Monday 31 July 2023

Novas Fronteiras (XXXV) - Fim



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1/9/2018

Última hora antes de ir para o aeroporto. Uma mistura de nostalgia prematura e ansiedade.

Ontem, voltando ao hotel após a longa odisseia de monumentos, parei no mesmo restaurante onde eu e F almoçamos no primeiro dia em Ashgabat. Novamente, pedi kakmach, o prato de carne de carneiro com cebolas e pimentões. Gostoso, mas tem um problema comum nos pratos da Ásia Central: é gorduroso demais. Muito cheio de óleo. Faltam especiarias. Fácil enjoar. Quem dera fosse ao menos um pouco mais picante.

Também pedi unaş: uma sopa com macarrão, alguns vegetais, pedaços de carne. O menu dizia que era picante, até a garçonete me alertou. Puseram uma pimenta (inteira) em cima. Mas não estava muito ardida. Me decepcionei.

Apesar de ter pratos como esses que, embora diferentes, lembram os dos demais países da região, algumas coisas à mesa são bem singulares no Turcomenistão. A principal diferença que notei em relação a seus vizinhos do norte é o pão. Em toda a Ásia Central, inclusive no próprio Turcomenistão, o pão é considerado sagrado. Entretanto, no norte, os pães, redondos, brilhantes, cheirosos, com gergelim e sementes de papoula, sempre são um grande destaque. Lembro do primeiro dia desta viagem, no mercado à beira da estrada rumo ao Vale de Fergana, que delícia aquele cheiro de pão. Aqui, não vi pães assim. Encontrei eles com formato diferente, alongados, sem toda a criatividade decorativa do non uzbeque. Nos mercados, não os vi com o mesmo destaque. Até o nome é diferente. Todos no norte, uzbeques, quirguizes, cazaques e tajiques, o chamam de non. Aqui, é çörek. Notada semelhança com o idioma falado na Turquia, onde a palavra também existe, mas, curiosamente, lá ela significa muffin.

Outra semelhança com os turcos: a relação dos turcomenos com o chá. Em quase todos os países da Ásia Central, na Rússia e no Irã, é uma paixão. A Turquia também toma chá, mas é conhecida pelo seu café. E eis que, no Turcomenistão, tomar chá não é uma unanimidade como nos vizinhos do norte. Tive que pedir nos restaurantes, enquanto que no norte traziam sem pedir. Imensa foi minha surpresa ao ouvir um turcomeno dizendo na recepção de meu hotel em Ashgabat, um desses dias, que preferia tomar café em vez de chá.

Ou preferem çal. Isso, sim, me lembrou o norte, mas não o Uzbequistão ou o Tajiquistão. Çal é leite de dromedário ou camelo fermentado. Em Komsomolsk-na-Ustyurte, na região do Aral, me ofereceram a versão encontrada normalmente no Cazaquistão, chamada shubat, e recusei temendo uma diarreia. Neste café da manhã, agora que estou numa cidade grande e a caminho de casa, tive coragem de experimentar. Me trouxeram uma garrafa do produto industrializado, meio litro. Tem gosto de iogurte salgado, um pouco gasoso. Diferente, mas nada indigesto ou difícil de apreciar para o paladar ocidental. Muito parecido com o kumyz, leite de égua fermentado, comum no Cazaquistão e no Quirguistão.

Um brinde sozinho, ergui a tigela de porcelana com çal, virei o que restava nela olhando nos olhos de Ashgabat pela janela à minha esquerda. O garçom me observou como se eu fosse o que sou mesmo por aqui, um bicho exótico.

Sobre os dromedários, me vem à cabeça que o governo turcomeno deveria lhes mostrar mais gratidão. Esses animais dão aos cidadãos o çal, dão carne, disponível sem problemas nos açougues. Dão vida para povoar cantos estéreis do deserto do Karakum. Enquanto isso, o presidente prefere homenagear o cão da raça abai ou o cavalo turcomeno. Seria porque são mais bonitos, porque ficam melhor nos outdoors?

Chega de reflexões.



O motorista chegou pontualmente na hora marcada. O dia estava, como todos os outros, sempre, eternamente, solar, quente, lindo. Com um céu azul deslumbrante. Que diferença da despedida de Bishkek, coberta de neve, em 2012.

A luz faz resplandecer a fachada do aeroporto internacional de Ashgabat. Não me surpreendi. Trata-se sem dúvida nenhuma do aeroporto mais luxuoso em que já botei os pés. Um devaneio arquitetônico, mais um. Evidentemente, branco, com mármore, como o resto da cidade. A fachada é na forma de uma águia estilizada, alçando voo, com as asas cobrindo os terminais. Um interior com colunas e teto ricamente decorados, detalhes dourados. Parece uma grande hotel cinco estrelas. O mesmo exagero das edificações de Dubai. Para variar, quase que completamente vazio. Conseguia ouvir meus passos no saguão imenso.

Poucos voos internacionais partiam de dia neste sábado. Havia serviços apenas para Paris, Londres, Frankfurt, Minsk e Moscou, todos saindo entre as 11h10 e as 14h10. Depois deles, o próximo só saia por volta da meia-noite, para a China.

Entrei no avião para Londres da Turkmenistan Airlines. Estava tomado de indianos. O voo, pelo que contaram, se originou em Amritsar, cidade sagrada dos sikhs. Muito inteligente a estratégia da empresa aérea. Se ninguém vai para Ashgabat, pelo menos o voo é disputado pelos sikhs que vão e voltam da cidade. Muitos homens com turbantes sentados à minha direita, à minha esquerda, atrás, na frente. Fazia tempo que não via tantos turbantes, tão coloridos. Os senhores à esquerda e à direita apertaram os cintos e me olharam balançando a cabeça, levemente, com uma saudação. Retribuí.

Ao lado do senhor à esquerda, a janela estava escancarada. Fixei o olhar na paisagem.

A nave começou a se mexer, lenta. Acelerou. Flutuou.

Lá fora, a cidade logo virou um borrão branco. O Palácio de Casamentos, aquele cubo incrível de ontem, apareceu e desapareceu rapidamente. E depois, a cordilheira Kopet Dag, filtrando o sol imenso.

A montanha, o deserto.

E depois... estava tudo muito longe. Tudo misturado. Tudo igual. Inseparável.



As fronteiras só existem na cabeça das pessoas.

Ashgabat, 1/9, 12h15



Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. É parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem visitado regularmente a região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Friday 28 July 2023

Novas Fronteiras (XXXIV) - Ashgabat, Turcomenistão



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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

31/8/2018

Eram 11h40 da manhã no mercado Teke, um dos principais do centro de Ashgabat. Um mercado coberto, não muito grande, com uns 200 ou 300 metros quadrados. É bem organizado e limpo, com corredores de vendedores com seus tabuleiros de frutas, verduras, legumes, especiarias. O lugar não estava muito lotado. Havia mais gente fora da área coberta, onde havia barracas vendendo artigos escolares para os pais preocupados com a volta às aulas dos filhos.

Uma fila se formou.

Foi a primeira vez que vi uma fila em um dos mercados que visitei no Turcomenistão. O normal nos mercados turcomenos parece ser o funcionamento perfeito, sem filas, mesmo quando há muita gente. À primeira vista, tudo sempre inspira tranquilidade, tudo expira normalidade. Uma fila, uma simples fila, que começou com três pessoas e logo cresceu para seis e oito, é algo realmente difícil de ver especialmente a poucas quadras do Palácio Presidencial. É um acontecimento. Foge do script.

Depois aumentou depois para umas 20 pessoas. Era ainda uma fila curta. As pessoas esperavam, pacientemente, sem demonstrar qualquer sinal de impaciência. Esperavam para comprar... bananas, que pareciam ter acabado de chegar. Trata-se de algo raro, exótico por aqui. Artigo de luxo para um público seleto, de fato. Todos na fila estavam bem nutridos. Homens e mulheres redondos e com boas roupas. Imaginei que devessem viver não muito longe, quem sabe até nos fantásticos edifícios brancos que são abundantes no centro.

Preço: seis manas (algo como US$ 2) a penca com seis. Parecia ser um preço bom em se tratando de um produto que, diferentemente do que ocorre no Brasil, tem que ser trazido de muito longe. Achei normal ser algo disputado, não vi nada de errado em haver uma fila. Só achei curioso, já que filas são incomuns no país. E, achando curioso, com um pouco de instinto jornalístico, tirei o celular-câmera do bolso. A ideia era documentar a paixão turcomena por algo que nós, brasileiros, naturalmente subestimamos. Minha lógica era — nada de errado na fila, então nada de errado em tirar uma foto dela. Certo?

Foi uma questão de segundos. Um funcionário do mercado que eu não tinha notado até então, uniformizado e de crachá, estava por perto tentando (e conseguindo sem problemas) organizar a fila. Ao me ver tentando tirar a foto, ficou absolutamente possesso. A primeira reação dele foi um violento grito na minha direção, dizendo algo que não entendi. As pessoas na fila, os vendedores por perto, os compradores entrando e saindo do mercado, todos de repente ficaram paralisados e olharam na minha direção. O mundo parou. Fez-se silêncio. Vi, na fila, muitos olhares de pura raiva.

Não cheguei a tirar a foto. Abaixei a câmera imediatamente. Coloquei no bolso da calça. O funcionário se aproximou como um raio.

Rosto no rosto, olhos no olhos. Ele falou algo de novo. No canto de sua boca, espuma.

Parecia prestes a dilacerar minha jugular. Não entendi nada. Era em turcomeno.

Trocou para o russo. Entendi. "Apague agora."

No meu rosto, uma sequência de mudanças. Primeiro, a não-expressão de fazer algo prosaico, tirar uma foto. Depois, o susto (devo ter ficado momentaneamente branco ao perder minha suposta, inocente, anonimidade). Agora, me tomava uma certa calma inconcebível. Minha mão direita estava no bolso, segurando com força a câmera. Não tirei a foto. Logo, não havia o que temer. Disse a ele, "não", com desdém. Dei meia-volta e me encaminhei para a saída do mercado.

Meus passos em direção à saída foram firmes, fortes, sonoros, rápidos, mas sem correr. A minha expectativa era sentir alguém, a qualquer momento, agarrando meu ombro. Ou meu pescoço. Ou me dando um chute. Me transformei, inconscientemente, em um improvável super-herói. Me concentrei em elevar a gravidade terrestre no meu caminho ou aumentar minha densidade corporal infinitamente. Meus passos eram para colar minhas pernas ao chão, como raízes, para não ser derrubado de jeito nenhum em caso de agressão.

Ouvi gritos atrás, sem sentido.

O sol forte lá fora. O portão do mercado. A rua.

Tudo deve ter demorado um ou dois minutos, entre tirar a câmera e sair do mercado.

Ao ver os carros na avenida do lado de fora, de repente, me veio a consciência que, no ato em si, não me veio. A sensação que tantos impulsivos conhecem bem. A sensação que vem com a frase "Meu Deus, o que foi que eu fiz?"

Burro. Burro.

A sensação cresceu exponencialmente. Virou pânico. Julguei óbvio que, nesta altura, a polícia estivesse atrás de mim e, como em Ashgabat não faltam policiais, e como meu ato foi uma clara demonstração de rebeldia, uma demonstração hostil a um regime que fundamenta tudo na palavra controle, eu, repentinamente, em questão de minutos, virei inimigo do regime. Na minha cabeça, inadvertidamente, com minha impulsividade e burrice, eu havia me tornado um subversivo, o líder de uma pequena revolução.

Vi policiais numa esquina. Falavam por walkie-talkie. Um deles olhou para mim.

Não olhei para trás em nenhum momento. Apressei o passo. Atravessei uma larga avenida.

Imaginava que estavam atrás de mim, acelerando na minha direção.

Lembrava constantemente de não olhar para trás. Suor em minha testa.

Pensava em meu celular. Pensava que iam pegar meu celular e estraçalhar ele. 1,4 mil fotos. Todas as fotos da minha viagem. Estraçalhadas.

Apressei o passo. Quase, quase correndo.

Entrei à esquerda em uma avenida vasta em aclive, com várias faixas, com os prédios brancos brilhantes dos dois lados.

Peguei o primeiro ônibus que passou.

Desci após duas paradas.

Olhei ao meu redor, na calçada. Vi pessoas andando, subindo a avenida. Dois homens à paisana. Olharam para mim.

Apressei o passo. Quase, quase correndo.

Entrei em uma rua saindo da avenida. Mais aclive. Estava com as axilas molhadas. O sol estava incidindo diretamente sobre meu rosto.

Só ouvia minha respiração. Não olhava para trás.

Ofegante.

Cheguei a um parque, as árvores eram todas novas, tinham acabado de ser plantadas. Lá longe, do outro lado do parque, vi uma edificação de arquitetura incomum que já estava planejando visitar.

Tive que parar para respirar.

Olhei para trás. Não havia ninguém subindo a rua. Ninguém atrás de mim.

Sentei no meio-fio. Esperei um minuto sem piscar.

Coloquei as mãos sobre o rosto e curvei a cabeça com os cotovelos sobre os joelhos.


Quando eu finalmente consegui me acalmar, quando eu finalmente me livrei do episódio de paranoia repentino, refleti sobre o que aconteceu.

Foi um pequeno exemplo do que pode ser o trabalho de um jornalista independente neste país. Para o governo, a única função do jornalismo no Turcomenistão (se é se pode chamar jornalismo essa atividade) é justamente manter as aparências de que tudo vai muito bem. Essa função ganha particular importância durante as eleições, sempre vencidas pelo presidente da vez com margens superiores a 90% dos votos (como na eleição de 2017, vencida por Berdimuhamedow oficialmente com apoio de 97,69% do eleitorado), sem nenhuma oposição de verdade. Interessante notar que justamente perto do mercado Teke fica a sede da agência oficial de notícias do país. E, literalmente ao lado dela, fica a sede da Comissão de Organização de Eleições e Referendos.

Mas, nesse ambiente de controle total, por que o funcionário do mercado não correu e tentou me parar? Ou por que não me denunciou para que alguém me prendesse? Se tivesse denunciado, sem a menor dúvida em questão de minutos eu estaria atrás das grades (visto que eu sequer corri). A hipótese que me ocorreu, sentado na calçada, era que o funcionário estava ocupado demais com o que é pago para fazer, organizar filas, manter a ordem no mercado. Parar tudo e ir atrás de um policial só para pedir a ele que persiga um turista maluco o afastaria de sua função nem que fosse uns cinco minutos, e, nesses cinco minutos, a desordem da fila poderia chamar a atenção de algum supervisor, o que seria pior para ele. Não. Eu não valia o esforço. Ele abandonar seu trabalho, em si, seria um descontrole.

Por outro lado, na fuga, me passou pela cabeça o que poderia ter acontecido se ele, diferentemente da minha avaliação, sim, me julgasse um problema sério demais. Prisão, embaixada sendo chamada. Minhas fotos, todas deletadas. Meu destino, roubado até que alguma autoridade raivosa decidisse me libertar. Então, extradição, banimento do país, para nunca mais voltar. Vergonha.

Evidentemente, quem tem dinheiro para comprar bananas na cidade é ligado ao governo, só essas pessoas podem comprar artigos de luxo. Isso explicaria os olhares raivosos. O controle intenso em Ashgabat é mantido não apenas pela polícia, mas por boa parte de sua população, funcionários públicos bajulados que são sem dúvida uma base de sustentação do regime. Tamanha é a fé da ditadura no controle que possui que ela deixa turistas circularem livremente na capital. As autoridades pensam, provavelmente, que ninguém seria louco o suficiente de fazer algo para desafiá-las. Ou talvez pensem que nada pode desafiá-las... e ponto final. Excesso de confiança, algo que pode ter consequências desastrosas. Qual seria o efeito de minha foto da mísera fila, caso eu a tivesse tirado? Imaginando que eu a compartilhasse nas imprevisíveis redes sociais, a imagem poderia chegar aos olhos de turcomenos, levando-os a falar de filas, depois dos preços de produtos nos mercados, depois da falta de alimentos, de fome, de miséria, do regime omisso. Um maremoto poderia começar com uma marola. No exterior, a foto poderia levar a incômodos questionamentos.

Assim, ao me deixar livre e impune, impossível não concluir que o regime totalitário falhou. Tive sorte.


O que as autoridades de Ashgabat gostam que os turistas façam, certamente, é o que fiz com prazer a seguir: ver monumentos. Admirá-los. Tirar fotos deles e, assim, em seguida, espalhar aos ventos, pelas redes, a glória da capital turcomena. Esse turismo é como o turismo em qualquer cidade: o visitante vê o mapa, encontra um ponto de interesse, vai até ele e o registra com o olho curioso e virgem. A experiência, entretanto, é um pouco diferente — não apenas porque todos os monumentos de Ashgabat parecem novos, reluzentes e piscantes, bem diferentes dos monumentos que primeiro vêm à cabeça, mas também porque são muitos e, alguns, com temas incomuns. A materialização deles, o fato de terem recebido investimento e horas de trabalho para se tornarem realidade, é, em primeira análise, sem sentido, absurda. Ao visitá-los, porém, surge a lógica: as obras são uma manifestação-chave da ideologia estatal. Eis algo que é um legado soviético, com a diferença de que, na URSS, havia uma limitação muito maior nos temas: Lênin, Marx, Revolução, Proletários, Guerra.



Primeiramente, não é possível negar. Os monumentos de Ashgabat ficam na sua memória, ou por serem magníficos... ou por serem o contrário. Fico imaginando o artista encarregado de dar vazão à sua criatividade em um deles: o governo faz uma encomenda com uma palavra, e se espera dele que surja algo que traduza de forma deslumbrante essa palavra, essa ideia. Há monumentos medíocres, dolorosamente medíocres, medíocres ao ponto de sugerir que são o resultado de um tédio profundo do artista. Em uma das praças centrais da cidade, há um monumento ao Rukhnama. Na época de Saparmurat Niyazov, o livro, de autoria do então presidente, se tornou leitura obrigatória. Algo como o Corão turcomeno. Morreu Niyazov, veio o Arkadag Berdimuhamedow e, hoje, os monumentos do primeiro presidente do Turcomenistão estão desprestigiados, enquanto que os novos monumentos do atual presidente parecem ganhar todo o destaque. Mas um dos monumentos de Niyazov que ainda permanece em destaque justamente é o erguido em homenagem a seu livro. O que se esperaria desse monumento? Algo grandioso, falando da essência da obra. O que é ele, na prática? Simplesmente um livro. Um livro gigante de metal, num pedestal. Nada mais do que isso.

Até ouço o artista, que deve ser de Itu, na minha cabeça: "Me pediram um monumento ao Rukhnama. É um grande livro. Eis um grande livro... sobre um pedestal."

Nos limites da cidade, quando acabam as avenidas e prédios brancos e começa o deserto que se estende até o Kopet Dag, é onde está hoje, realocado, o monumento mais famoso da cidade durante os tempos de Niyazov. Trata-se do Arco da Neutralidade, o grande orgulho do Turkmenbashi, sua criação mais conhecida no exterior. Trata-se de uma estátua banhada a ouro do grande líder, de braços abertos, na frente de uma bandeira também de ouro. Está montada sobre uma alta plataforma que se parece com um foguete espacial, no total com 15 metros de altura. Quando o presidente estava vivo, a estátua era móvel; acompanhava o movimento do sol, sempre permanecendo de frente para o astro, refletindo seus raios, ofuscando com sua luz os observadores boquiabertos. Algo nada menos do que gloriosamente megalomaníaco. Hoje, a estátua não mais dá voltas. E sua localização força uma jornada longa, de táxi, ônibus ou a pé, a partir do centro. Imagino que poucos vêm até a beira do deserto para ver o Arco. Ainda assim, a realocação mantém uma moldura de luxo para obra: ela fica em um parque com lindas flores e bancos para se sentar e observá-la. Muito dinheiro foi gasto para criar essa moldura tão bonita. Mas isso não tira da obra uma certa melancolia que vem de hoje não ser mais a joia da coroa de Ashgabat. Lembro das estátuas de Lênin, arrancadas de tantos pedestais na ex-URSS e jogadas em parques menores, tratadas como curiosidades incômodas, ou mesmo tiradas de vista e destruídas.

Como já tinha ficado claro no Museu de História da capital, neste mundo, a história é trocada como uma peça de roupa, de acordo com o gosto do patrão.

De todos os prédios e monumentos da cidade, o que mais me impressionou positivamente foi o que vi ao longe quando parei para me recuperar após o susto e a fuga do mercado Teke. A edificação fica no alto de uma colina cercada pelo parque aparentemente recém-construído, com árvores baixas e sem ninguém. Trata-se do Palácio de Casamentos, ou Bagt Koshgi. Na época soviética, com a religião sendo rejeitada pelas autoridades, a população ficou órfã de locais onde podia, oficialmente, vivenciar em estilo esse grande acontecimento. Por isso, as autoridades criaram estes prédios onde ocorria o registro civil e, depois, a celebração. Alguns deles, como o de Bishkek, foram construídos como verdadeiras "catedrais", embora desprovidos de qualquer iconografia religiosa. Este de Ashgabat foi construído em 2011, portanto já durante a presidência de Berdimuhamedow, o que prova a resistência do legado comunista. É extremamente curioso, parecido com nenhuma outra obra que já vi: um grande cubo com faces que são estrelas de oito pontas, um símbolo do país, trazendo em seu interior uma esfera prateada com um diâmetro de 32 metros, na qual é possível ver, em relevo, o mapa do Turcomenistão. O cubo e a esfera estão montados sobre um complexo de três andares que inclui tudo o que necessário para fazer um grande casamento — por exemplo, salão de banquetes, estúdio fotográfico, lojas de roupas e um hotel para os convidados. Todos os detalhes decorativos, no exterior e no interior (o qual não visitei) foram feitos seguindo o simbolismo nacional, aprovado pelo governo que, evidentemente, encomendou a obra, feita por uma empresa de arquitetura turca. Lindo, estranho. Um perfeito símbolo da Ashgabat atual.

Ao lado do Bagt Koshgi, o Arkadag deu sua bênção para a única estátua que encontrei na cidade que o mostra em pessoa. O presidente está presente por toda a parte em fotos e outdoors; mas sua modéstia, talvez, não lhe permitiu, pelo menos ainda, que sua imagem em pedra ou metal ocupasse os plintos da cidade como se poderia esperar. Esta exceção, porém, tenta, sozinha, fazer valer todos monumentos que ainda não vieram. Foi inaugurada em 2015: O presidente jaz montado em um lindo cavalo no alto de uma plataforma de pedra branca, usando o chapéu telpek típico. Tem um dos braços controlando a rédea do cavalo, o outro, erguido, como se acenando para Ashgabat, abençoando sua cidade. Ao lado de sua mão aberta no céu, voa uma pomba da paz. Trata-se de uma cópia do Cavaleiro de Bronze, a famosa estátua de Pedro, o Grande, em São Petersburgo. Em Ashgabat, porém, o conjunto tem 21 metros de altura (o de São Petersburgo, aproximadamente 13 metros) e o cavalo, o presidente e até a pomba são folheados a ouro. Berdimuhamedow, o Grande. Ou melhor: Berdimuhamedow, o Maior.

Em outro ponto da cidade, foi construída uma roda gigante muito peculiar. Visível de muito longe, foi erguida dentro de uma estrutura de pedra e metal dourado, uma espécie de moldura ou proteção, dentro da qual circula. Fica em um complexo cultural e de lazer chamado Älem ("universo"). No momento de sua inauguração, em 2012, a roda gigante (chamada, ela própria, também de Älem) era a maior estrutura fechada do tipo em todo o mundo, com 57 metros de diâmetro e quase 50 metros de altura. O complexo fica em mais uma das fronteiras da cidade antes do deserto — de fato, Ashgabat parece estar engolindo rapidamente o deserto ao redor, se expandindo justamente com, entre outros recursos, a construção de monumentos. A roda gigante é hipnotizante. Sua moldura a faz se parecer a um imenso relógio de luxo incrustrado com os símbolos das cinco principais tribos turcomenas, os mesmos da bandeira nacional. Quando cheguei, iluminada pelo sol da tarde, refletindo os raios nos detalhes dourados, ela estava fechada. O lugar todo ao redor, com árvores e bancos para sentar e relaxar, estava sem pessoas, completamente às moscas. Tudo parecia não ser real, parecia ser uma miragem.

Após tomar um táxi, do outro lado da cidade, bem longe, encontrei o mais importante conjunto de monumentos da cidade. Algo colossal, tão grande que fiquei intimidado e até preguiçoso de explorá-lo. Chama-se Halk Hadysasy, ou "Memória do Povo", e foi inaugurado em 2014. Um museu e três monumentos fazem parte do complexo. Todos os monumentos estavam antes no centro de Ashgabat, tendo sido inteiramente desmantelados e reconstruídos aqui. São homenagens aos mortos do país no esforço de resistência contra a conquista pela Rússia czarista no século XIX, nas batalhas da Segunda Guerra Mundial e no grande terremoto de 1948, que deixou Ashgabat irreconhecível.

Começa com uma escadaria triunfal. São 314 degraus, cada um deles judiando de minhas pernas e de meus pulmões no sol de rachar, no ar fervente. Cheguei ao alto com a testa encharcada, exausto. Lá, no centro de uma área plana e descoberta, havia um conjunto de cinco colunas de granito vermelho, cada uma no formato, desde a base até o seu ápice, da familiar estrela de oito pontas. Os pilares alcançam 27 metros de altura. É claramente uma criação soviética. As colunas são minimalistas; nenhum detalhe, nem ouro, nem metal. Como se fossem estacas cravadas no coração da terra, ou árvores mortas, apenas caules. Tem algo de violento, de brutal, até por ter a cor vermelha, do sangue. O monumento chama-se Baky Şöhrat, ou "Glória Eterna", e é o que homenageia as vítimas turcomenas da Segunda Guerra.

Ao seu lado esquerdo, sob a perspectiva de quem veio subindo a escadaria, fica o memorial do terremoto de 1948. É a mais estranha obra do conjunto. Têm um quê de religiosa. Sobre um plinto de mármore jaz um touro, feito de bronze, erguendo em seus chifres uma esfera que parece ser o mundo. Desse mundo, surge uma mulher estilizada. E essa mulher carrega um bebê. Só o bebê é folheado a ouro, o resto é bronze nu ou a sua base, de pedra vermelha. O touro é associado a uma crença ancestral de que o mundo existe erguido justamente nos chifres de um grande animal como esse, e que seu mugido é ouvido como os sons que vêm da terra nos terremotos. O bebê, acredita-se, seria uma representação de Saparmurat Niyazov, o que explicaria o fato de ser dourada — assim como as demais estátuas do Turkmenbashi na cidade.

Ao seu lado direito, por fim, há o monumento menos impressionante dos três, mas talvez o mais tocante. Um grande arco de granito, novamente vermelho, cobre uma mulher, com ar de santa, com os braços estendidos, suplicantes. A mãe, entende-se, perdeu o filho. Em cada ponta do arco, há estátuas que parecem representar guerreiros turcomenos, com sua indumentária típica. É o monumento aos mortos nas guerras da pátria-mãe turcomena, sobretudo a batalha mais sangrenta com a Rússia czarista, na cidade de Geok Tepe, perto de Ashgabat, em 1881. Foi uma carnificina inimaginável, um eco das barbaridades de Gengis Khan e Tamerlão, na qual os russos chacinaram pelo menos 15 mil turcomenos (ou, segundo outra contagem, até 150 mil). O rio de sangue selou o destino do país, ligando-o oficialmente à Rússia até 1991. Tamanho trauma também poderia ser uma das raízes do isolamento da nação.


Sentei-me na escadaria para descansar as pernas, olhando para uma avenida, lá embaixo, e para um morro quase sem árvores, do outro lado.

Fiquei lembrando de outros monumentos com que cruzei pela cidade.

Muitos.

Monumento à Constituição.
Monumento ao Trigo.
Monumento à Terra.
Monumento à Continuidade.
Monumento à Ciência.
Monumento aos Cavalos.
Monumento à Vida Saudável.
Outros quantos, nem sequer vi.

Todos limpos. Todos brilhantes, reluzentes.

Todos caríssimos.

Todos cercados de muito espaço pouco frequentado.

É Ashgabat, enfim. É um grande, desconcertante vazio decorado de forma estranha, em que os habitantes mais humildes, na verdade irrelevantes, sobrevivem com medo de tirar fotos.

Que dor deve ser viver cercado de toda essa beleza coagida, desse gasto absurdo, como numa gaiola de ouro. Que loucura ter tanta estética, tanto nacionalismo, e tão pouca alegria.

Tudo é tão sem sentido.

Que bom que vou embora.

Ashgabat, 31/8, 22h

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Friday 21 July 2023

Novas Fronteiras (XXXIII) - Ashgabat, Turcomenistão



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30/8/2018

Hoje me despedi de F, meu companheiro de viagem espanhol, que voou logo de manhãzinha para Hong Kong, onde mora, e de T, nosso simpático motorista, que, apesar de só falar russo comigo, e mal, talvez no mesmo nível que eu, me fez dar boas risadas e me permitiu ver um pouco da realidade deste estranho país sob a ótica dos que devem se ajoelhar, todo dia, à frente das esquisitices do regime.

Sozinho novamente. Não fiquei triste. Fiquei empolgado, maravilhado pela oportunidade de circular pela capital até o fim da viagem, daqui a dois dias, completamente livre e sem companhia — com exceção dos policiais de olho em mim.

Peguei um ônibus comum, de linha, o mesmo usado pelas pessoas que vivem aqui para se deslocar pela cidade. Meu objetivo, hoje, foi conhecer o Museu de História, que fica um pouco longe do centro, perto da fronteira da cidade com o deserto, em uma zona de prédios especialmente reluzentes, deslumbrantemente brancos. Me chamou a atenção o preço da tarifa: meio manat, o que, na taxa oficial (3,5 manats por dólar) seria alguma coisa, mas, no câmbio negro (16 manats por dólar), é simplesmente nada. Também impressionou o ônibus, confortável, em ótimo estado, parecendo novo. Talvez coloquem esses coletivos exemplares no centro justamente para ficarem bem à vista dos visitantes eventuais. Atrás do motorista, em um local bem visível a todos, mais uma vez uma foto do presidente. Pela janela, na rua, outdoors com a foto do presidente. Continua todo dia a mesma sensação, em Mary, Ashgabat ou onde for: basta ficar de olhos abertos e Berdimuhamedow aparece sorridente.

O ônibus passou ao lado de um complexo imenso, uma "cidade olímpica", não muito longe do palácio presidencial. Não foi construída para uma Olimpíada — um evento cuja dimensão talvez justificasse se dedicar uma parte tão grande do centro da capital a ele —, mas sim para uma competição menor, os Jogos Asiáticos de Esportes em Recinto Coberto e Artes Marciais de 2017. Trata-se de um evento que inclui vários esportes não-olímpicos, refletindo os gostos dos aficionados asiáticos. Entre os esportes representados nos jogos, por exemplo, estavam xadrez, boliche e bilhar. Com o conhecido isolamento do país, os jogos de 2017 foram muito celebrados e promovidos pelo governo como forma de indicar que o Turcomenistão estava mudando, estava mais aberto e integrado ao resto do planeta. Evidentemente, o governo fez o possível e o impossível para causar boa impressão, usando a competição como ferramenta de soft power, mostrando o país como moderno e capaz de organizar com eficiência um grande evento internacional. Foram gastos cerca de US$ 5 bilhões na construção da fantásticas instalações esportivas. Os arquitetos com a bênção do governo, talvez os homens mais felizes deste país, tiveram um vasto playground, tendo entre suas missões projetar um novo estádio com capacidade para 45 mil pessoas e um centro de hipismo. No quadro de medalhas final, os anfitriões, muito longe de serem uma potência esportiva, garantiram o primeiro lugar com 74 medalhas de ouro, 32 a mais que o segundo colocado, a China. Participaram pelo Turcomenistão 496 atletas, quase o dobro do número que o segundo país a mais mandar mais representantes (Tailândia, 246).

O evento é mantido muito vivo com iluminação forte, luzes piscantes e, claro, muito mármore branco. Vejo no seu perímetro externo um telão que mostra em looping um lindo vídeo proclamando a celebração dos jogos "ASHGABAT 2017". Estamos na segunda metade de 2018. Ashgabat é futurista, mas parou no passado.

Todo esse luxo, além de ser uma mensagem para os atletas visitantes, deveria inspirar os cidadãos a se orgulhar da cidade maravilhosa que têm. Porém, no ônibus, ao passarmos ao lado do complexo, a maioria esmagadora dos passageiros olha para baixo. Para o celular, para um livro, para o próprio colo. Ou fecham os olhos, com fones de ouvido, ouvindo música. Parecem estar cansados, esgotados. Na verdade, eu próprio sou algo muito mais interessante para os moradores da cidade do que qualquer construção monumental.

Levei um susto. "O que achou de Ashgabat?", me perguntou em russo, de sopetão, um senhor idoso, ao meu lado, com tom jovial e lúdico na voz, sem sequer introdução ou qualquer saudação, mostrando como é fácil perceber que não sou daqui. Em outros países da Ásia Central, essa geralmente nunca é a primeira pergunta que me fazem. A primeira costuma ser, claro, de onde sou. Mas, no Turcomenistão, esta já é a segunda vez que uma pessoa me aborda pedindo primeiramente para saber o que vejo ao meu redor.

"Ah!", respondi com um sorriso. "Gostei muito. É uma cidade muito interessante." É uma resposta sincera. Ashgabat pode ser muitas coisas, mas, para um estrangeiro, é possivelmente impossível que ela não seja interessante.

O cidadão suspirou. Sem meu incentivo (não pela primeira vez isso me acontece por aqui), simplesmente abriu o coração, com a invulnerabilidade que a idade lhe permitia. "Ganhamos muito pouco", disse, olhando pela janela, não para mim. "O salário não dá para nada. Por mês, ganhamos uns US$ 40, US$ 50. Só se você trabalha para o governo ganha mais." Pausa. "Mas o que podemos fazer?"

Então passou a olhar para mim. "Em outros países, temos a opção de imigrar. Ir viver em outro país. Aqui, é muito, muito difícil. O Turcomenistão é isolado, precisamos de visto para quase todos os países. E visto é caro demais. A passagem, cara demais. Temos que ficar aqui. Aqui! E nos virar."

Essa sensação de estar sem saída é imensa, opressiva. No hotel, as notícias do exterior chegam principalmente pela TV russa, já que a TV turcomena prefere transmitir música e shows folclóricos. No entanto, ainda pior que a TV é a internet. Nos três hotéis onde pernoitei — em Dashoguz, em Ashgabat e em Mary — apenas um, em Dashoguz, oferecia acesso wifi, mas era muito, muito ruim. Quase não consegui navegar, as páginas simplesmente não carregavam. Cidadãos com pacotes de dados em seus celulares devem navegar melhor, mas, mesmo para esses sortudos, como para qualquer um, as redes sociais estão frequentemente indisponíveis. Além disso, há o relato persistente, e provavelmente verídico, de que o governo segue o modelo chinês: tudo o que você faz na internet é monitorado. Controle total. Totalitarismo. Doutrinamento. Se não há mais o comunismo, agora há a Altyn Asyr, a "Era de Ouro" dos turcomenos, a era de nacionalismo, de neutralidade, o que, aqui, na prática, significa... isolamento.

O doutrinamento, evidentemente, também envolve, como nos tempos soviéticos, a manipulação do passado.

A exposição permanente de história do Museu Nacional (ou, oficialmente, "Museu Estatal do Centro Cultural Estatal do Turcomenistão") apresenta, quiçá, os mais perfeitos exemplos de construção artificial do passado de toda a Ásia Central. Uma manipulação que seria risível se não fosse tão trágica para os cidadãos do país. Nos países vizinhos, existe também a apropriação indevida do passado como forma de dar legitimidade e criar uma identidade para o país e o regime, que são consistentemente colocados como a mesma coisa. Assim, no Uzbequistão, Tamerlão é um herói "uzbeque", ainda que estivesse muito longe de ter esse tipo de identidade. No Quirguistão, as sagas de Manas, um herói mitológico, são tão "quirguizes" quanto chinesas, tajiques, cazaques — na época em que Manas supostamente existiu, ou Tamerlão, simplesmente não existiam tais nomenclaturas como as entendemos hoje. O Tajiquistão havia sido o caso mais extremo que eu havia visto até agora: o regime tajique faz crer que seu território é berço de boa parte da magnífica cultura persa, e canta a glória de poetas como Rudaki, que nasceu no atual Tajiquistão, mas certamente jamais teria se visto como tajique. Ismail Samani, o grande herói do Tajiquistão, era um monarca de uma dinastia persa, os Samânidas — sua associação mais correta e direta talvez seja com o próprio Irã na qualidade de centro milenar da cultura e língua persas. Mas tudo foi manipulado para dar a idea de que o Tajiquistão teve um passado glorioso e de que sua encarnação contemporânea tem o direito de herdar todos esses tesouros.

Mas o Turcomenistão vai além. O museu clama para o país a “herança” de três grandes impérios da idade média: o khorezmshah, centrado em Konye Urgench (séculos XI-XIII), o seljúcida, centrado em Merv (século XI-XII) e até mesmo o gaznévida (séculos X-XII), centrado em Gazna, no Afeganistão, e em Lahore, no Paquistão. O museu dá a entender que os três impérios, que ocuparam, todos, uma vasta área da Ásia Central, foram impérios turcomenos, séculos e séculos antes que existisse um Turcomenistão, ou mesmo a ideia de um Turcomenistão, ou qualquer “etnia” unificada chamada de turcomena (até hoje permanecem divisões tribais tão profundas que um turcomeno dificilmente se definiria como tal sem também reconhecer sua identidade como sendo da tribo Tekke, Yomut ou outras). Todos esses impérios, se usarmos as ferramentas analíticas atuais, eram “multiétnicos”, mas melhor fosse falar multitribais, multilinguísticos. A religião era o Islã trazido pelos árabes na sua conquista anterior da região, mas nesta região remota muitas das religiões ancestrais permaneciam. Se fôssemos agrupar todos esses impérios sob uma mesma alcunha, talvez o melhor fosse dizer que eram impérios “islâmicos”, dada a dominância, ainda que não completa, da religião. Os seljúcidas poderiam ser considerados um império “túrquico”, uma definição étnica que não significaria aceitar o império exclusivamente como parte do passado da atual Turquia. Mas reivindicar que todos esses impérios eram turcomenos é no mínimo um exagero. O fato de que capitais de dois desses impérios ficavam no atual Turcomenistão não muda em nada esse fato. O museu, com um respeitável acervo de artefatos retirados de excavações, parece colocar toda a ênfase no fato de que essas capitais ficavam no atual Turcomenistão e que os impérios tinham sua principal base no atual Turcomenistão — e, por isso, seriam impérios turcomenos. Quando a capital nem ficava no atual Turcomenistão, o destaque é para a origem de seus líderes, ou nascidos no território do atual país ou com "raízes" aqui, ou o fato de que o império ocupou o Turcomenistão atual. Isso explicaria a sugestão de que os gaznévidas e até mesmo algumas dinastias menores que dominaram partes da Índia foram turcomenas.

Em relação a Nisa, que foi capital do Império Parta (século III), novamente o museu presenta um rico acervo de objetos, particularmente ritões (copos no formato de chifre para consumo de bebidas, geralmente esculpidos com ricos detalhes). A cultura parta era sincrética, contendo elementos locais centro-asiáticos, persas e gregos. Sua “herança” poderia ser clamada por muitos povos diferentes — os gregos atuais, os iranianos atuais, até mesmo os afegães. Não vi escrito no museu, porém, em nenhum lugar que o império parta era “turcomeno”, embora a forma como os objetos partas são apresentados leva o observador distraído a pensar exatamente isso.

A manipulação da história no museu se faz também, por outro lado, com as omissões seletivas. Antes de ir embora, F havia visitado o museu sozinho e, ao voltar, me confessou seu estranhamento por não ter visto nada nele sobre o período soviético do Turcomenistão, mas também reconheceu que sua visita havia sido rápida demais: “Quem sabe você encontre alguma coisa, eu não vi.” Eu estava cético de que não havia nada. Imaginei que o período soviético estaria todo concentrado em um andar ou em uma sala que F, justamente na sua pressa, não havia visitado.

Após ficar boquiaberto com as exposições dos impérios supostamente turcomenos da idade média, notei que praticamente não havia mais nada para se ver. Essas exposições estavam no segundo andar do magnífico edifício. Havia algo no andar térreo, perto da entrada, mas não me pareceu ser muita coisa vendo de cima. Desci e decidi conversar com uma funcionária. Disse a ela o que estava procurando. “Sim, claro, temos algo sobre o período soviético, venha”, respondeu. Segui a jovem, que permaneceu em silêncio, e poucos passos depois ela parou em frente a uma série de painéis com fotos de estudantes em escolas, todas em branco e preto, tiradas no período do comunismo entre os anos de 1930 e 1960. As legendas eram puramente descritivas. Era uma exposição temática, todas as fotos mostravam aulas de alfabetização. Eram umas 20 fotos.

— É só isso que vocês têm, neste museu, sobre a era soviética? — perguntei para a moça, com respeito e sincera curiosidade e, ao mesmo tempo, sem deixar esconder minha incredulidade.
— Sim, só isso — disse, olhando para o chão.
— Mas por quê?
— Não sei — respondeu. Tive a impressão que ela estava falando a verdade e que ficou incomodada.

A incredulidade continuou. Eu até poderia entender o passado soviético sendo apagado na busca de um novo e glorioso presente imensamente nacionalista (sendo a estátua de Lênin de Ashgabat uma exceção apenas porque o líder soviético pode ser considerado o arauto da independência turcomena por sua defesa da "autodeterminação dos povos"). Entretanto, a manipulação da história no museu prosseguiu até mesmo no período pós-independência. O primeiro presidente do Turcomenistão, o pai da pátria, Saparmurat Niyazov, que espalhou estátuas de ouro por Ashgabat e moldou a ideologia hoje seguida pelo Arkadag, tem presença discretíssima no museu. Contei o total de quatro, apenas quatro, fotos de Niyazov. Também vi sendo exibida a Rukhnama (o livro do presidente que se tornou sua bíblia no governo de Niyazov, leitura obrigatória por crianças na escola) ao lado de traduções da mesma obra para várias línguas. E isso era tudo. Tudo o que vi no museu sobre a importantíssima primeira etapa da história independente do país, sob a liderança de seu primeiro presidente.

Por outro lado, o atual presidente reservou para si um museu inteiro, separado. Trata-se do "Museu do Presidente do Turcomenistão", que apresenta, segundo seu site em inglês, "a história do desenvolvimento do Estado a partir da data em que Gurbanguly Berdimuhamedow se tornou presidente". Isso, inevitavelmente, com lindas fotos do Arkadag e muita, infinita bajulação, num ambiente deslumbrante, de muito brilho, limpeza e luxo, parecendo o saguão de um hotel cinco estrelas. Decidi não visitar esse museu. Achei que seria um pouco cansativo.


* * *

Tolkuchka (...), com o multitudinário elenco colorido de milhares de pessoas, é um mercado centro-asiático tal como se tivesse sido concebido por Cecil B. DeMille. Ele se espalha por hectares de deserto nos limites da cidade, com cercados para camelos e bodes, avenidas de mulheres, com vestidos vermelhos, agachando em frente a bijuterias de prata à venda e vilarejos de caminhões nos quais loquazes uzbeques negociam de sementes de pistache a componentes para carros. O que quer que você queira comprar é vendido no Tolkuchka. Se prepare para pechinchar.
- Lonely Planet Central Asia, second edition (abril de 2000)

Era assim que o guia que comprei antes da minha primeira viagem como turista à Ásia Central (em 2003) descrevia o mais famoso mercado da região de Ashgabat. Era uma descrição tão marcante que nunca saiu da minha cabeça. Imaginava o Tolkuchka (russo para "mercado de pulgas") como um lugar realmente grandioso, à sombra da cordilheira Kopet Dag, com mercadores de camelos do Karakum disputando o espaço com vendedores da mais fina seda de Margilan, persas com as mais maravilhosas romãs, chineses com sua porcelana de rara beleza, mascates do Punjab com cheirosas especiarias, peregrinos a caminho ou vindo de Meca, mulheres misteriosas com os rostos cobertos e longos vestidos coloridos apenas sugerindo as curvas voluptuosas de seus quadris. Na minha cabeça, uma dessas mulheres me sequestrava para algum lugar secreto e iniciávamos uma longa sessão de paixão e sudorese. A melhor materialização da canção Year of the Cat, do escocês Al Stewart:

She doesn't give you time for questions
As she locks up your arm in hers
And you follow 'til your sense of which direction
Completely disappears
By the blue tiled walls near the market stalls
There's a hidden door she leads you to
These days, she says, I feel my life
Just like a river running through
The year of the cat


Uma poderosa fantasia.

Mas o mercado, tal como existia na época de edição do guia, tal como existiu por séculos como personificação da Rota da Seda, mesmo nos tempo soviéticos, foi obliterado pela sanha higienista de Berdimuhamedow. Na Ásia Central, não apenas no Uzbequistão esse hábito modernizador questionável de reconstruir tudo "a limpo" está em voga. Não conheci a Ashgabat de décadas passadas, as breves descrições de Ryszard Kapuscinski em Imperium (1993) são a única, e limitada, imagem que tenho de como foi a capital no passado. Logo, a transformação atual para um coleção esdrúxula de prédios brancos e monumentos não teve muito efeito em mim. No tocante ao mercado Tolkuchka, contudo, posso dizer que o "conheci", e bem, antes de vir para cá. O visitei muitas, muitas vezes, com minha imaginação sempre alimentada pela descrição marcante do Lonely Planet e pela linda canção de Al Stewart.

O Tolkuchka foi transferido, em 2011, para novas e modernas instalações e se transformou num cartão postal da Altyn Asyr, a era de ouro do presidente. Virou mais um marco "glorioso" do país, mais exemplo de branding doméstico para sustentar o regime totalitário.

O taxista pareceu feliz quando lhe pedi para me levar até o mercado. Logo entendi. Ficava longe do centro e ele iria faturar bem pela corrida. Tivemos que pegar uma estrada e, pelo caminho, os prédios brancos da capital logo desapareceram, dando espaço ao já familiar universo vazio do início do deserto, salpicado por alguns conjuntos de casas. Exatamente o cenário que imaginava, imenso, aberto. "Ele ficava deste lado", indicou o senhor gordinho, de bigode, na janela, apenas de forma genérica. Nada de mais na ponta de seu dedo indicador: areia, casas distantes, o céu azul. "Era uma bagunça! Uma bagunça! Agora está limpo, organizado. Muito melhor!", completou, com orgulho na voz. Ah, sim. Respondi. Consigo imaginar.

Ele me desembarcou em uma pequena cidade. São 154 hectares, cerca de 1,5 milhão de metros quadrados. O carro havia atravessado um portal e estacionado ao lado do que pareciam ser grandes pavilhões. Me disse para caminhar em direção a uma torre de relógio, visível a uns duzentos metros. Ao meu redor, pouca gente. Era meio-dia, fazia um sol forte, me disseram que o mercado estaria fervilhando.

O Tolkuchka, após a transformação renomeado (previsivelmente) Altyn Asyr, se apresentou como uma entendiante sequência desses galpões — vastas áreas cobertas, de alvenaria bem feita, com portões separados, cada um deles identificado com letras e números, com precisão cartográfica. Brancos, limpos, tomados por espaços separados para cada tipo de produto, com balcões para cada vendedor, com espaço para que eles pendurem suas ofertas. O mapa do mercado procura copiar um ornamento usado em carpetes da província de Ahal, onde fica Ashgabat. O primeiro galpão que visitei, após saltar do táxi, era dedicado a ferramentas e ferragens. Ele acaba, atravessa-se uma rua e chega-se a outro igual, de produtos para carros. São galpões imensos, tão grandes que me pareceu que ainda não se encontrou vendedores suficientes para preencher os espaços em todos eles.



Na maratona de visitar cada um dos pavilhões, me surpreendi ao constatar que não era o de alimentos o mais lotado. Havia muita gente comprando frutas e verduras, mas nada se comparado à quantidade de pessoas no galpão de material escolar. Explica-se: o Turcomenistão, como os demais países da Ásia Central, tem uma abundância de crianças, sendo que o mais comum são famílias com mais de um rebento. E eu visitei o mercado quando elas estavam prestes a voltar aos estudos após as férias de verão. À venda, cadernos, cadernos e mais cadernos com a bandeira nacional, com os cavalos da raça nacional, com o brasão nacional. Estranhíssimo, porém, que nenhum desses cadernos trazia uma foto sorridente do presidente na capa. Talvez por um pouco de modéstia de Berdimuhamedow.

Havia um galpão separado para os vendedores de amuletos. Eis outra característica singular dos turcomenos: por aqui, o Islã foi ainda mais mudado pelas crenças pré-islâmicas do que em vizinhos do norte. No Uzbequistão e em outros países de lá, o sincretismo com a fé ancestral é mais visível pelo sufismo, pela presença dos mazars, as tumbas de "homens santos", ou na queima de ervas para afastar os maus espíritos (como vi em Nukus). No Tolkuchka, encontrei singulares objetos, produzidos em massa, contra o mau-olhado: pulseiras feitas com lã de dromedário ou carneiro, colares, pingentes. Para minha grande surpresa, alguns têm o olho grego (ou olho turco). Não esperava ver um símbolo tão conhecido no Brasil por aqui também, mas, pensando depois, faz sentido. O amuleto deve ter sido levado ao Brasil por imigrantes árabes e turcos, tão numerosos em nosso país.

Exploro os amuletos em um balcão. A vendedora, uma senhora em seus 70 anos, falava russo com um sotaque fortíssimo e virtualmente inexpugnável. Tinha a pele morena enrugada e aveludada; viu décadas de sol arrasador. Seu olhos traziam uma certa empolgação cansada, como se algo nela a empurrasse para falar, sorrir e negociar contra a sua própria vontade. Olhos negros, lacrimejantes.

Me recomendou três pulseiras de lã de carneiro. Não consegui me desvencilhar. Pedi também um chapéu que ela tinha à venda em uma pilha ao lado dos talismãs. Colocou tudo numa sacola antes de me falar o preço. Eu não queria barganhar. Tome o dinheiro, minha senhora. Tome e tenha saúde.

O chapéu, disse ela, era abençoado pelo deserto. "Que ele te dê saúde e sorte nas suas jornadas."

Olhos negros, lacrimejantes. Nos meus olhos.

Ela apertou minha mão e sorriu. Silêncio.

O mercado, como no meu imaginário, não mais existe. Mas, apesar de tudo, algum mistério irresistível ainda sobrevive.

Ashgabat, 31/8, 11h20

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Wednesday 12 July 2023

Novas Fronteiras (XXXII) - Ashgabat, Turcomenistão



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29/8/2018

Os turcomenos têm imenso orgulho de seus tapetes. É tanta paixão pelos finíssimos objetos que os padrões decorativos tradicionais de tapetes associados a cinco tribos do país foram incluídos na bandeira nacional. Eles aparecem dentro de uma faixa vertical vermelha no lado esquerdo da bandeira, perto de onde vai o mastro. São os padrões, de baixo para cima, das tribos Tekke, Yomut, Saryk, Choudur e Ersary. Os símbolos são ricos em detalhes e, por isso, a bandeira do Turcomenistão é considerada por especialistas em vexicologia a mais complexa do mundo. Não sou especialista em bandeiras, mas posso dizer que considero a turcomena a mais bonita que já vi.

A paixão (qualquer que seja) frequentemente leva a extremos e, num país de extremos, ainda mais em Ashgabat, a capital de extremos do país dos extremos, não poderia faltar um exagero associado ao celebrado objeto. Aqui jaz, no Museu Nacional dos Tapetes, o tapete que até uns anos atrás, aparentemente, era o maior feito à mão em todo o mundo. Fica em uma sala especial e só pode ser avistado de uma plataforma que funciona como mirante. Feito em 2001, ele tem 301 metros quadrados e pesa 1,2 tonelada. O Livro Guiness dos Recordes diz que em 2007 foi feito no Irã um tapete muito maior, com 5,6 mil metros quadrados, que foi instalado em uma mesquita em Abu Dhabi. Ainda que não seja mais "o maior", o objeto turcomeno é uma maravilha para se ver e admirar por respeito ao talento e tradição cultural turcomenas, mesmo se o tema tapetes não seja uma grande paixão do visitante. Eu próprio nunca tive nenhum interesse por tapetes. Tenho um em casa, mas o principal motivo da compra não foi decoração, foi ter uma proteção para meus pés, isolando-os do chão frio das noites de inverno.

Esse valor que os turcomenos dão aos tapetes tem origem no passado nômade do país. Até meados do século passado, as tribos turcomenas tinham o hábito de produzir seus próprios tapetes para uso dentro de suas iurtas; os objetos eram feitos todos à mão, usando teares artesanais, com os produtos disponíveis: a lã dos rebanhos de ovelhas ou dromedários e as tinturas naturais. Aí surgiram os símbolos, incluídos na bandeira nacional, que distinguiam os tapetes dos membros das diferentes tribos. Não é exagero falar que, para esses nômades de antigamente, o tapete feito à mão era provavelmente a posse de maior valor, dado o esforço para produzir um único deles. Em geral, os tapetes das famílias eram pequenos, já que produzi-los era algo limitado pelo tamanho de seus teares rústicos; objetos maiores eram raros porque eram feitos apenas quando várias famílias uniam esforços. Outra característica desses tapetes antigos eram as falhas, o que lhes dava um charme especial e aumentava o valor dos que chegavam a mercados no exterior. Esse valor, evidentemente, determinaria o futuro do objeto. No Paquistão e no Irã, começaram a surgir cópias, chamadas de tapetes turcomenos, produzidas com tinturas artificiais e outros materiais não usados nos tapetes originais, como o algodão. No período da URSS, surgiu no República Socialista Soviética Turcomena uma legítima indústria de tecelagem de tapetes, com produção em larga escala e a concorrência de turcomenos radicados no Afeganistão. Hoje em dia, a produção familiar dos tapetes é algo raro, o que causa preocupação com a perda de uma cultura de séculos. Os tapetes antigos, especialmente os feitos segundo os métodos tradicionais, são hoje proibidos de serem exportados. Aliás, todos os tapetes comprados no país por pessoas que tenham o interesse de levá-los consigo para o exterior precisam passar por uma avaliação de especialistas que vão justamente atestar que eles são, de fato, turcomenos e que não são antiguidades.

Fui convencido a visitar o Museu Nacional dos Tapetes por F, que lembrou que nele estava a tal maravilha de 1,2 tonelada e argumentou justamente que, se a cultura turcomena coloca tal protagonismo nos tapetes, qualquer interessado em conhecer melhor o país e sua cultura precisaria, necessariamente, estudar melhor o que há por trás dos tecidos entrelaçados, das cores fortes, da geometria misteriosa. Novamente, meu amigo me fez abrir os olhos e, neste caso, não poderia jamais discordar.

A visita, entretanto, foi uma tremenda armadilha. Falo isso sem nenhum rancor e, agora, pensando um pouco, vejo que foi até divertido, ainda que desesperador quando estava acontecendo.

F me revelou a caminho do museu seu desejo de comprar e levar para casa um tapete pequeno. Disse ele que, com a exigência burocrática que as autoridades turcomenas impõem à exportação de tapetes, afetando mesmo o incauto turista querendo levar apenas um pequenino para o hall de entrada de sua casa, não existiria melhor lugar para comprar um do que na loja do próprio museu, onde há os tais especialistas que já estão acostumados com turistas e sabem bem o procedimento para emitir a autorização de exportação. F se empolgou e perguntou então se eu o ajudaria na comunicação com os funcionários para fazer a compra. Sim, claro, respondi. Disse que, se ninguém falasse inglês, evidentemente eu o ajudaria com o russo. Pensei: é óbvio que alguém no museu fala inglês, o lugar deve ter sempre visitantes estrangeiros que não falam russo nem, muito menos, turcomeno.

O lugar estava absolutamente sem nenhum visitante. Fomos bem-recebidos logo na entrada por uma jovem senhora, com seus 40 anos, vestido típico e a plataforma-tiara na cabeça. Falava umas palavras em inglês. Literalmente as seguintes palavras: "Olá, desculpe não falo bem inglês". Eu disse então que eu falava um pouco de russo, e ela, reagindo com um sorriso de orelha a orelha, disse então que não teríamos problemas. "Sim, claro, vendemos tapetes da mais alta qualidade", disse na língua de Pushkin. Nos conduziu então à loja do museu, onde vários modelos de tapete aguardavam F.

Novamente, expectativas erradas. Eu esperava que, no museu, não houvesse necessidade de negociar preços, como é o caso nos mercados abertos e feiras livres de toda a Ásia Central. Imaginava que os tapetes tivessem preços fixos de forma a tornar a experiência de compra mais confortável para os turistas do Ocidente. De fato, cada tapete tinha um preço, mas F fez questão de pechinchar. E o funcionário que o atendeu na loja do museu respondeu de forma receptiva, entrando no jogo milenar. Eu, no meio, fiquei sendo o tradutor da rodada de torgovatsya, negociação de preço. Caro, barato; este tapete, aquele; este preço, aquele preço; é muito, é pouco; quero ver este, quero ver aquele; me dá um desconto, mais desconto, aquele desconto, outro desconto; assim não dá, vou embora, abaixa o valor que eu compro agora mesmo, vou pensar. Minha cabeça virou uma bola de futebol cheia de cifrões, sendo chutada de um lado para o outro sem parar. Por fim, após 20 minutos ou meia hora, por cerca de US$ 200, uma absoluta fortuna para o turcomeno médio, F finalizou a partida. Aceitou levar um bonito tapete no estilo da região turcomena de Balkan, na costa do Mar Cáspio.

Após tal sessão de atividade intelectual intensa, na qual senti como se meu cérebro tivesse acabado de passar por um moedor de carne, veio a visita propriamente dita ao museu. Talvez por gratidão pela compra, talvez por tédio, talvez por pura bondade, a senhora que nos recebeu, muito séria, se ofereceu para ser de graça nosso guia particular no recorrido pelo local.

F, de novo, se empolgou. Eu, por alguns segundos, cobri meu rosto com as palmas das mãos.

A mulher tinha um conhecimento enciclopédico de tapetes turcomenos. Realmente impressionante. E falava rápido. Começou nos levando para um andar onde tapetes estavam ordenados, dos mais antigos para os mais modernos, mostrando a evolução da técnica de tear manual. Na hora seguinte, eu assumi como nunca o papel de tradutor. Estava fazendo o trabalho do russo para o espanhol — uma língua que, pese a minha ancestralidade, filho de espanhóis que sou, não é a minha principal. Nunca estudei, apenas falava em casa com meus pais. De fato, talvez seja a minha terceira em termos de fluência, atrás do inglês, ainda mais neste caso em que eu não estava familiarizado com os termos ligados ao universo dos tapetes e teares nem em espanhol e muito menos em russo. Meu entendimento do russo nesse caso se baseou muito em pedir à senhora que explicasse o que dizia com outras palavras, ou em instinto baseado em outras palavras semelhantes que conhecia em russo.

Uma longa hora. Eu suava, nervoso, tentando desesperadamente entender aquela senhora falando como uma metralhadora e encontrar palavras apropriadas no espanhol. Pedindo para a senhora falar devagar e sendo ignorado. Frequentemente derrapando do espanhol para o português, ou do espanhol para o inglês. F, talvez, sequer tenha percebido naquele momento o grau de tormento a que estava me submetendo. E a guia apenas parecia interessada em passar o máximo de informação no menor tempo possível. Imaginei que não deveria receber muitos turistas, talvez nossa visita tenha sido o momento mais importante do seu dia, ou de sua semana, ou de seu ano. Finalmente uma maneira de provar para si mesma sua utilidade, sentir-se orgulhosa de seu trabalho, após tanto tempo de expectativa na porta do museu, esperando algum visitante.

Segundo ela, a fabricação no Turcomenistão é garantia de qualidade do tapete (ela não poderia falar outra coisa), mas é preciso cautela ao se deparar com um, pois há muitos vendedores que tentam enganar o comprador, fingindo que o tapete é turcomeno quando não é. O duro é justamente identificar corretamente um tapete que é de fato do país. Para ser um exímio identificador, é preciso estudar anos. Não basta saber o símbolo da tribo bordado no produto, que pode ser facilmente falsificado; é preciso entender a tradição da estampa de cada uma das regiões do país. Além de Balkan, a região do tapete comprado por F, as outras quatro províncias do Turcomenistão têm elementos característicos. A região de Ahal, por exemplo, ao redor da capital e associada principalmente à tripo Tekke, usa padrões abstratos. Trata-se do "tapete padrão" turcomeno, o mais comum, nada de se estranhar visto que a tribo é a mais poderosa e numerosa do país. Os de Mary, diferentemente dos outros, têm a cor preta. Mas todas essas são apenas referências vagas; a identificação dos tapetes está longe de ser uma ciência exata. A criatividade do tecelão fala alto, dificultando tudo ainda mais, e certos designs podem ser bem raros. Tudo isso pesa no preço final, além do material, o tamanho, a técnica usada (feito à mão ou não, ou feito à mão de uma maneira peculiar ou não) e o valor histórico.

O passeio pelo museu terminou justamente em frente a seu maior orgulho, o gigantesco tapete considerado por algum tempo o maior feito à mão do mundo. Após admirá-lo, nos despedimos da senhora, que nos acompanhou até a porta. F me agradeceu com alegria, estava exultante, felicíssimo com seu brinquedo embaixo do braço, com toda a papelada devidamente em ordem. Mas eu, talvez, estivesse ainda mais feliz do que ele, mas pelo motivo de ter superado aquela imensamente dolorosa tortura linguística. Ainda era de tarde, fazia sol, F queria passear e propôs que fossemos para o hotel apenas para deixar o tapete e depois sair de novo, imediatamente. Disse a ele que ficasse a vontade para fazer o que quisesse, mas que eu tinha outros planos.

Me tranquei no quarto e me deitei na cama, por fim envolto no mais reconfortante silêncio.


* * *

Uma hora depois, ainda era de dia. Eu não estava completamente recuperado da maratona de tradução, mas acordei e voltei a me encontrar com F. Nos vimos atrás do hotel, em uma praça onde achamos raros ecos do passado do Turcomenistão.

Na praça, o primeiro que vi foi um prédio chamativo onde funcionava o arquivo do Partido Comunista da República Soviética Turcomena. O prédio parecia ter sido inteiramente reformado e mantinha uma incrível fachada de concreto dos anos 1970, com esculturas em alto relevo mesclando a iconografia soviética com elementos da cultura local. Na mesma linha, entretanto, o mais interessante da praça não era esse prédio, mas o que estava logo à frente dele: uma estátua de Lênin, a primeira que vi no país. Com um visual totalmente diferente de qualquer outra.

Em alguns países da ex-URSS, as estátuas de Lênin, onipresentes nos tempos do comunismo, estão hoje extintas ou em franco processo de extermínio. Isso se deve à tensão política com a Rússia e ao fato de que Lênin é associado por muitos à dominação russa. É o caso da Ucrânia e dos países Bálticos, nos quais, francamente, é um desafio encontrar qualquer estátua soviética (não apenas de Lênin) ainda de pé. Na Ásia Central, as estátuas do líder da Revolução de Outubro desapareceram no Uzbequistão (substituídas por estátuas de Tamerlão). No Tajiquistão e no Quirguistão são ainda razoavelmente fáceis de encontrar — lembro de ter visto estátuas em Khojand, a cidade mais importante do norte do Tajiquistão, e em Bishkek e Kochkor, no Quirguistão. No Turcomenistão, com a força do culto de personalidade aos presidentes após a independência, não esperava ver absolutamente nenhuma. Mas o Lênin de Ashgabat, inaugurado em 1927, sobrevive. Feita de bronze, a pequena estátua apresenta o líder com sua pose tradicional, gesticulando, energético e audacioso, como que fazendo um discurso. Entretanto, outros elementos do conjunto cercando a pequena estátua a transportam para um mundo paralelo, um mundo que parece em completa oposição ao frio rigor comunista. E esses elementos teriam sido incorporados à obra pelo próprio arquiteto responsável, Andrey Karelin (1866-1928). Não são acréscimos modernos, pós-independência.

O conjunto do plinto montado em uma plataforma com portas e uma grade é todo decorado com padrões tradicionais, azulejos que lembram algum tipo de tapete ou palácio ancestral. Essa decoração sugere um tributo à história pré-soviética do Turcomenistão e à religião muçulmana. Quase nada russo — nem mesmo o nome de Lênin, presente no alfabeto do Islã (embora no início da URSS o alfabeto árabe ainda fosse tolerado na região; a adoção do alfabeto cirílico só viria sob Stálin em 1936). Os mais evidentes ecos soviéticos são a estátua em si, a cor vermelha predominante da plataforma e o slogan leninista, gravado nas paredes externas da plataforma em russo e em turcomeno ("O Leninismo é o caminho para a emancipação dos povos do Oriente", uma referência ao período inicial da URSS, quando Lênin prometia a autodeterminação das nações soviéticas).

Interessante. No Turcomenistão ultranacionalista, uma das poucas referências ao passado soviético ainda toleradas é uma estátua de Lênin em que apenas seu legado associado à promessa de autodeterminação do povo turcomeno é celebrado. Como se o passado soviético do Turcomenistão tivesse acabado depois de Stálin. Dessa forma, Lênin, e em geral o passado soviético, é apenas tolerado no país ao reforçar a atual ideologia. E preservada, quem sabe, a estátua de Lênin atua como um recado ou um lembrete aos saudosos da era do Comunismo, como que indicando que o momento atual é a concretização daquela promessa do líder de então. Uma das poucas coisas do passado comunista que, segundo o governo atual, merecem ser celebradas e admiradas: uma promessa nunca cumprida nos tempos da URSS e que agora se torna realidade.

Ashgabat, 29/8, 23h30

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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