos. Conchas ou rabos de pavão ou leques, caligrafia árabe, pétalas. Lágrimas. O ouro e o azul escuro, linhas que se movem estando paradas. O administrador não conseguia conter o orgulho. Os outros visitantes, poucos, pareciam, como eu, sem palavras. Tão bonito quanto o Guri Amir, como é possível? "Mas você ainda não viu o segredo", novamente interrompeu o administrador, com uma risadinha. "Aqui. Coloque os pés aqui. Isso. Não olhe para o teto ainda. Agora. Olhe agora!"

À minha frente, os dois olhos de um monstro, um gênio, um demônio. Me fitavam, ameaçadores, aflorando de seu esconderijo em meio à decoração.

A história do Ak Sarai é interessante. Data do período de decadência da dinastia timurida, na segunda metade do século XV, muito depois da morte de Tamerlão. Naquele tempo, os timuridas enfrentavam a si mesmos num processo que preparava sua eliminação do trono centro-asiático. Os timuridas então se dividiam em dois sub-reinos, com duas capitais, Samarkand e Herat, cidade no atual oeste do Afeganistão. Perdendo terreno e riqueza, o então rei em Samarkand, um descendente de Tamerlão chamado Sultan Ahmed Mirza, se viu diante de um problema. O mausoléu Guri Amir já não tinha mais espaço para guardar os restos de membros da família real e de seus fiéis assessores. Assim, decidiu-se construir o Ak Sarai, logo ao lado. Mas, com a falta de recursos, ocasionada ou talvez agravada por corrupção na corte, o mausoléu nunca foi completado; o exterior foi, exatamente, o que faltou decorar, já que Mirza priorizou o suntuoso interior. Poucos foram enterrados nele, nem mesmo, ironicamente, Mirza, que foi levado para Herat. O mais famoso ocupante é o infame Abdal-Latif Mirza, filho de Ulug Bek, neto de Tamerlão. Mirza se eternizou na história pelo assassinato do próprio pai, mudando o destino dos timuridas de Samarkand.

O administrador explicou que foram longos anos de esforço paciente de restauradores, usando técnicas seculares, até que aqueles olhos do monstro no teto, aquela luz amarela riquíssima, voltasse a aflorar. Nem tudo foi revivido, porém. Em um canto, na parede abaixo, entre superfícies cuidadosamente rebocadas e pintadas de branco, se vê um trecho em estado miserável, com pedaços de azulejos. Aparentemente, a câmara era ainda mais suntuosa: a riqueza do teto descia até o chão. Mas, nas paredes, tal era o estado de dilapidação do mausoléu que se avaliou que não compensaria o esforço de reconstruir. Manteve-se esse buraco na parede como testemunha. Lembrou-me um outro Ak Sarai, o palácio de Tamerlão em Shakhrisabz, onde a monumental construção tampouco foi recuperada. Foi mantida congelada, tal qual foi encontrada pelos restauradores, como testemunha da tortura do tempo.

Novamente, fui atacado pelo constante incômodo que sinto com a excessiva recuperação dos monumentos de Samarkand. O Ak Sarai de Samarkand é deslumbrante, mas me pergunto se um dia foi realmente assim, tão maravilhoso. Que bom que o buraco foi deixado.

Também do lado do Guri Amir, mas bem visível, sem muros, há um outro mausoléu, ainda menor que o Ak Sarai, que eu também nunca tinha notado. Chama-se Rukhobod. Fica dentro de um mercado de artesanato em frente ao mausoléu de Tamerlão. No formato de um cubo de tijolos, sem azulejos externos e com três portas, o Rukhobod não chama a atenção, não tem riqueza decorativa. Seu tesouro é mais sutil.

Verificando as paredes peladas, notei que em algumas partes havia o que pareciam ser pichações em caracteres árabes. À primeira vista, julguei que fossem de turistas. Evidentemente, não fazia muito sentido; em um local com tantos turistas e levando-se em conta a importância que as autoridades uzbeques dão a seu patrimônio histórico, tais pichações já deveriam há muito ter sido apagadas. O mausoléu poderia ser modesto, mas tinha clara importância histórica — trata-se de uma edificação erguida em 1380, ou seja, contemporânea de Tamerlão. Mais que isso. Segundo as crônicas, o mausoléu teria sido construído por ordens do próprio conquistador sobre a tumba de um sábio islâmico, Xeque Burhaneddin Sagaradzhi, muito admirado pelo próprio Tamerlão e conhecido por espalhar o Islã pelo oeste da atual China. Sagaradzhi, cuja data exata de morte não é conhecida, casou-se com uma princesa chinesa e por isso tinha alguma influência na corte da dinastia Yuan, aquela que surgiu a partir da conquista mongol da China (e da qual o mais ilustre monarca foi Kublai Khan). A arquitetura modesta é incomum pelo fato de não ter um portal, o que se esperaria em um local erguido para alguém tão importante. Entretanto, novamente não se sabe ao certo por que tal estilo foi escolhido. Coroando os mistérios, há a lenda de que nas paredes do mausoléu teriam sido escondidos pelos da barba do Profeta Maomé, que estavam em posse de Sagaradzhi.

Mas não há charada maior no Rukhobod do que as inscrições nas paredes. Cocei a cabeça olhando os caracteres gastos. Um amável senhor idoso que estava sentado em um canto, curioso, se aproximou. Me saudou e, sem que eu pedisse, me disse que eu estava em um lugar muito importante. "Aqui está enterrado o professor de Tamerlão", explicou. Possivelmente um erro: há quem diga que o sábio morreu no século X ou na metade do século XIII (em ambos os casos, longe do período de vida de Tamerlão). Por outro lado, o lendário viajante Ibn Battuta, no seu diário de viagem, afirmou que que Burhaneddin Sagaradzhi era o chefe da missão muçulmana na corte Yuan na década de 40 do século XIV, o que explicaria seu envolvimento com a princesa. Nessa mesma época, Tamerlão era ainda muito criança e dificilmente teria tido acesso a educação com alguém tão qualificado. Além disso, Sagaradzhi teria morrido na China, o que reforça ainda mais a impressão de que, embora conhecido e admirado por Tamerlão, estava distante e não foi seu professor. Sem contradizer o idoso, lhe perguntei sobre as enigmáticas inscrições nas paredes. Nesse caso, sua resposta pareceu fazer todo o sentido. "Esses são trechos do Corão. Foram escritos por fieis em homenagem a ele", explicou. Não seria possível jamais apagar frases do Livro sagrado.


* * *

Sinto uma conexão muito grande com minha primeira viagem a Samarkand, em 2003. Daquela vez, cheguei à cidade com dois franceses que seguiam para o Tajiquistão pela fronteira próxima à cidade, a fronteira que, durante muitos anos, esteve fechada e só voltou a reabrir com a morte de Karimov. Em 2003, eles seguiriam para Penjikent, a primeira cidade tajique do outro lado da linha internacional; eu, para Namangan, no Vale de Fergana. Na última noite, tivemos uma despedida inesquecível com um jantar em um restaurante ao qual nunca mais voltei, perto do Registan. No dia seguinte, nos despedimos na rua, eles embarcando no táxi que os levaria até a fronteira. Nunca mais nos vimos ou nos falamos. Uma intensa amizade enquanto durou, que me ensinou os primeiros passos da exploração da Ásia Central. E que criou em mim aquela centelha de querer atravessar a fronteira para o Tajiquistão. Amanhã, farei precisamente o que eles fizeram, seguirei para Penjikent. Nada mais justo do que me despedir do fantasma de 15 anos atrás naquele mesmo restaurante da última janta com os franceses. Hoje, o reencontrei.

Um lugar difícil de entender, o Café Labigor. Fica realmente bem perto do Registan. Tem uma decoração incrível de azulejos e colunas replicando o estilo das madrassas milenares, tapchans relaxantes e um segundo andar com vista para a agitada rua do Registan (Registan Kochasi). Sentei-me no andar de cima e tive sorte de conseguir uma mesa vendo a calçada e as vans indo e vindo no anoitecer. O calor já diminuía, com o vento que vinha leve da rua. Ao meu redor, poucos turistas. Vi mais aqueles que eram claramente locais, com as roupas surradas após o dia de trabalho, talvez comerciantes que tinham suas lojas nas redondezas, talvez motoristas de vans e táxis, todos aqueles que vivem do dinheiro dos visitantes de longe. Achei difícil entender por que o Labigor tinha poucos turistas. O motivo, porém, logo ficou claro logo. O local estava uma bagunça; muitas mesas estavam sujas, esperando para serem trocadas. Os três ou quatro garçons cuidando dos dois andares passavam esbaforidos, esbarrando nas pessoas, que escolhiam elas mesmas onde se sentar. Os garçons estavam precisando urgentemente de mais companheiros para ajudá-los. Me veio um menino, literalmente; devia ter uns 14 anos. Gordinho, suado, com um pano branco sujo deitado sobre o ombro, a roupa suada de tanto vaivém. Anotou displicentemente meu pedido (nem precisei olhar o cardápio, pedi sem titubear laghman, o macarrão com sopa típico daqui, o mesmo prato da noite de despedida em 2003). Também pedi uma cerveja. Sequer olhou para mim. Desapareceu desfalecido, correndo por pura inércia para outra mesa que esperava para fazer pedidos ao lado. O menino era um zumbi. Senti pena.

Ele esqueceu na mesa o cardápio e dei uma olhada. Uma folha plastificada com pouquíssimas opções; basicamente saladas, laghman e shashlik, carnes no espeto. Preços bastante razoáveis. O gordinho me reapareceu como um raio pouco depois; trazia um pão non de vários dias (duro de partir, emborrachado por dentro, sem gosto, sem cheiro) e a cerveja — uma linda caneca suada, com o líquido excelente de uma marca que nem sei. Desceu pela garganta me causando imenso prazer.

Na rua, tudo mais escuro. As luzes dos carros já iluminavam mais que o sol se despedindo.

E a comida chegou pouco depois, não mais que uns cinco minutos. A sopa com macarrão. Estava fervendo. Mergulhei o pão e fui enfrentar o calor do líquido. Estava com uma pequena lagoa de óleo na superfície. Em resumo, o laghman era óleo e água quente com pedaços de carne que eram pura gordura, branca, como vi nos mais inesquecíveis jantares do Pamir e mais recentemente em Termez. O macarrão estava cozido demais, sem gosto, sem sal nenhum. Pedi um saleiro e a pimenta; o gordinho os trouxe, os frascos estavam pegajosos e praticamente vazios, tinham apenas uma caspa para realçar a triste, tristíssima comida.

Um dia, um empresário vai perceber o potencial do Labigor. Vai investir em mais garçons, em um cardápio mais ao gosto dos turistas e triplicar os preços. Mas que ele não mude jamais a cerveja.

Um brinde, meus amigos franceses. Aqui, 15 anos depois, seguindo seus passos.

Pandrud, 9/8, 21h50

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Sunday 19 February 2023

Novas Fronteiras (V) - Termez, Uzbequistão



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7/8/2018 (Continuação)

Após a manhã intensa, com a visita ao conjunto arquitetônico Sultan Saodat, o banquete inesperado no mausoléu e khanaka Kokildor Ota e a misteriosa ruína Kyrk Kyz, voltei ao hotel. Era por volta do meio-dia e havia uma forte névoa no centro de Termez. Era uma cerração que me lembrou a das montanhas da Serra do Mar entre a cidade de São Paulo e o litoral; mas, neste caso, quente, seca, dolorosa de se respirar. Na avenida Al-Termizi, ela cobria a torre do relógio que é um reconhecido ponto de referência na cidade. Uma mistura de areia, vapor, poluição, fantasmas. Abafadíssimo. Tomei um banho, liguei o ar condicionado no máximo e me joguei na cama.

Às 16h, quando acordei, a névoa tinha se dissipado. Voltei à região vizinha ao Fayoz-Tepe para visitar um famoso mausoléu e identificar o local correto de onde parte o transporte rodoviário rumo a Samarkand, para onde eu seguiria no dia seguinte. Não me preocupei muito com o adiantado da hora. Apesar de serem já quatro da tarde, o sol tardaria em se pôr, apenas por volta das 19h, o que certamente me daria tempo para fazer o que planejava. O táxi seguiu por uma longa avenida até que ela virou uma rodovia (aparentemente, a principal rumo ao norte). Nesse ponto, o motorista não quis seguir. Disse que ficaria muito complicado para ele fazer o retorno. Explicou que o mausoléu não ficava longe, um quilômetro adiante. Desci e comecei a caminhar.

À beira da rodovia, do lado direito, ficava a periferia de Termez — casas simples agrupadas em ruas limpas, mas sem nenhum charme. Aquele era um bairro na certa urbanizado pelos soviéticos, ocupado por pequenos produtores rurais e trabalhadores com empregos no centro de Termez. Ruas desertas, nenhuma criança jogando bola. Tudo vazio. Do meu lado esquerdo, os carros, caminhões e ônibus passavam a milhão. O vento e a trepidação me jogavam para o lado. O barulho repentino dos motores se aproximando e se distanciando me irritava. Em dado momento, encontrei uma rua que saía diretamente da estrada e entrava no bairro. Ao fundo, no fim dessa rua, vi uma plantação. E, no meio da plantação, o que parecia ser uma grande colmeia, gigante, de pé. Era uma estupa budista de séculos atrás.

Foi uma surpresa. Durante a breve visita ao museu ao lado de Fayoz-Tepe, em um momento em que meu guia ficou um pouco calado, em um cartaz li a respeito de uma outra estupa que ficava na região, igualmente antiga como a de Fayoz-Tepe, igualmente um milagre de sobrevivência aos rigores do tempo. Havia fotos no museu, e não foi difícil reconhecer o que estava vendo agora, no fim daquela rua. Não esperava encontrar a estupa, não era meu objetivo. Mas, agora, para mim não havia outra coisa a fazer. O magnetismo era forte demais. A construção ancestral, calculei, ficava a mais ou menos um quilômetro de onde eu me encontrada. Arrogante, julguei que meu cálculo de distância era à prova de erros. Logo, saí da estrada. Segui firmemente rumo à estupa, em marcha vigorosa, sem pestanejar, já calculando quanto tempo teria depois para ver o mausoléu que queria visitar em seguida. Ainda havia muito tempo. O sol estava forte, bem acima do horizonte. Que alívio me afastar dos caminhões irritantes na rodovia.

Estranhei não haver placas indicando o caminho da estupa para os turistas. Mas lá estava ela, acenando. Venha, venha.

A rua logo terminou na plantação, que era de algodão, o principal produto agrícola do Uzbequistão. Não havia nenhuma trilha a seguir. A estupa estava então a uns 100 metros de mim, com alguns detalhes de sua superfície já tentadoramente visíveis. Para alcançá-la, não parecia haver nenhuma outra escolha a não ser me embrenhar na plantação. Pensei em desistir. Claro que, em seguida, a imprudência se impôs de forma irresistível. Venha, venha, dizia o monte de barro.

A terra da plantação, pelo caminho que segui entre uma fileira de plantas e outra, estava encharcada. Me afundei até a canela várias vezes na lama. Os pés de algodão estavam altos, seus ramos me impediam de ver bem onde estava colocando os pés. Foi um inferno levantar e abaixar as pernas naquele mar pegajoso e sujo, arruinando minha calça, minhas meias, minhas botas, com medo de perder o equilíbrio e acabar mergulhando de cabeça na terra. Foram-se dez minutos só na plantação. Já estava a meros 50 metros da estupa. Pensei: agora que comecei, nada me fará voltar atrás.

A plantação logo acabou; entre eu e a colmeia gigante, encontrei um profundo canal de irrigação, cheio de água, com uns dois metros de largura. Impossível pulá-lo. Impossível andar nele sem me molhar completamente.

Por onde passar? Vi do outro lado do canal um lavrador com uma enxada. O chamei para pedir uma sugestão. Ele coçou a cabeça... e me pediu para segui-lo até um ponto mais estreito. Enfiou a enxada no fundo do canal, nesse ponto onde a água não estava muito profunda, e usou o cabo como apoio para pular para o meu lado. Emprestou a enxada para mim e sugeriu que eu fizesse o mesmo. Parecia simples! Lá fui eu para o meu salto com vara improvisado. Evidentemente, a conclusão foi bastante infeliz. A água chegou até quase minhas coxas. Antes eu estava com as pernas cheias de lama. Agora, elas estavam encharcadas (e ainda com lama). No entanto... ei-la! A estupa. Imponente, à minha frente.

Chama-se estupa de Zurmala. Novamente, como o sítio de Fayoz-Tepe, trata-se de uma relíquia dos tempos de domínio kushano, provavelmente do século III ou IV, feita de tijolos de barro. Claramente a estupa foi um dia uma construção imponente, mais até que a estupa de Fayoz-Tepe; o que permanece de pé, como um monte desfigurado, tem 13,5 metros de altura. Originalmente, teria sido erguida em uma plataforma que agora jaz sob a terra. Há quem diga que é a edificação mais antiga ainda de pé no Uzbequistão — algo difícil de certificar, especialmente comparando-se com Kara-Tepe ou Fayoz-Tepe. Mas, enquanto esses outros sítios foram recuperados e preservados, a estupa de Zurmala parece destinada a desaparecer, tal seu estado avançado de desgaste a céu aberto. Além disso, seu isolamento indica que não há muito interesse em mudar isso. Ao redor da construção, encontrei uma calçada de concreto, um caminho quadrado perimetral para se caminhar, emoldurando todo o monumento. Em um ponto da calçada, havia uma placa, indicando que a construção do caminho perimetral e a preservação da estupa (o que quer que signifique preservação neste caso) haviam sido investimentos do Japão. Louvável esforço, mas um tanto quanto surreal: a calçada permitia ver com conforto a estupa, mas lamentavelmente ninguém parece ter pensado em como chegar a ela. Todo o terreno ao redor é de plantações. Confirmei que, para chegar à calçada, só havia mesmo um jeito, apenas atravessando os campos de algodão, o que, eu já havia descoberto, é bastante desconfortável.

A estupa apresentava uma superfície externa nua, puro barro seco. A visão que eu havia tido à distância, indicando possíveis inscrições, foi pura ilusão de ótica. O tempo foi muito inclemente com a estrutura, como havia sido com a sua irmã em Fayoz-Tepe. Fiz uma verificação minuciosa. Fui circundando o monumento, caminhando pela calçada, olhando a superfície dela de cada lado. Atrás, até então escondido de mim, havia uma espécie de gruta ou nicho onde, acreditei, antes ficava a imagem do Buda. Era escuro, não era possível ver o seu fundo de onde eu estava, na calçada.

Peguei minha lanterna na mochila. Me aproximei.

Zanzando pelo ar, passando perto de minhas orelhas, vespas. Parei um pouco. Meu dedo ainda estava inchado da picada no primeiro dia da viagem. Fui devagar, tentando não assustar os insetos, não fazer movimentos bruscos. Acendi a lanterna; mirei o fundo da gruta, eu estava a uns dois metros de sua entrada. Concentrado em inspecionar o buraco, senti um rasante ainda mais ousado de uma vespa em minha orelha e me assustei. Nisso, de novo, o movimento instintivo de afastar o inseto com a mão.

De novo, outra picada.

Dei urros e pulos de dor e de raiva ao mesmo tempo. Não sei qual, raiva ou dor, era maior. A picada havia sido desta vez na outra mão, não a que tinha sido o alvo dos demônios voadores antes. O inseto agora havia aterrizado nas costas da minha mão esquerda. Malditas, malditas vespas. Fechava os olhos e trincava os dentes de dor, depois abria os olhos e olhava para a maldita estupa. Com roupa molhada, enlameada, provavelmente cheio de agrotóxicos da plantação e, agora, com a mão latejando e rapidamente inchando. Dei as costas àquela estupa dos infernos e, sem nenhuma opção, refiz o mesmo percurso que fizera para chegar. Mais água, mais lama.


No total, de volta à estrada, havia gasto o dobro do tempo que esperava gastar na aventura. O sol já estava bem mais baixo, era o meu último dia em Termez, e eu ainda tinha que ver o famoso mausoléu de Al-Termizi, um dos motivos que me haviam trazido à cidade. Acelerei o passo com a luz poente, que estava incidindo diretamente sobre meu rosto.

A estimativa de distância do taxista havia sido claramente otimista demais. Mais uma meia hora se passou até finalmente aparecer a entrada do complexo, do outro lado da rodovia. Depois, por mais uma via saindo da rodovia principal, passado esse primeiro portal, surgiu um caminho triunfal emoldurado com altas árvores. Nesse trecho, foram mais uns 20 minutos de caminhada. Então surgiram mais dois portais, o segundo parecendo o portão de uma cidade murada, abrindo caminho através de grandes fileiras de pedras criando uma muralha bege. Pareciam ser antigas fileiras, reconstruídas ou recolocadas no lugar posteriormente. Nada ao redor, a não ser a muralha, os portais e a estrada. Aqui, muito tempo atrás, ficava o coração da cidade de Termez, seu núcleo perdido. Hoje, ele é sinalizado apenas por ruínas e pelo magnífico santuário de Al-Termizi, que, finalmente, veio a seguir.

Definir Al-Hakim Al-Termizi ("O Sábio de Termez") é um grande desafio, particularmente para não muçulmanos. Abu Abdallah Muhammad ibn Ali ibn al-Hasan ibn Bashir al-Termizi nasceu em Termez ainda no século IX, poucas décadas após a chegada do Islã à Ásia Central. Ele foi um prolífico autor de tratados filosóficos e teológicos que influenciariam, mais tarde, sábios da era de ouro da civilização islâmica que viria entre o século X e a obliteração mongol do século XIII. Mais especificamente, Al-Termizi é hoje considerado um dos primeiros pensadores do sufismo, a prática, através de diferentes estratégias, usadas pelos muçulmanos para se aproximar misticamente de Alá. Esses estudos de Al-Termizi, na verdade, vieram antes do surgimento das grandes ordens de sufismo predominantes na Ásia Central, uma região onde elas vieram a se tornar muito populares por sua sinergia com formas ancestrais de fé que antecedem o Islã. Dessa forma, Al-Termizi não é considerado um sábio sufi, mas algo como um "pré-sufi", já que já falava nas suas obras da necesidade de aproximar os ensinamentos do Islã do coração dos fiéis de uma maneira mais direta, além das escrituras. Em sua obra mais famosa, Selo dos Santos (Khatm al-Awliya), ele faz reflexões sobre o polêmico conceito dos santos (wali), não aceito pelo sunismo ultratradicional. Por essas ousadias, Al-Termizi teve que enfrentar acusações de heresia em seu tempo, vivendo exilado de Termez. Sua obra, porém, seria depois aceita como pilar e influência. Segundo estudiosos, até o famoso Abu Hamid Al-Ghazali (1058-1111), um dos mais celebrados sábios da era de ouro, teria sido influenciado por Al-Termizi. Contudo, tudo isso é muito distante da realidade atual. O que é Al-Termizi hoje para os habitantes de Termez? Quantos deles sabem de sua importância, de sua história? Seu mausoléu é um local de peregrinação, tal qual o de qualquer santo associado ao sufismo. Mas talvez muitos venham apenas atrás da refeição gratuita oferecida às quartas-feiras a todos os visitantes. Talvez, venham apenas para passear nos magníficos jardins, mantidos com um carinho comovente em uma região tão seca.

Na hora dourada do ocaso, com o sol baixo, toda a cor fica ainda mais intensa. O terceiro portal marca o início da área, sem acesso a carros, onde começam os jardins do complexo. Flores coloridas por toda a parte, os aromas da natureza, o frescor da grama recém-regada. Plataformas de madeira cobertas e banquinhos para se sentar, outros bancos ao redor entre as plantas, tudo em excelente estado, tudo limpíssimo. Alto-falantes espalhados pelo verde, no alto de postes, foram acompanhando meu passeio pela calçada de concreto da entrada dos jardins até o mausoléu em si. Os alto-falantes emitiam gravações de leituras em árabe, dizeres de Al-Termizi, reflexões. Queria entendê-las. Pensei: que lugar mais agradável, mais fresco, mais vivo. Vivíssimo no meio do que está morto há tanto tempo, as estupas budistas, tão perto do sufocante calor do centro de Termez. Um oásis para contemplação, para reflexão.

Cheguei à entrada do mausoléu às 18h45 e o lugar estava praticamente deserto. Nenhum táxi na entrada. Assim, tinha que ver tudo e depois tentar chegar, ainda com luz de preferência, a um ponto de ônibus e táxi que ficava na rodovia para voltar para o hotel. Calculei que teria, no total, teria 15 minutos para ver tudo e ainda ter luz na volta. Estranhamente, apesar disso, não senti pressa nem apreensão com a possibilidade de ficar à deriva no meio do nada, sem transporte para voltar para o centro de Termez.

A tranquilidade só aumentou quando entrei no mausoléu, uma construção simples de tijolos aparentes. Circundado de tumbas sem identificação, o prédio, construído a partir do século IX, mas datando principalmente do século XII, não tinha nada de especial à primeira vista: o portal típico dos mausoléus islâmicos, nenhum mosaico. Sem decoração de azulejos, muito simples. Dentro, porém, a arte tenta traduzir a beleza da mensagem do sábio com uma cornucópia carregada de ouro, claramente restaurada e preservada com primor. Cúpulas e paredes ricamente trabalhadas com padrões geométricos hipnóticos, linhas e vértices brilhantes, um capricho que poucos artistas poderiam conceber. A decoração na cúpula, em particular, é um tesouro como nenhum outro que havia visto — não perfeitamente circular, um tanto quanto deformada, torta. Quiçá de forma proposital; o imperfeito guardando o perfeito, como o homem guarda Deus em si.

Sentei-me em um canto, olhando para os detalhes, sendo observado pelo curioso mulá. Imaginei que ele já quisesse ir embora e que fosse em breve me pedir para me levantar e partir. Qual não foi minha surpresa quando um grupo numeroso — idosos, jovens, crianças — chegou em questão de minutos para dar boa noite a Al-Termizi, aproximando-se com reverência da tumba, tocando os Corões colocados em frente a ela. A tumba: um cenotáfio de pedra branca coberto com rica caligrafia, doado por Ulugh Bek, o neto de Tamerlão, no século XV.

Fechei os olhos. Uma prece entoada pelo mulá, acompanhada por todos os visitantes. A reza ecoado pela cúpula dourada.

Fui embora apenas às 19h20. O sol já estava abaixo do horizonte. Lusco-fusco. Me sentia feliz, extático, otimista. Claro que encontraria facilmente transporte. Claro que sim! Nenhum problema, o transporte já estava vindo em minha direção. Eu nem acelerava o passo.

Entre o segundo e o primeiro portais, vi duas vans se aproximando, vindas do mausoléu, indo para a rodovia. Fiz sinal para pararem. A que parou disse que estava indo para o centro. Em 20 e poucos minutos, eu estava no hotel.


* * *

Despedida de Termez com um sanduíche de churrasco grego em uma mesa instalada pela lanchonete em frente ao grande relógio, na avenida Al-Termizi. Neste restaurante me trataram muito bem. Sorrisos. O moço jovem no caixa disse o que eu já sabia, que via poucos turistas. Puxei papo com ele; espontaneamente, ele disse que as coisas estão muito melhores para ele, para Termez, com o novo presidente. Depois, falei com dois taxistas sentados ao lado, que haviam me perguntado de onde eu era. Me disseram a mesma coisa: o Uzbequistão se abriu desde a morte do presidente Islam Karimov, em 2016. O sucessor de Karimov, Shavkat Mirziyoyev, trouxe essa mudança, afirmaram. Isso os deixava felizes. E a mim também!

Em dois dias, vou ver um dos efeitos dessa abertura — a fronteira com o Tajiquistão perto de Samarkand, há tanto tempo fechada, reabriu recentemente. Vizinhos e familiares há muito separados por tolices podem agora facilmente se reencontrar.

Quanta alegria!

Penjikent, 9/8, 12h10

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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