Sunday 29 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (IX): Shymkent

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3/9/2012

Várias batalhas estão sendo travadas no mundo islâmico no momento. Mas nos ex-países soviéticos de maioria muçulmana, tomados por um revivalismo religioso desde o final da URSS, essas batalhas ganham contornos diferentes, que vão muito além da religião. Elas estão marcando a alma dessas nações que estão ainda buscando estabelecer sua identidade, após anos de Homo sovieticus.

Uma das características do Islã no Cazaquistão é a força do sufismo, o lado mais místico dessa religião. O sufismo reúne ordens que buscam, de várias formas (podem ser rezas, cânticos ou mesmo dança), aproximar mais e mais os fiéis a Alá. Há um debate sobre o sufismo no país, uma discussão norteada pela aumento da influência de uma versão mais conservadora do Islã sunita, o wahhabismo - que se propaga mundialmente a partir da Arábia Saudita e que vê problemas no sufismo. Rustem me mostrou como ele e seus compatriotas estão encarando esse processo.

Meu amigo se prontificou a ir comigo a Sayram. Trata-se de um subúrbio de Shymkent, a cerca de 20 km do meu hotel. Sayram, cuja população é majoritariamente uzbeque, é um centro de peregrinação sufi, como fica logo claro pela quantidade de mazars, os mausoléus de "santos" (como o mausoléu de Aisha Bibi perto de Taraz). Esses locais, geralmente modestos, atraem pessoas que lá vão rezar e buscar alguma bênção, fazer pedidos e ficar em silêncio contemplativo. Os locais obviamente não são mesquitas - por aqui, eles são pequenos, às vezes simples cubos com uma arquitetura islâmica pouco refinada, de tijolos, luas crescentes e inscrições em alfabeto árabe, além de, é claro, a tumba do "santo". As pessoas acham que, nesses locais, ficam mais perto do Criador. A lógica é que, ao se aproximarem de uma pessoa iluminada por Alá quando viva, elas irão também receber graças.

Como ocorreu em Aisha Bibi, visitei alguns locais e não senti nada além de uma atmosfera boa de paz e serenidade, uma sensação de calor na alma, de beleza e de amor. Lá encontrei várias pessoas em silêncio, buscando algo invisível. Mas Rustem não vê futuro para esses locais.

Para ele, os inúmeros mausoléus em Sayram em breve vão estar às moscas porque, um dia, todas essas pessoas serão educadas para observar o "verdadeiro" Islã. O "verdadeiro" Islã, lembra ele, não prevê a veneração de "santos". De fato, "santos", no contexto católico do termo, não existem no Islã mais conservador, que prega uma relação muito pessoal e direta entre o fiel e Alá, sem sequer (no caso do sunismo, o ramo majoritário da fé) a existência de um clero. Rustem acredita que muitos dos que visitam os lindos mazars, alguns construídos no século X, rezam para os "santos", não para Alá. Ou seja, para essas pessoas, os "santos" seriam "deuses". "Mas o único Deus é Alá", diz, com uma ponta de desprezo.

Meu amigo continua. Explica o caso de seu próprio irmão, que tem uma visão mais ortodoxa. Enquanto Rustem acredita que os mazars simplesmente vão desaparecer naturalmente à medida que as pessoas conheçam melhor o "verdadeiro" Islã, o irmão, que acabou de voltar da peregrinação a Meca, tem raiva dos sufis porque os sufis, segundo ele, perpetuam uma visão errada do Islã. Seguindo a lógica, eles devem ser ativamente desestimulados e até mesmo combatidos. Os wahhabistas chegam a extremos nessa convicção, cometendo ataques contra seus próprios irmãos de religião e, claro, os "infiéis" que não seguem o Islã.

Com o Sol leve da manhã batendo nas cúpulas de tijolos dos mausoléus, a paz reinando nos floridos jardins, falo a Rustem sobre minha preocupação com o fato de que o sufismo é parte da história e tradição dos cazaques, dos centro-asiáticos em geral, e opino que, por isso, deveria ser preservado. É parte do islã tradicional daqui. Antropólogos identificam nos rituais sufis traços de cerimônias e crenças que antecedem a chegada dos primeiros muçulmanos à região. Além disso, embora rezar para "santos" seja algo errado segundo o Islã mais conservador, questiono se essas pessoas nos mausoléus realmente estão rezando para eles como rezam para Alá. Questiono se não estão fazendo o que se faz por aqui há centenas de anos - buscar, nesses mausoléus, simplesmente inspiração para serem bons muçulmanos, o gostoso calor no coração ou consolo que vem da sensação de estar um pouquinho mais próximos de Alá. Como muitos cristãos, que encontram uma paz meio inexplicável ao visitar uma igreja. Nesse caso, seria errado que os moradores de Sayram visitem os mazars?

Digo: o Islã é lindo em sua diversidade. Do Marrocos às Filipinas, todos buscam Alá, mas com suas variações regionais. A religião islâmica sempre foi flexível, e foi isso justamente que permitiu que ela se expandisse tanto. Mas os conservadores wahhabistas, com o poder do petróleo saudita, espalham uma visão estrita, de leis definitivas e sem discussão. Como se o Corão, assim como a Bíblia, não fosse dado a interpretações. Por serem muitas vezes literais, por desprezarem sábios que dedicaram séculos estudando as sutilezas do Texto, os wahhabistas criaram um dilema existencial em todos os muçulmanos, fomentaram um conflito que agora se traduz em extremismo. Quem está certo, perguntam. Sendo que não há resposta. A pergunta está errada.

Rustem ouve minha argumentação e não parece convencido. Mas, por ora, visita os mazars comigo e observamos, juntos e com respeito, os fiéis. A maioria aparenta ter mais de 50 anos. Alguns levam seus netinhos. Será que esses netinhos levarão seus próprios filhos para visitar estes santuários?


* * *

De volta a Shymkent, Rustem me fala de sua família. A tradição por aqui, vinda do passado em que os cazaques eram todos nômades, é os pais do marido morarem com ele, todos juntos com a esposa e os filhos. A mulher abandona sua primeira família após o casamento. Também é comum os irmãos do marido dividirem o mesmo teto com o casal. Como resultado, as casas geralmente têm muitos moradores - no caso da de Rustem, moram com ele seu pai e sua mãe, sua esposa, o filho do casal, o irmão de Rustem e a cunhada de Rustem. Sete pessoas.

Outra tradição aqui, que mostra novamente a força das famílias em comparação com o que vemos nas sociedades ocidentais, é a regra das sete gerações, o jeti ata, que eu já havia conhecido no meu curto período vivendo em Almaty. Se espera que todas as pessoas no Cazaquistão saibam recitar de cor o nome de seus antepassados da linha paterna até pelo menos a sétima geração anterior - pai, avô paterno, bisavô, daí em diante até a sétima geração. A ideia, nos séculos passados, era permitir aos cazaques saber quem era parente de quem, evitando, assim, casamentos entre membros de sua família estendida. A genealogia também permitia uma clara associação entre a pessoa e os diferentes níveis de organização da sociedade cazaque - nível de família, o nível de clã mais acima e, por fim, o nível de confederação ou horda tribal (jus), unindo uma nação nas vastas estepes vazias. Com a colonização do Império Russo no século XIX, a sovietização no século XX, a ocidentalização após a independência e a urbanização durante todo esses anos, cada vez mais estas tradições vão se erodindo. Já não é tão raro encontrar um cazaque que não saiba direito seu jeti ata.

Por aqui em Shymkent, as tradições cazaques falam bem mais alto do que na grande Almaty. Meu colega confirma. Além de as pessoas não poderem se casar se coincidir algum de seus sete ancestrais da linha paterna, se noiva e noivo forem de religiões diferentes, é ainda mais improvável que as famílias aprovem o casamento. A mesma coisa se forem de etnias diferentes: um uzbeque e uma cazaque, por exemplo. A etnia tem sido um empecilho especialmente entre as elites. Mas, diz Rustem, a religião é uma barreira muito maior. E não é à toa que, com tantos poréns, existam no Cazaquistão tantas histórias de amores trágicos, como a de Aisha Bibi, com fugas, desonras e mortes. E, entre as famílias pobres do interior, pipocam histórias em que o noivo sequestra a mulher para tomá-la como esposa. Casos assim, também no Quirguistão, já ganharam manchetes no Ocidente. Causaram escândalo entre os defensores de direitos humanos.

Rustem se despede de mim. Vai trabalhar e, eu, vou passear pela cidade. Nos restaurantes e bares das ruas sombreadas do centro, a língua cazaque é onipresente. Vinte anos após o fim da URSS, o russo está em extinção: canso de ver cartazes apenas em cazaque, sem tradução para o russo, ainda muito visível em Almaty. Nos bares, frequentemente, o aviso: "vende-se cerveja sem álcool". Mais um sinal da forte influência do Islã.

Uma cidade com uma cara cazaque mais pura, pouca mistura com os russos que aqui tiveram poder tanto tempo, e em que o Islã, com suas cores centro-asiáticas, tão características, ainda sobrevive, ainda que ameaçado.

Shymkent, 4/9, 8h05

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Wednesday 25 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (VIII): Taraz

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2/9/2012

Um frio estranho na barriga.

Com os primeiros raios de sol, seis da manhã, o fiscal do trem bateu na porta do compartimento para avisar sobre a próxima parada. Eu já tinha acordado devido ao aviso do companheiro da cama ao lado. Arrumei tudo rápido e me coloquei à espera que a cidade chegasse, parado em frente a uma porta entre dois vagões. A janela da porta mostrava passando com velocidade, novamente, uma paisagem seca, vazia. As casas de Taraz foram aparecendo, aos poucos, à medida que o lusco-fusco ia dando lugar à nitidez. Mais nitidez, casas surgindo bem perto do trilho, e o trem para.

A tensão da minha saída "na marra" de Almaty ficou para trás, e abraço o otimismo. Penso: nada pode estragar meu humor. Meu guia, guardado num grande bolso na bermuda, diz claramente - em frente à estação de trem há uma parada de ônibus. O ônibus me deixaria exatamente na esquina que é um lugar perfeito para começar um passeio a pé e minha sessão de fotos matinal. Não vejo nuvens no céu. Tudo perfeito. Apesar do frio estranho na barriga.

O ônibus chega logo, o único que para no ponto, e o senhor cobrador não entendeu direito em qual rua eu queria descer. E eu não percebo que ele não entendeu. Ele começa a dirigir, mas me diz para descer logo, não dá uns cinco minutos de jornada. Penso: bom, é uma cidade pequena, se não for aqui, eu me encontro, deve haver alguma indicação, alguma referência. Desço. A esquina de uma avenida com outra. Totalmente vazia. 6h30 da manhã de um domingo.

Não demoro muito para perceber que estou perdido. Não vi nenhum prédio dos que esperava ver, não encontrei placas com os nomes das ruas, a direção das avenidas não batia com o que eu esperava ver na minha bússola. Isso já me acontecera antes, e a minha estratégia já pensada para esses casos, muito previsível, é sair perguntando, para quem eu encontrar, como chegar onde quero. Essa costuma ser uma boa ideia também para fazer um contato bem-humorado com os simpáticos moradores dos locais que visito. Neste caso, imaginei, bastava parar em algum lugar para tomar um café da manhã, comer algo - eu estava morrendo de fome, nada melhor mesmo.

Entretanto, na pacata Taraz, às 6h30 da manhã, ainda mais no que não parecia ser o centro da cidade, não havia uma alma viva. Ao meu redor, só poeira, árvores, casas e nenhum lugar para tomar café.

Andei sem rumo por uma meia hora. Continuei procurando o nome das ruas - e nada, nada, nada. Nenhuma placa indicando o centro ou algum lugar com um nome. Por fim, achei um taxista e mais um grupo de pessoas. O taxista estava em seu ponto, as pessoas, ali ao lado, em um restaurante (que ainda estava fechado; os garçons estavam fazendo limpeza). O taxista me deu uma explicação num russo muito rápido e difícil de compreender. Julguei ter entendido que o centro era bem perto e fácil de chegar, nada que justificasse pegar um táxi. Agradeci e segui meu caminho com as orientações que julguei ter entendido na cabeça. Mas, na saída, um jovem do grupo no restaurante, claramente não um dos garçons, me perguntou em inglês de onde eu era. Respondi, pensando que o sujeito de fato falava um pouco de inglês e poderia me ajudar, confirmando, pelo menos, o que eu havia entendido que o taxista havia dito.

Um grave, grave erro.

O sujeito - um jovem de uns 18 anos - estava ou bêbado ou drogado, ou os dois, e apenas achava que falava inglês. Não falava coisa com coisa. Sobre o lugar para onde eu ia (a rua que eu estava procurando), ele insistiu em saber exatamente o que eu queria ver lá. Eu estava indo para uns mausoléus, mas rapidamente percebi que, se eu falasse, ele ia querer ir comigo, e eu não queria companhia - especialmente não queria a companhia dele, bêbado. Não falei o que ele queria ouvir. Depois, o sujeito me disse que eu deveria ir para esquerda - o que me levaria de volta à estação ferroviária. Depois, o pior, ainda insistindo que queria "me ajudar", exigiu (exigiu) que eu fosse comprar roupas em uma loja que nem tinha aberto (de algum parente, talvez?). Depois disse que ia me chamar um táxi. Tentei explicar que não estava atrás da ajuda dele e só queria seguir as instruções do taxista e ir para o meu destino, a rua que eu buscava, e que eu preferia andar e procurar sozinho. Nada disso - eu ia ser ajudado por ele, sem discussão.

Decidi ignorar e sair andando na direção que o taxista me falou. Ele começou a me seguir. Continuei ignorando. Ele começou a ficar mais ameaçador, falando alto. Em dado momento, ele me alcançou e ficou na minha frente, berrando palavras sem significado nenhum para mim, bem alto.

Fiquei genuinamente com medo. Eu estava sozinho na rua com ele. Eu levava comigo todo meu dinheiro. Estava numa cidade desconhecida, ainda sem saber como chegar em algum lugar. Pensei em voltar, pedir para o taxista me levar, ou pedir ajuda no restaurante. Mas o taxista e o restaurante já tinham ficado bem para trás. Eu precisava de ajuda, e rápido, antes que aquele maluco pulasse no meu pescoço, o que ele parecia prestes a fazer.

Olhos nos olhos, ele gritando a dois metros de mim. Punhos fechados. Espumando pelos cantos da boca.

Olhei rapidamente ao redor. Eu estava em outra esquina. Lá perto, um senhor de meia idade estava varrendo a frente de sua loja fechada. Corri para ele e implorei - nessa altura com o russo ainda mais limitado do que o normal, por causa do nervosismo - para ele me ajudar. Disse que estava sendo perseguido por um bandido. Por um milagre, o senhor entendeu e disse para eu entrar na loja e trancou a porta.

Eu via o bêbado através da vitrine, gritando, cuspindo. Batendo com força no vidro. Dizendo, agora claramente, que o Cazaquistão é dos cazaques.

Passaram-se uns 20 minutos, e o maluco cansou de me esperar e desapareceu de vista. Ainda assim, temi que ele estivesse escondido em algum lugar e que pudesse me ver sair da loja. Pedi ao senhor que me indicasse onde eu poderia tomar café da manhã - de preferência um lugar entre quatro paredes. Mas não havia nenhum. A única coisa que havia era um hotel, do outro lado da rua, para o qual o senhor apontou pela janela. Não pensei duas vezes. Corri até lá. Entrei ofegante.

Mil e quinhentos tenge (cerca de US$ 13). Por essa quantia, entrei em um outro mundo em que eu (desesperadamente) precisava entrar. Era o buffet do hotel. Nada cinco estrelas: apenas garçonetes falando um russo compreensível e bem prestativas, mesas com talheres, pães, frutas, sucos, tudo à vontade, incluído no preço. Apesar de não ser um templo do luxo, era provavelmente era o melhor hotel da cidade. Que paraíso, que paraíso. Fiquei lá uma hora e meia, vendo os hóspedes se deliciarem, escrevendo meu diário, tomando litros de chá e, principalmente, ouvindo os principais sucessos de Julio Iglesias, tocados todos em sequência, repetidamente, baixinho, nos alto-falantes.


* * *

Recuperado do episódio de terror, mergulho na história.

Taraz tem orgulho de séculos. Como muitas cidades da ex-URSS, teve nomes e nomes. Taraz ou Talas (hoje nome de uma cidade vizinha, no Quirguistão) são os mais antigos. No século XIX se chamou Aulie-Ata. Depois, sob os soviéticos, recebeu o nome de um oficial soviético armênio, Mirzoyan, mas esse nome foi trocado quando Stálin, como fez com tantos, o executou durante os expurgos dos anos 30. Passou a se chamar Jambil e o nome persistiu até 1997, quando o presidente Nazarbayev, na sanha de restabelecer a identidade cazaque que antecedera a dominação russo-soviética, reverteu a cidade a seu nome ancestral. É tida como uma das mais velhas cidades do Cazaquistão, quiçá de toda a Ásia Central. O registro mais antigo estabelece que aqui foi construída uma fortaleza de uma confederação de nômades chineses há cerca de dois milênios. De fato, em 2001 a cidade comemorou, com o aval da Unesco, seus dois mil anos de existência.

Seu nome ecoa especialmente devido a talvez uma das batalhas mais importantes da história da Ásia. No ano 751, em algum lugar que não se sabe exatamente onde fica no vale do rio que passa pela cidade e sua vizinha Talas, os exércitos da Dinastia Tang da China e do Califado árabe Abássida se encontraram e cruzaram suas espadas. Historiadores atribuem à derrota dos chineses o fato de o Islã ter se firmado na Ásia Central, ajudando a diminuir a influência chinesa sobre a região.

Refletindo isso, a cidade tem alguns tesouros islâmicos. Visitei dois mausoléus no centro da cidade, o mausoléu Kharakhan e o Dauitbek. O primeiro, uma reconstrução do século 20 de uma estrutura do khanato karakhanida (dinastia que dominou vastas áreas da Ásia Central entre 840 e 1212, fazendo de Taraz uma de suas capitais), guardaria os restos de Kharakhan, ou Aulie-Ata, o mesmo que deu nome à cidade no passado. Aulie-Ata, ou Santo Pai, foi um rei local da dinastia. Seu mausoléu foi construído originalmente entre os séculos XI e XII. O outro teria os restos de um governador mongol local, morto em 1267, e foi reconstruído no século 19. Ambos estavam fechados (não fui capaz de ver se tinham tumbas mesmo) e apresentam fachadas simples, de tijolos. Ambas aparentando terem sido construídos semana passada, tamanho o esmero na reconstrução. Edificações assim são a alma desta terra, são o lembrete do passado e o orgulho de todos. Pena que sejam tão poucas as construções assim em Taraz, e todas estejam tão reconstruídas, tão "atualizadas". Não senti muita coisa nesses mausoléus.

Por outro lado, atrás de um deles há uma mesquita originalmente erguida entre séculos IX a XII, evidentemente também reconstruída depois. Nela, encontrei um mundo, ecos de um passado distante. Tetos baixos de madeira, escuridão, os tapetes macios no chão, apenas um mulá perdido em orações num canto. Lá fora, o Sol das 11h da manhã, já feroz. Dentro, a sombra fresca, quebrada apenas por algumas lâmpadas, aqui e ali.

O jovem mulá, seu rosto com feições quase invisíveis, se vira para mim, propõe uma prece. Eu e uma família que lá estava - mãe, pai, criança de colo - nos calamos, o mulá olha para o teto. Seu árabe flutua no ar, vira uma melodia, se transforma nos ecos.

Meditei por 20 minutos. A reza, meu mantra.

Mais da alma ancestral de Taraz me esperava a 18 km dali, já fora da cidade. Encontrei um ponto de táxi compartilhado e peguei uma estrada que segue em direção a Shymkent, onde eu iria dormir naquela noite. O táxi me deixou num povoado poeirento, sufocado pelo Sol. Uma hora da tarde. Apenas casas muito simples, zona rural. A passos lentos, castigado pela luz, venço uma rua de terra que sai da rodovia. As gotas de suor já caíam da minha testa quando os dois mausoléus que eu procurava aparecem, milagrosamente emoldurados por flores.

A lenda por trás do lindíssimo mausoléu de Aisha Bibi é intimamente ligada à história de Kharakhan, o do mausoléu em Taraz. Há versões diferentes, mas todas trazem a temática universal do amor proibido. Certa vez, no ano de 1080, Kharakhan teria feito uma viagem a Samarkand para se encontrar com o líder local. Lá, se apaixonou por uma linda jovem, Aisha, que por acaso era filha do líder. A paixão foi recíproca, e Kharakhan pediu a mão da menina ao pai, que se recusou a aceitar. Após juras de amor eterno, Kharakhan retornou a Taraz. O tempo passou e, em determinado momento, doente de amor, Aisha decide pedir ao pai mais uma vez que a deixasse se juntar ao seu amado. Com a teimosia do pai em falar não, ela decide fugir, juntamente com sua inseparável dama de companhia, Babaji Khatoun. Após uma longa viagem, já se aproximando de Taraz, a tragédia ocorreu. Aisha foi picada por uma cobra (ou teria sucumbido ao cansaço) e, sentindo sua morte, pediu a Babaji Khatoun que cavalgasse o mais rapidamente possível a Taraz para avisar ao seu amado o ocorrido. Kharakhan correu para o local e teria tido ainda tempo de se casar com Aisha antes da morte da amada. Arrasado, o rei decidiu construir no local um mausoléu para ela. Uma versão da lenda diz que, depois, Kharakhan nunca mais se casou, até a sua morte, com mais de 100 anos.

Mais de 50 padrões geométricos estão representados na fachada de terracota da impressionante edificação, um cubo de uns quatro metros de altura com um teto cônico. É possível perder uma hora apenas olhando cada padrão, admirando o capricho do artesão responsável pelo tesouro. Ao lado, mais simples, mas igualmente elegante, foi erguido o mausoléu de Babaji Khatoun, com seu teto mais trabalhado, como uma rosa dos ventos. Os dois mausoléus, evidentemente restaurados, foram datados como sendo do século XI ou XII. Seus estilos, especialmente o de Aisha Bibi, guardam uma impressionante semelhança com o que talvez seja a mais conhecida edificação da era Samanida, o mausoléu de Ismail Samani em Bukhara, do século X. A fachada com ricos detalhes chama a atenção pela ausência de azulejos ou superfícies coloridas com porcelana, que se tornariam a marca registrada da arquitetura timurida (a das cúpulas de azulejos azuis de Bukhara e Samarkand), a partir do século XIV.

Em toda esta região, o Islã é misturado com tradições locais que antecedem a chegada dos árabes, no século VIII. A reverência a santos, por exemplo, algo que não existe num Islã mais conservador. Várias famílias me acompanham dentro do mausoléu de Aisha Bibi. Elas mostram uma reverência profunda a ela, evidente pelas orações, pelo olhar. Acompanho tudo em silêncio. Após uma prece, o líder da oração, um senhor austero e de barba, se aproxima de mim. Sob a tumba de Aisha, um caixa de pedra em uma plataforma elevada, haviam sido colocados panos simples de algodão branco. Ele me dá um, sem eu pedir. Para dar sorte ao viajante, diz. Sorri para mim.

Uma forte senhora de uns 50 anos, com um véu colorido cobrindo a cabeça e seus dentes de ouro dominando a boca, me pergunta em inglês se sei falar inglês. A senhora logo me cativou com seu carinho. Me perguntou de onde eu vinha, para onde eu ia. Conversamos calmamente e longamente ao sair do mausoléu usando uma bizarra mistura de inglês e russo.

A senhora e uma amiga dela insistem em me levar ao ponto de ônibus, na estrada. No caminho, me falam com imenso afeto de Aisha Bibi, de como a fé as tinha ajudado com problemas de saúde e como a fé iria me ajudar, agora que eu tinha visitado o mausoléu. Disse a elas que pedi à santa que me ajudasse a falar russo, que me desse força na jornada, que me afastasse de encrenqueiros alcoolizados e de problemas de saúde. Que protegesse minha família tão longe, e desse a ela a certeza no coração de que eu estava bem.

Amarrei o pano branco ao redor do pescoço, como se fosse uma echarpe.

Coincidência ou não, logo após fazer isso surgiu na estrada o meu próximo meio de transporte: uma lotação indo para Shymkent - com todos os lugares vazios. O motorista da van, de bigode, suadíssimo, sorriu e me pediu 700 tengue pelas 3 horas de jornada. 700 era quanto eu havia pago de Taraz à cidadezinha do mausoléu de Aisha Bibi, uma distância muito menor. Pulei para dentro.


* * *

"Bem-vindo (ao) Texas" é o que dizia o adesivo colado na parte de trás do ônibus (uma velharia certamente trazida do estado americano) que encontramos na periferia da Shymkent.

O calor continuou imenso, desértico, em todo o caminho, durante o qual o motorista e eu viramos velhos camaradas. Uma pessoa de alto astral e curiosíssima em saber mais sobre meu mundo, como quase todos por aqui. As perguntas foram se desenrolando como de costume, sobre meu estado civil e meu salário, curva após curva. À esquerda, uma reserva natural em algum ponto da fronteira separando o território cazaque do Uzbequistão, nas cercanias de Tashkent.

Em Shymkent, dei mais um passo na minha busca febril pelo pior hotel da Ásia Central. Encontrei um lugar maluco. A entrada do hotel Turist estava parcialmente reformada. O lugar, levando em conta a fachada, parecia bem razoável. Sugeria um três estrelas, talvez quatro, com recepção bem limpa e acabamento de luxo no chão e nas paredes. A suspeita me surgiu ao ver os pontos de infiltração no teto que haviam certamente feito descascar e cair partes da pintura. Conclusão: tratava-se de um hotel da era soviética que estava sendo renovado para os novos tempos.

Pedi um quarto barato, o mais barato, para passar três noites. A senhora cazaque de 50 anos e sobrepeso sorriu secamente, me acompanhou por um corredor escuro, cada vez mais escuro, no andar térreo mesmo. Encontramos uma porta pintada recentemente com um número, 4, escrito à mão com tinta branca. A maçaneta e a fechadura eram ainda velhas. A mulher, forte, custou em abrir a porta. Só com um tranco mesmo.

O quarto era um completo e absoluto show de horrores (veja abaixo um vídeo em inglês em que mostro o lugar). Difícil escolher por onde começar a descrever. O local cheirava a mofo. As paredes estavam todas arranhadas com nomes e dizeres. Pelos cantos, poeira, moscas mortas. Uma cama de solteiro com colchão deformado por décadas de uso. Roupa de cama esburacada. O chão parcialmente coberto por algum tipo de plástico que estava descascando. O armário de madeira completamente gasto, velho, impossível fechar a porta dele sem um calço de papel para prendê-la, com um centímetro de pó por dentro e por fora. Teias de aranha no teto e ao redor da cama. Um buraco com uns 15 centímetros de diâmetro bem ao lado da cama, na parede. Uma janela que dava para um lugar escuro e molhado. Paredes cheias de marcas de mosquitos esmagados. Nenhuma tomada funcionando. No banheiro, vazamentos, azulejos faltando na parede escurecida pelo limo e deixando à mostra a tubulação, mais teias de aranha no teto.

Vários lados positivos, porém. O primeiro - era baratíssimo. Dois mil tenge (aproximadamente US$ 6) por noite com café da manhã incluído e (um incrível) chuveiro quente. Não titubeei. Imaginando que nesta região do país o Turist seria uma excelente base, paguei por quatro noites, de uma vez só, ao fazer o check-in.

Pouco após minha chegada, tive tempo apenas para um banho rápido, e Rustem chegou. Rustem é um morador de Shymkent de uns 30 anos que eu havia conhecido pelo Couchsurfing e de quem rapidamente fiquei amigo, com muitas trocas de mensagens pela internet. Meu plano inicial era ficar em sua casa na cidade, mas ele logo me avisou que infelizmente não seria possível, já que na mesma época ele já estava recebendo parentes em seu lar. Ainda assim, combinamos de nos encontrar, ele prometendo me ajudar a conhecer a cidade. Nos encontramos na recepção do Turist.

Rustem chegou com seu moderníssimo Lexus prata. Fã de carros e de cachorros, ele me cativou com seu sorriso fácil e o grande orgulho de sua Shymkent. Nem muito alto nem baixo, as feições típicas daqui - o meio do caminho entre um turco e um mongol, cabelos pretos, olhos ligeiramente puxados. Havia estudado relações internacionais em Almaty, vivendo lá por dez anos antes de voltar à cidade de origem para trabalhar no negócio de distribuição de salgadinhos e doces da sua família.

Os anos de estudo deixaram uma grande marca em Rustem - além de falar inglês muito bem, fala turco, uzbeque e, é claro, cazaque e russo. Me contou de seu encontro com outros viajantes que conheceu por meio do Couchsurfing e de seu desejo de viajar mais - próximo sonho: Índia. Falamos sobre o mundo, falamos sobre Almaty, falamos sobre Shymkent. Sobre a riqueza de Shymkent, sobre o lado moderno de Shymkent. Depois de tomarmos um café em um café chique como os que conheci em Almaty, ele foi me mostrar este lado moderno. Cruzamos a noite por umas duas horas - eu, lutando contra o sono. Com seu carrão, acelerava sem dó em algumas amplas avenidas. Me levou a um lindo salão de festas, todo decorado de forma luxuosa, onde muitos casais escolhem fazer suas festas de casamento. Curioso. Fiquei pensando: a festa de casamento é algo tão importante nesta sociedade que, ao apresentar sua cidade a um estrangeiro, o local escolhe me mostrar, com orgulho, um salão de festas preparado para um rega-bofe. Nunca faria isso se alguém viesse a São Paulo e eu fosse o anfitrião.

Gostei do salão, de tudo. Nas ruas, à primeira vista, Shymkent me apareceu decorada com luzes coloridas, cheia de carros, viva, vibrante. Essa Shymkent de Rustem me recebeu rica, me lembrou uma cidade americana. Talvez até uma cidade texana.

Shymkent, 3/9, 17h20

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Sunday 22 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (VII): Almaty

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1/9/2012

As montanhas me cercam. Estão cobertas por uma mistura de altos pinheiros, alguma vegetação rasteira meio marrom e, nas alturas, gelo. O ar é fresco, raspa um pouco as narinas ao entrar no meu corpo. O céu é completamente azul, um azul celeste escuro, sequer uma nuvem à vista. O Sol das 8h50 da manhã embala a subida pela estrada sinuosa, curva após curva, primeiro de táxi, depois, agora, ofegante, a pé.

Meu plano era pagar 5000 tenge (aproximadamente US$ 15) para que um taxista me levasse do hotel ao local mais próximo possível do chamado Grande Lago de Almaty, o centro de um cenário alpino de rara beleza no sul da cidade. Há muito queria conhecer o lago - em abril, com meus colegas de faculdade a meu lado, esbocei me rebelar em uma manhã, jogar para o alto os trabalhos na dissertação de mestrado, e vir para cá. Mas sabia que voltaria à cidade, que haveria uma nova oportunidade. Segundo o guia que levo na mochila, o táxi poderia chegar a até uns sete quilômetros do lago. Eu faria o resto do trajeto a pé e, na volta, faria caminhando todos os 15 quilômetros até o ponto de ônibus mais próximo, o que me permitira voltar ao centro de Almaty e, assim, embarcar no trem noturno para o oeste.

Levantei-me bem cedo (de novo, após uma noite atormentado por mosquitos). O relógio tocou às 6h30, e às 7h40 eu estava na rua. Em uma esquina menos movimentada, comecei a acenar para todos os carros que passavam - na Ásia Central, qualquer carro é um potencial táxi, basta negociar com quem se interessar em parar. O primeiro que abaixou a janela disse que não conhecia o lago ou simplesmente não quis se esforçar para entender meu sotaque. O segundo, um jovem simpático, com um carro compacto branco, disse logo que também não sabia onde o tal lago ficava, mas ficou curioso com meu pedido - senti que ele ficou na verdade inconformado com o fato de morar na cidade e não conhecer um lugar turístico. Contei a ele tudo o que eu sabia, até mostrei o mapa que tinha em inglês. Finalmente, ficou convencido e topou a viagem por 3000 tenge. Achei uma pechincha! Teria 2000 de lucro em cima do que eu previa e comemorei silenciosamente. Porém, eu estava inseguro - me perguntava se o sujeito realmente ia conseguir achar o caminho e chegar lá.

Passando por uma grande avenida, ele falou com vários amigos por um rádio comunicador do carro e com o irmão dele, pelo celular. Fomos conversando sobre futebol e sobre falar línguas estrangeiras. Me distraí e, quando percebi, estávamos em uma área com verde dos dois lados, com as montanhas altas se aproximando rapidamente à minha frente. Nem vi a transição entre urbano e rural, de tão entretido com a conversa. Reconheci a bifurcação descrita em meu guia, pegamos à esquerda. Abaixei o para-sol para proteger meus olhos da luz. O carro foi seguindo paralelo a um rio raso, subindo em direção às montanhas nevadas.

Meu guia estava desatualizado, e isso ficou claro logo. Em vez do que ele descrevia que viria a seguir, uma estrada que acabava e virava uma trilha, encontramos asfalto o caminho inteiro, praticamente até o lago, lá no alto. Foram curvas e curvas com os pinheiros ao redor, o ar ficando mais frio, aos poucos mais agradável do que no bafo do centro da cidade, e, depois, progressivamente cortante como gelo. Chegou um ponto em que as curvas nos conduziram até uma cancela que impediam o carro de prosseguir. Foi um longo caminho, talvez uma hora; estávamos bem no alto. Eu acabei me afeiçoando do motorista, uma pessoa extremamente simpática, não só um taxista, mas um companheiro de viagem instantâneo. Lhe dei afinal 1000 tenge (US$ 3) a mais do que o combinado. Ele pareceu genuinamente feliz de ter conhecido um lugar tão lindo, com as árvores e a vista da estrada descendo pelas montanhas. Até pediu para que eu tirasse uma foto dele com esse panorama - prontamente eu a enviei a ele por bluetooth, conectando nossos celulares.

A pequena, mas cansativa caminhada a seguir foi perfeita para criar mais expectativas. Não cruzei com nenhum outro humano. O tempo estava perfeito. O vento parou, e eu só ouvia meus passos no asfalto e a minha respiração. A mais alta montanha nevada, ainda distante, se aproximava, lá em cima. Fui vencendo o aclive, às vezes suave, às vezes mais forte.

Após uma hora, eis. O lago, no alto, a 2500 metros de altitude, com uma área, calculo, de cerca de um quilômetro quadrado. O corpo d'água não era transparente como me falaram. Era verde, mas um verde esbranquiçado, leitoso. Não consegui entender ao certo o porquê do branco - o local parecia limpíssimo, apenas árvores e montanhas altas ao redor. Fui recebido por uma família de picos ao redor - pico Turist (3954 metros), pico Sovetov (4317 metros) e outros, arranhando o azul. Um deles, bem à minha frente, com o topo nevado gerando um ruidoso regato de degelo, alimentando o lago. A água era tão gelada que não consegui manter minha mão dentro dela por mais de 30 segundos.

Circundei o lago e fui até o lado oposto ao que tinha chegado, até o ponto mais próximo do pico à minha frente, que imaginei se tratar to pico Turist. Cheguei a um ponto além do qual uma placa informava que era proibido acampar: trata-se de zona de fronteira. Um pouco mais além, aproximadamente uns cinco quilômetros, o Quirguistão, e seguindo nessa direção, o lago Issyk-Kul. Mapas mostram uma estrada atravessando as montanhas, cruzando a fronteira internacional. Por aqui se fazia antigamente a hoje proibida caminhada até as bandas de Cholpon-Ata. Deveria ser sensacional.

Cochilei, caminhei ao redor, fiz piquenique, admirei um local inteiramente para mim. Os vestígios humanos que encontrei foram algumas poucas casas e uma carcaça de carro, estranhamente deixada à beira do lago, enferrujando. Lembrei-me do filme Na Natureza Selvagem (2007) e do veículo abandonado onde o protagonista acabou indo morar e morreu. Me imaginei morando aqui, caçando alguma fauna local e pescando o que for possível pescar no degelo esbranquiçado. Nada mal viver isolado por aqui, nada mal esquecer as agruras do mundo com o Sol como companheiro. Eternos desvarios do viajante, que sabe que no fundo não pode se desvencilhar da civilização porque, em última análise, é ele, o viajante, a civilização. O lago e as montanhas poderão viver muito felizes sozinhos. Provavelmente mais felizes do que em qualquer companhia.

Duas horas depois, estava voltando. O caminho do lago até a parada de ônibus parecia ser ainda mais longo do que eu calculara, "apenas 15 quilômetros." Ou simplesmente eu não havia imaginado o que seria caminhar "apenas" essa distância, a preguiça que tomaria conta de mim. Lá pelo terceiro quilômetro, ainda descendo pela estrada rodeada de pinheiros, já decidi arriscar com meu polegar.

Dei sorte. Tive que esperar apenas três carros passarem até que um parasse. Não negociei o preço, já calculei que 1000 tengue (aproximadamente US$ 3) até o ponto fosse justo. Mas, quando desci do carro, o motorista nem quis saber de receber o dinheiro e foi embora! Uma jornada gratuita que, contando a curta espera pelo ônibus, me trouxe de volta a Almaty pontualmente à uma da tarde.

Eu planejava pegar dois ônibus na sequência para voltar ao centro. Mas quando desci do primeiro, vi um parque. Um parque diferente. Sua entrada era um portal grandioso, triunfal, com colunas altas e a inscrição, no alto: "Parque do Primeiro Presidente do Cazaquistão". Referência, claro, a Nursultan Nazarbayev, o atual presidente. Imaginei o que fosse ver lá dentro.

Evidentemente, o parque é lindo - uma excelente propaganda. Logo na entrada, uma grande fonte, em manutenção e portanto vazia, só com o concreto de suas paredes tripudiando dos visitantes - o calor e o Sol estavam de rachar. Mais à frente, uma estátua do grande líder, com dizeres imortalizados em granito. Desde abril eu coçava a cabeça, sem entender por que não havia estátuas do reverenciado Nazarbayev por toda parte. Até no monumento do centro de Almaty onde as pessoas fazem fila para tocar um molde feito no formato da mão do presidente, o que se vê é um baixo-relevo com a imagem dele, e só. Por outro lado, são abundantes cartazes com fotos e frases do grande líder. Mas finalmente encontrei uma estátua, a primeira e única que já vi de Narabayev. Quando ele morrer, fico pensando em que tipo de homenagem vão lhe fazer. Mais estátuas como esta? Quem sabe uma de 20 metros de altura em Astana, a capital do país?

Voltei em seguida ao hotel para mais um lance de sorte, além do parque, do taxista simpático, da carona na volta. Eu havia esquecido no quarto um colar que uso faz quase 20 anos. Mesmo acreditando que a camareira já houvesse se apossado dele, voltei para ver se por acaso eu estava errado. Estava. Ela o guardou e me entregou de volta. Fiquei tão feliz que, sem pensar, abracei a camareira. Coitada, primeiramente ficou tão sem jeito que me senti mal - um sorriso constrangido, tímido, seu olhar no chão. Mas logo, logo se contagiou comigo. O sorriso se tornou largo, bonito. Eis as pequenas coisas que fazem a alegria do viajante.


* * *

Já era quase noite quando chegou a hora de dizer adeus a Almaty e à minha sorte. Como que por vingança pela minha partida, a cidade quase me matou do coração.

Minha noite seria passada num trem, em um leito, a caminho de Taraz, onde eu chegaria às 6h30. Nunca havia viajado de trem na antiga União Soviética, então achei que essa era uma boa oportunidade. Comprei tudo com antecedência, quando ainda estava na Inglaterra, pela internet. Tudo parecia ter corrido bem no meu computador na distante Europa, mas eu imaginava que os burocratas neosoviéticos pudessem me causar problemas. Por isso procurei chegar cedo à estação - cheguei às 18h50, e o trem sairia às 19h37. Tentei me precaver como pude - fiz fotocópias de todos os meus documentos, visto, passaporte. O que poderia dar errado? Tratava-se de uma simples viagem doméstica, algo como ir de São Paulo para o Rio.

O problema foi que minha passagem, o papel que eu tinha, não era uma passagem, era um comprovante de compra que teoricamente viria com um número que eu teria que digitar em uma máquina dentro da estação para que, aí sim, a máquina imprimisse minha passagem. Até ai, tudo bem (demorei um pouco para descobrir o que estava acontecendo, me surpreendi, mas não fiquei nervoso, pensei que simplesmente bastava digitar na máquina e tirar minha passagem). Mas o número havia saído incompleto na impressão que eu tinha, provavelmente por causa de algum problema na impressora.

Pedi ajuda a uma funcionária da estação. "Esse problema é seu", disse ela, "tentando" ajudar. Faltando 30 minutos para o trem sair, saí à caça de um internet-café por perto para tentar descobrir o número online. Achei um que estava fechando (o dono quase não me deixou entrar). Na internet, descobri que só entrando no site da companhia de trens eu poderia recuperar o número. Mas o site exigia uma senha que eles haviam me dado e que, é claro, eu havia esquecido, julgando que não precisaria mais entrar no site. No calor do início da noite, ainda uns 28 graus, eu suava horrorosamente naquele internet-café, sozinho, com a pressão do dono para eu acabar logo minha navegação e a pressão do trem prestes a sair. Tentei lembrar da senha. Tentei uma vez. Duas. Três.

Na terceira, que alívio. Acertei a senha, consegui o número da passagem. Voltei correndo para a estação, imprimi o bilhete. Estava quase desmaiando de sede e fui comprar uma garrafa d'água para a viagem - fui expulso de um supermercado porque não podia entrar com minha mochila, depois achei um vendedor do lado de fora da estação e nem pensei no troco ao agarrar a garrafa e dar o dinheiro a ele. Aí, fui procurar a plataforma. Qual plataforma? Uma tremenda confusão nos letreiros. Fui direto para as plataformas perguntar aos fiscais qual era meu trem. Descobri. E qual o vagão? Não conseguia pensar muito bem, ainda menos em cirílico. Os fiscais conversam calmamente entre si - "Ele vai neste vagão? Olha na passagem dele. Não, vai naquele vagão!". Me conduzem ao certo. Ah! Finalmente...

E quando coloco o pé na escada do vagão, prestes a soltar o derradeiro suspiro de alívio, um outro fiscal me para. Pede o passaporte. Dou a ele a cópia xerox do passaporte e do visto, os papéis que sempre carrego no bolso. Sempre é suficiente. Não, não, neste caso o fiscal quer e exige o passaporte original (mesmo para uma viagem doméstica). O documento está num cinto com um bolso que carrego entre a cueca e a calça, juntamente com o grosso do meu dinheiro. Abaixo a calça, fico seminu na frente dele, acabo sem querer mostrando a ele todo o dinheiro que tenho para a viagem, torço para o burocrata não beliscar meus dólares. Ele me devolve o passaporte. Entro. Estou ofegante e suado, inteiramente molhado, gotejando, dos pés a cabeça.

Encontro minha cama. A de baixo à esquerda em um quarto com duas beliches. Lá fora, está quase escuro. Almaty realmente não queria que eu fosse embora.


* * *

Estranho e interessante passar a noite em um trem. Só havia feito isso duas vezes. Uma aos 13 anos, com meu pai, em um trem em algum ponto do Pantanal sul-mato-grossense. Depois, lá pelos meus 22 anos, entre Copenhague e Amsterdã, quando eu era um estudante cruzando a Europa tão sem dinheiro que precisei economizar a acomodação passando uma noite em trânsito. Mas, nos dois casos, eu dormi em uma poltrona, nunca em um leito.

Dividi o quarto com outros três cazaques. Nenhum falava uma palavra de inglês. Meu medo de que eles pudessem ser um risco à minha segurança se dissipou rapidamente logo quando conversei com um deles. Muito simpáticos, os três eram do oeste - dois deles de Aktau, o outro de uma cidade próxima. Como tantas vezes já me aconteceu na Ásia Central, acharam estranhíssimo o fato de eu não ser casado com mais de 30 anos, e uns bons 15 minutos de conversa foram dedicados ao assunto "esposas". Dois deles disseram ter mais de uma esposa (um deles, duas, o outro, três, tudo permitido para muçulmanos como eles). O terceiro, mais jovem, tinha "namoradas" - uma em Almaty e outra em sua cidade. Com naturalidade, argumentavam que a mulher não deveria trabalhar fora, o homem, sim. O homem muçulmano, disseram, tem a função de sustentar as esposas. Em troca, tem que ser paparicado em casa - "ser tratado como um leão macho, enquanto as leoas lhe trazem alimentos".

O trem, em si, foi uma alegria para mim por ser vintage. Certamente construído na era soviética, pelo que pude ver no interior. Me lembrou os vagões do metrô de Moscou. Calculei que aquele onde eu estava tinha entre 30 e 40 anos. As paredes internas eram revestidas de fórmica, copiando madeira. As maçanetas e seguradores, todos metálicos, foscos, gastos. Janelas fechadas. Tudo parecendo velho, mas bem preservado e consertado várias vezes durante as décadas.

Dormir foi desconfortável, principalmente porque meus companheiros de compartimento em nenhum momento pararam de falar, e rir, e bem alto, conversando entre eles ou no celular, provavelmente com as muitas esposas. Não achei boa ideia estragar o alto astral com meus pedidos de silêncio. E, na verdade, eu estava tão arrebentado que acabei dormindo mesmo com o barulho.

Acordei 6h30 com um dos companheiros batendo na madeira ao lado do meu rosto. Próxima parada: Taraz.

Taraz, 2/9, 9h15

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Tuesday 17 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (VI): Almaty

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31/8/2012

Como em São Paulo, velhas fachadas descuidadas de prédios passam despercebidas para os moradores da cidade no dia a dia - mas, para um estrangeiro, é mais fácil perceber essas sutilezas, as joias em meio ao concreto. Perto do Parque Gorki, ao leste do centro da cidade, lá estão elas. Algumas fachadas lembram as que eu vi na velha Verni (nome antigo de Almaty, dos tempos do império russo) em abril: janelas de madeira coloridas, frisos de madeira orlando o teto como se fossem bordados de crochê em uma toalha de mesa, com padrões geométricos exóticos. Outras fachadas são gemas soviéticas com a personalidade centro-asiática: os caixotes de concreto com as janelas e balcões trabalhados, ferragens e grades de grande capricho. De vez em quando, um prédio maior, com o detalhe oriental na fachada que faz toda a diferença. Algumas fachadas estão morrendo, tão mal cuidadas que estão; aguardam, agonizando, algum restauro. No sol poente, uma velha casa de dois andares, friamente soviética, funcional, mas com janelas de madeira caprichadas, deterioradas pela velhice. Ainda que triste, a velha casa sorri, percebendo que foi percebida. Em outra, vizinha, os detalhes em madeira do teto e da janela foram recuperados. O teto cobrindo a entrada é sustentado por lindas ferragens fazendo curvas. Quanta atenção aos detalhes.

Espanto-me de não ter conhecido em abril um pouco mais deste lado leste de casas antigas de cossacos que aqui se instalaram no século XIX. Do lado do delicioso Parque Gorki. Nele há um lindo lago que reflete uma vista extraordinária do Kok Tobe, o morro que subi, com um bondinho, na minha vez anterior por aqui. Tudo neste parque me lembra a infância. Voltei a ser criança. Vejo pais e filhos juntos em pedalinhos, fazendo juntos cara de esforço. Brinquedos de parque de diversão - um chapéu mexicano! Barco viking! Tudo tão colorido no anoitecer! Um anoitecer de Sol de ouro. Crianças rindo, crianças chorando. Umas trepam em uma escultura de uma pantera. O pai as dirige para a fotografia que vai tirar - posem! E elas posam para a foto, todas as quatro crianças na pantera, todas de idades diferentes, de uns quatro a uns 13 anos, com os olhos já puxados ainda mais espremidos por causa do Sol no rosto.

Também há um restaurante - bem no meio do lago, em uma ilhota. Lugar perfeito para uma cerveja no fim de tarde. Mas não era esse o espírito, para mim, naquele momento. Preferi tomar um sorvete.

A cerveja eu deixo para mais tarde, para bem perto do hotel. Fico empolgado em voltar a tomar uma caneca gelada de Urso Branco, a loira que marcou minha primeira passagem por aqui, em mesas animadas, com meus colegas de faculdade. A cerveja que as mulheres recebem em canecas com canudinho - sim, assim que servem cerveja às damas por aqui. Mas, desta vez, opto em tomar minha Urso Branco em um lugar em que nunca estive, em um restaurante sem nada especial a não ser a vista para a confusão do mercado central de Almaty.

Com o calor imenso que fez hoje, mergulhei de boca no néctar com grande deleite. Goles longos. Foi quase metade da caneca. Fiquei até com um bigodinho branco.

Compartilhei a mesa com Tagat. Pele bronzeada, barba rala - há três ou quatro dias esperando uma gilete -, olhos vermelhos, meio amarelados, que sugerem noites mal dormidas e dias de muito álcool e tabaco. Dentes tortos e amarelo escuros. Rosto suado e suante, molhando a camisa social bege de mangas longas e arregaçadas, manchada, encardida. Diz ser fotógrafo e que trabalha para um jornal local. Tagat combina com o cenário do mercado no fim de tarde, um cenário extenuado. É um homem gasto, um homem xepa. Mas muito curioso em relação a mim. Quando disse que era brasileiro, instantaneamente perguntou se eu era futebolista. Quis saber como meu país está se unindo para se preparar para a Copa do Mundo e a Olimpíada. Não evitei polêmicas - disse que mais brasileiros preferiam abrir mão dos dois eventos para investir mais em saúde e educação. Olhando para o burburinho no mercado atrás de mim, Tagat concordou com a cabeça. Me copiou, bebendo um longo gole de Urso Branco.

Perguntei se ele gostava de Almaty e do Cazaquistão. "Sim", respondeu. E só. Lancei minhas visões, para tentar estimulá-lo a falar mais. Expliquei que o Cazaquistão me fascinava por ser vários países em um, por sua diversidade de cenários. E o povo, dividido em suas tradicionais hordas, cada região com personalidades distintas. Um imenso país, uma cidade maravilhosa, cazaque e ainda muito russa, a querida Almaty. Ele pareceu não entender nada que eu disse. Balançou a cabeça, grunhiu palavras que não entendi, pelo canto da boca. Eu não precisava entender as palavras. Foi muito claro. O que ele disse foi: "Como alguém pode gostar de meu país, esta bagunça?"

Tagat olhou para o lado, para as barracas, os vendedores, o lixo no chão, a gente chegando, a gente saindo. O Cazaquistão, este grande mercado no fim de um longo dia.

Nos despedimos como se fôssemos velhos conhecidos. Como bom centro-asiático, Tagat apertou minha mão direita com suas duas mãos e sorriu, atravessando meus olhos com os seus. Agradeci o bate-papo. Saindo do restaurante, olhei para trás. O vi triste, acenando para mim. Como se ele não quisesse estar lá, como se eu, o viajante, tivesse sido para ele um alívio temporário, uma defesa contra o calor e o suor que nem a cerveja mais gelada estanca.


* * *

Antes, tive no hotel uma noite infernal, como há muito tempo não tinha. Como previsto, já que a janela não fechou, meu quarto se transformou em um refeitório para mosquitos. No meio da noite, podre de sono, acendi a luz e fui para o tudo ou nada, desesperado. Matei sete. Fui dormir, mas o estrago estava feito. Não preguei mais os olhos até o amanhecer. E quando amanheceu, e finalmente voltei a cochilar, o relógio tocou para a segunda parte do inferno.

A burocracia era um dos pilares do estado soviético e com certeza sobrevive como legado, de várias formas, na Ásia Central. No Cazaquistão, especialmente, há essa exigência ridícula, a de que estrangeiros que entram no país por terra se registrem na polícia migratória até no máximo cinco dias após chegarem ao país. Dá raiva o fato de que, quem chega de avião (como eu em abril), não precisa fazer isso. Só quem vem por terra. Provavelmente, os gênios que criaram a regra pensam que os estrangeiros que chegam do exterior pelo aeroporto são endinheirados empresários que não representam perigo algum. E os que chegam por terra são pobretões ou, pior, refugiados do Afeganistão. Os motivos não importam muito, na verdade. O fato é que lá fui eu perder o que esperava ser um dia inteiro nos corredores burocráticos cazaques.

Cheguei mais de uma hora antes de abrir o escritório da polícia migratória - que, felizmente, não era muito distante do hotel. Madruguei porque esperava que fosse ter fila, e de fato já havia gente esperando quando eu cheguei. Minha preocupação era conseguir o registro no mesmo dia, já que já amanhã eu espero estar longe de Almaty.

Quando finalmente as portas se abriram, fomos conduzidos a uma sala circundada por dez guichês diferentes com avisos exclusivamente em russo e cazaque explicando para que serviam - registro de estudantes, registro provisório de estrangeiros e assim por diante. Mais uma coisa que não fazia nenhum sentido para mim: num lugar onde estrangeiros são forçados a ir, não havia sequer uma plaquinha em inglês. Nenhum funcionário falava inglês. Não há como orientar os estrangeiros. Mesmo sabendo um pouco de russo, fiquei perdido, sem saber qual fila pegar para falar com qual guichê. Afinal, em uma sala circundada por tantas janelas é de se esperar que as filas se misturem e tudo vire um grande prato de macarrão.

Um cazaque simpático, com um bom inglês, me apontou a fila para a janela certa. Ainda demorou alguns minutos até que o burocrata cazaque chegasse e abrisse o guichê. Aí, foi rápido. Eu tinha tido o máximo de cuidado de trazer copias de tudo que eles pudessem querer, além dos originais. O burocrata pegou as fotocópias e os originais, os colocou de lado e disse para eu voltar às 15h. Ficou com meu passaporte. Então, das 10h30, quando saí de lá, até as 15h, quando voltaria, se um policial me parasse na rua e pedisse meus documentos, eu estaria com um grande, grande problema nas mãos.

Mas não aconteceu nada. Zanzei pela avenida Tole Bi e pelo Parque Panfilov, aproveitando o lindo Sol e buscando banquinhos na sombra para aliviar os pés. Voltei pontualmente às 15h e recebi o passaporte registrado. Nada de carimbos no documento, só um mísero papelzinho anexado ao passaporte com um clipe. Bem fácil de perder.

Planejo algo bem diferente para amanhã.

Grande Lago de Almaty, 1/9, 10h50

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Sunday 15 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (V): Almaty

Adentrando as estepes, me afastando das montanhas, rumo ao reencontro com Almaty

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30/08/2012

A estrada atravessa estepes douradas. De um lado, à direita, o sul: um mundo rasteiro e seco, povoado por um único cavalo solto, sem mestre, galopando paralelo à estrada, lá longe, perto das montanhas. Do outro lado das montanhas, invisível, o lago Issyk-Kul, lembrando de mim. À esquerda da estrada, o norte: mais secura que reflete o Sol. Às vezes, um poste com cabos de energia. Em geral, nada, apenas imensidão. Apenas estepes.

A viagem para Almaty foi, como esperado, uma pequena aventura. A divisa internacional fica a apenas 30 minutos de carro de Bishkek. Até Almaty, negociei o preço de 600 soms (cerca de US$ 9) com o motorista, que levava mais 3 passageiros, além de mim, em seu carro coreano. Todos bem apertados.

Inevitavelmente, o posto de fronteira era uma imensa bagunça; sujeira, gente carregando volumosas sacolas e crianças, velhinhos aguentando os ossos, todos em fila para tudo. Também policiais por toda a parte. E medo por toda a parte - o medo de todos de terem suas bolsas abertas pelos guardas, de não saber explicar por que vão atravessar a fronteira que separa países com povos e línguas tão parecidos e, principalmente, separa famílias. Respiro fundo na espera. Na janelinha, entrego o passaporte ao mandarim com seu uniforme militar. Primeiro, o guarda quirguiz, depois, em outra janelinha, o guarda cazaque, que foi muito mais cortês. Até lhe fiz uma pergunta. Sim, confirmou, em Almaty não escaparei da burocracia de ter que me registrar na polícia migratória, um transtorno que por aqui na Ásia Central só os cazaques proporcionam aos turistas - felizmente, só a aqueles que atravessam as fronteiras do país por terra, o que é exatamente o meu caso. Em teoria, só para me registrar vou ter que gastar um dia inteiro em Almaty. Bom, não será um grande suplício. O problema é a lógica disso. Basicamente, irei pegar fila em um órgão do governo para confirmar que estou no Cazaquistão - algo que o governo já sabe, ou deveria saber, pois carimbaram meu passaporte. Ouço a explicação do guarda. Não entendi a burocracia, mas, é claro, isso sim, entendi que não adianta reclamar.

Para passar pela alfândega e pelo controle de passaporte, por uma hora me separei e perdi contato visual com meus companheiros de carro. Um pouco de tensão. Aperto os olhos para ver à distância - sim, uns dez carros adiante, na fila de veículos para entrar no Cazaquistão, encontro eles, um sentado numa mureta, outro agachado, outros de pé. Era um grupo bem heterogêneo - um uzbeque, dois tajiques e um quirguiz (o motorista), além de mim, usando um chapéu cazaque comprado em abril em Almaty. Ou seja, eu era o cazaque honorário do carro-lotação. Consegui conversar um pouco em russo com o tajique, que me perguntou se eu ia a seu país (disse que sim) e se eu achava, como ele, que o futebol brasileiro ia mal das pernas (concordei, mas disse para ele ficar de olho no Neymar, e o convidei a vir ao Brasil para a Copa).

Cruzando as estepes, bateu um sono. Acordei com o carro parando à beira da estrada, ao lado da barraquinha de uma velhinha miúda vendendo bebidas típicas da região. Entre as delícias que oferecia estava o tal do kumiz que não ousei provar em Bishkek. O leite de égua fermentado típico do verão cazaque e quirguiz se mostrou uma grande tentação. Pedi para provar, imaginando que a velhinha tivesse ela mesmo feito a bebida, ordenhando uma égua em seu humilde curral. Eis que ela some para sua casa, do lado da barraquinha, e volta com uma garrafa do líquido branco industrializado, com rótulo e tudo - que espanto, nem sabia que existia kumiz industrializado! Ela abre a garrafa e sai tanto gás de dentro que a espuma explode, molhando a mesa e a mão da dona. Fecho os olhos e deixo o líquido entrar em mim.

Kumiz foi, com certeza, melhor do que aquela asquerosidade, o maksym, que provei em Bishkek. Lembra um refrigerante bem gasoso, mas com gosto de iogurte salgado, meio ácido... um pouco azedo. Também um pouco alcoólico (de fato, os nômades das estepes tradicionalmente tomam porres de kumiz). Gostei, mas decidi não repetir... não por ora. O motivo é simples: se precisar ir ao banheiro por causa dos efeitos indesejáveis do líquido sobre minhas tripas, que o banheiro esteja bem perto. E não à beira do asfalto.


* * *

Almaty. Diferentemente da primeira vez em que estive aqui, em abril, os canais nas calçadas, sulcos para levar água às plantas e árvores, para tirar um pouco a poeira do ar, viraram verdadeiros rios. A cidade me recebeu verde, cheirosa, cheia de flores, especialmente no centro. Entendi o encanto verde de Almaty como não havia entendido antes, quando a poeira e os carros falaram mais alto, quando as árvores estavam cinzentas no fim do inverno. Agora, nas praças, as fontes criam lindos prismas com o Sol poente, tudo colorido pelos arco-íris que incidem na vista. Os velhinhos conversando nos bancos. As gotículas entrando pelo nariz, que alívio num dia seco!

Reencontro o parque Panfilov - aquele perto da universidade KBTU que tanto frequentei há quatro meses, o que guarda a linda catedral da Sagrada Ascensão. Uma simpática muçulmana de meia idade, rosto enrugado, ao me ver com meu chapéu cazaque - a partir de então meu companheiro inseparável de viagem - me elogia, diz que o chapéu ficou muito bem em mim. Me pergunta se sou muçulmano - geralmente, quem usa o chapéu é muçulmano praticante, de ir na mesquita todo dia. Digo que não, mas ressalto o quanto gosto do chapéu, chamado em russo de tubeteika. Ela sorri, muito, e parece muito sincera. Nos despedimos. Em outra vida, provavelmente eu a convidaria a ir à mesquita. Mas neste mundo, nesta vida, minha oração por ela se faz em longos goles de refrigerante gelado, de uma latinha suada, sentado num banquinho do parque, fechando os olhos para não ser ofuscado pelo Sol, por Alá.

Tenho uma reserva. O hotel Turkistan tem lados negativos e positivos. Os negativos: fica exatamente em frente ao mercado (ou bazar, como eles são chamados em todos os países da Ásia Central, geralmente uma mistura de barracas em espaço coberto e feira ao ar livre) mais importante da cidade. Muita gente passa por aqui, há muito barulho, muita confusão, tenho até medo de ser assaltado. Além disso, é bem perto da mesquita central, exposto aos cantos do muezim (o homem que faz o chamado para as orações) às 5h da manhã. É um prédio mal preservado por fora e por dentro. No meu quinto andar, um corredor cavernoso, assustador, com luz fraca demais para o meu gosto, tudo gasto, desbotando. Tudo vermelho: tapete, o papel de parede descolando. No quarto, a janela não fecha direito, a cortina velha não cobre todo o vidro, a luz passa forte durante todo o dia. Acho que a noite vai ser barulhenta e cheia de mosquitos. As paredes são finas, e meus vizinhos aparentemente não estão muito preocupados com os ouvidos dos outros hóspedes. Pontos positivos: barato (3000 tenge por noite, aproximadamente US$ 9). O quarto é limpo e, algo inesperado, tem até TV. E, analisando friamente, o fato de ser perto de tudo, bem central, é também uma vantagem. Espero conseguir dormir para poder passear bastante amanhã.

Almaty, 30/8, 21h34

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Wednesday 11 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (IV): Bishkek

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29/08/2012

Comecei o dia novamente praticando o "esporte" que deve se tornar o mais comum nesta viagem. Com o Sol tostando o meu rosto, às 8h30, me posicionei à beira da estrada, acenando para cada carro que passava em direção à capital quirguiz. Após perguntar na pousada, de antemão sabia qual preço era justo pagar pelo transporte de van ou táxi compartilhado de Tamchy a Bishkek. Ônibus quase não passam. Até aceitaria pegar um, são muito mais baratos - e muito mais desconfortáveis. Mas nenhum sequer desacelerou ao me ver.

A demora em conseguir encontrar transporte me deixou angustiado. Demorou 15 minutos até parar o primeiro veículo - a maioria deles já vinham cheios de Cholpon-Ata ou mesmo de Karakol, que é grande em comparação com outras cidades às margens do Issyk-Kul. Outro problema foi, com meu russo, negociar o preço justo. Acabei aceitando pagar 300 soms (aproximadamente US$ 4) por um lugar em uma van. O preço justo teria sido 250, mas eu já havia passado uma hora derretendo no acostamento.

Na viagem de volta, pelo mesmíssimo caminho da ida, percebi quão próximo eu estava da fronteira cazaque. Da janela da van, eu contei pelo menos dois postos de fronteira diretamente à direita da estrada, saindo da via só alguns metros. Na divisa internacional, fica o rio Chuy (que dá nome a esta região quirguiz). Boa parte da estrada depois do Desfiladeiro do Cadarço segue paralela ao Chuy, que por sua vez segue à beira de duas cercas altas. Fiquei imaginando se as cercas de arame são eletrificadas ou patrulhadas - elas parecem ser fáceis de passar por quem tiver ferramentas para cortar o arame.

O rio Chuy é verde e rápido. No Desfiladeiro do Cadarço, ele forma corredeiras perfeitas para o rafting. No trecho, ele deve ter quatro ou cinco metros de largura e, se esfregando nas pedras, forma um pouco de espuma branca. Parece limpo. Convidativo. Como seria dar uma mergulhada nele? Com o suor acumulado e as camadas de bloqueador solar, o devaneio me vinha como um consolo nas três horas até Bishkek.


* * *

Anoitecer na praça Ala Too. Um grupo de umas 200 pessoas se reúne no local para um ensaio final da apresentação que farão na comemoração do Dia da Independência do Quirguistão, comemorado em 31 de agosto. De crianças aparentando não mais que oito anos a adolescentes, elas fazem uma elaborada coreografia ao som de uma música patriótica, entoada por alto-falantes em uma van. Pulam, bate palmas, dão voltinhas e sorriem - sorriem muito. Uma das orientadoras não parece muito satisfeita com o ensaio, mas provavelmente não há tempo suficiente até a festa de independência para melhorar muito mais do que isso.

Os jovens na Ala Too são a perfeita representação da variedade étnica do país e da Ásia Central como um todo: há as crianças loirinhas de origem russa, as de olhinhos mais puxados, as mais branquinhas, provavelmente do norte, as mais morenas, provavelmente do sul. Os jovens mais velhos são fortes, mas não muito altos. Um grupo deles balança sem parar bandeiras vermelho-amarelas, as cores nacionais. Ao lado, alta e imponente, a estátua de Manas, o herói de um poema épico de séculos atrás que foi adotado pelo estado quirguiz como o centro da identidade do país - como o conquistador do século XIV Tamerlão (1336-1405) foi adotado no Uzbequistão e Ismail Samani (849-907), emir da dinastia persa samanida, no Tajiquistão.

Bishkek foi novamente rápida, para resolver problemas. Não me preocupou muito não conhecê-la bem. Eu sabia que, no final da minha viagem, estaria de volta por aqui. Meu plano é voltar em outubro para meus dois meses estudando na cidade, para tentar melhorar meu russo. Encontrei uma escola perfeita em minhas pesquisas pela internet, um lugar onde há muitos estrangeiros como eu tentando avançar no idioma. Resolvi o primeiro problema - fui até lá e paguei o meu depósito. O pessoal da secretaria me recebeu falando bom inglês e me senti muito bem-vindo.

Em segundo lugar, precisei comprar uma câmera. Optei pelo mesmo modelo de celular que eu perdi. Foi necessário muito esforço para encontrar uma loja na capital onde pudesse achar o aparelho e na qual eu pudesse pagar com cartão de crédito. E foi caro, mais de US$ 400, uma fortuna na moeda local. A ajuda do pessoal da escola foi imprescindível para achar a loja, que ficava em um prédio bem na Chuy, uma das avenidas centrais. O lugar era tão escondido que parecia que eu estava indo comprar drogas. Ia por perto perguntando às pessoas na rua. Muitas não sabiam onde era. Outras, respondiam cochichando e apontando para o edifício. Vou até o quinto andar, encontro uma salinha comercial. Sim, aqui mesmo. Felizmente, deu tudo certo.

Outro problema que tive que resolver foi arrumar de vez a mochila para a viagem. Em meu pulinho até o Issyk-Kul, permaneci sem dar check-out do meu "apartamento" no hotel em que me hospedei ao chegar a Bishkek. Assim pude deixar lá minhas coisas mais pesadas e ir passear tranquilo. Meu plano para o resto da viagem é deixar uma mala maior com roupas neste mesmo hotel e recolhê-la na volta. Me hospedarei aqui mais uma noite antes de me mudar para uma casa de família para o meu período como estudante. O hotel topou. Fiquei mais leve, mas praticamente sem espaço sobrando na pequena mochila. De roupa, levarei cuecas, meias, duas camisetas, um casaco e uma jaqueta para chuva, mais nada. Além disso, meu guia de turismo e um pequeno espaço sobrando para água, para colocar algo de comer e o que eu for comprando pelo caminho - como coleciono chapéus, sei que até o final da viagem vai faltar espaço.

Fui dormir ainda sem sono. Acordei cedinho com mais um dia lindo de sol. Estou particularmente feliz - vou rever Almaty.

Bishkek, 30/8, 8h30

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Na jovem república, a festa de independência é uma importante manifestação de orgulho

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Sunday 8 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (III): Tamchy

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28/08/2012

Minha decisão foi ir a Tamchy, uma cidade a uns 30 minutos de carro de Cholpon-Ata, também à beira do lago, também um balneário, para ter uma outra visão da "riviera quirguiz", com menos gente e agitação. Antes, porém, decidi iniciar um longo passeio a pé por ruas perdidas de Cholpon-Ata, em direção às montanhas. O ar seco, a poeira e o calor sufocante me acompanharam pelas ruas sem asfaltar. O lugar me lembrava uma periferia qualquer, sem nenhuma casa ou construção mais chamativa.

De repente, encontro, à minha direita, um guarita na frente de um descampado amplo com um aclive progressivo, no pé da serra. Vejo lá pedras arredondadas, todas grandes, umas maiores, outras menores. Nelas, os fantasmas da pré-história.

Encontro nas rochas muitas inscrições, fracas e desaparecendo. Pinturas rupestres datando de a partir da era do bronze, aproximadamente do segundo milênio antes de Cristo. A essas pinturas, outras foram sendo agregadas, cortesia de povos que passaram pela região. Vieram os sakas (ou citas), os ancestrais habitantes da Sibéria, citados por Heródoto em suas crônicas, que ocuparam a região do Issyk-Kul e deixaram seus rastros entre os séculos VIII e III antes de Cristo. E os povos túrquicos, antepassados dos turcos, que em uma primeira leva de invasões vindos do que é hoje parte da China e Sibéria dominaram uma vasta área ao redor do lago por volta do século VI depois de Cristo.

Decepcionei-me. Esperava mais quando me disseram que este tesouro estava exposto aqui. Tirando um ou outro rabisco mostrando bodes selvagens e leopardos-das-neves, os demais são pequenos demais e estão quase invisíveis. Como se não bastasse, há poucas indicações no local sobre onde encontrar as inscrições, e a quantidade de pedras não é pequena. Passei mais de uma hora "caçando" inscrições, tentando entender o que elas significavam (em muitos casos, não é fácil sem um estudioso explicando), como se eu fosse um observador do céu noturno que tenta desenhar com os olhos as constelações sem ter nas mãos uma carta celeste. O lugar todo parece meio abandonado. Na guarita na entrada, onde supostamente alguém estaria vendendo entradas, não encontrei ninguém. Não há nada protegendo as pedras dos elementos. Assim, não é de se estranhar que as linhas vão se apagando, cobertas por sujeira e então lavadas por chuvas infinitas.

Mas nada de chuva neste momento. Caminhando e olhando os desenhos, tive que parar umas duas vezes para recobrar o fôlego, tomar água e reaplicar bloqueador solar, tamanho era o sol das 9h30 da manhã. Quase não conseguia me concentrar para ver a arte rupestre, gotejando suor nas pedras.

Retomei a caminhada, indo dali até a estrada principal, lá embaixo, a mesma que vai até Bishkek. Totalmente distraído, quando olho ao redor vejo que estou no meio de uma vasta pista asfaltada, basicamente uma longa reta refletindo o sol. Ela surge do nada e não é a estrada. Não vi nenhuma placa explicando onde eu estava, não enfrentei cercas, nada. E, de repente, vejo um carro a milhão me ultrapassando, passando a uns três metros de mim. Me pergunto se estou em uma pista de corrida. E continuo com essa teoria até que, finalmente, quase chegando à estrada principal, vejo um helicóptero estacionado ao lado de uma casa, os dois tripulantes à beira da pista. Estou no aeroporto de Cholpon-Ata. Sim, estava andando no meio da pista, correndo o risco de ser atropelado por um avião pousando! Pelo jeito o pessoal aqui não liga muito para segurança e usa a pista para se divertir (daí o motorista que passou com seu carro ao meu lado) ou se deslocar para casa, como se esta fosse uma avenida como qualquer outra.

De qualquer forma, o lugar não deve receber muitos voos. Novamente, como no campo das pedras, ele me pareceu às moscas.

Continuei descendo. À minha frente, exatamente à minha frente, um sol imenso iluminando o lago cintilante. Azul e calmo.

Na estrada principal, penei horrores para conseguir parar um táxi coletivo que topasse me levar a Tamchy por um preço honesto. O transporte por lotações e táxis compartilhados é muito mais comum de que o por ônibus na Ásia Central, e aqui não é exceção. No entanto, os motoristas encontram um turista e só enxergam cifrões. Pechinchar é fundamental. Dois carros pararam, e os motoristas propuseram me levar pelo mesmo preço que eu havia pago pela viagem inteira de Bishkek para cá. No final, um grupo, incluindo dois velhinhos simpáticos usando o tradicional chapéu ak kalpak, topou me levar por cem soms (aproximadamente US$ 1,5). Mas tive que me virar com meu russo limitadíssimo para explicar como estava viajando com tão pouco dinheiro e assim precisava de um desconto na corrida.

Foi a primeira vez que pude ver de perto o ak kalpak. No meu dia caminhando em Bishkek, encontrei muitos homens usando-o, mas não a uma distância que me permitisse ver seus detalhes. Adoro chapéus, especialmente os centro-asiáticos, e o ak kalpak é, entre eles, provavelmente o mais exótico: branco, com detalhes pretos bordados com padrões tradicionais quirguizes, e alto - como se fosse uma cartola feita de feltro branco. Para terminar, de sua ponta, lá no alto, despenca um rabicho, uma linha que termina em um nó e um pequeno pincel. Muito bonito. O senhor quirguiz abriu um imenso sorriso de dentes de ouro quando elogiei sua indumentária.

Em Tamchy, tive minha primeira experiência de turismo comunitário no Quirguistão, uma ideia muito interessante para impulsionar a economia local. As comunidades em lugares pobres, mas com potencial turístico, se mobilizam para criar um centro para turistas em que os visitantes são conduzidos a pernoites nas casas dos locais e podem contratar guias para passeios. Uma associação nacional surgiu para dar apoio aos quirguizes interessados em empreender, ajudando na organização, explicando como converter casas em pousadas e o que oferecer ao turista. O esquema é bem-sucedido, trazendo divisas valiosas para comunidades de baixa renda, ajudando a desenvolver a infraestrutura e impulsionando mais e mais o turismo. No caso, em Tamchy, uma senhora com bom inglês me recebeu em uma pacata casa à beira da estrada. Era o escritório da associação local de turismo comunitário. Fui tratado com muito carinho. Logo ela me arranjou um lugar para ficar em uma propriedade próxima, pertencente a uma outra senhora, nos fundos de um terreno com árvores frutíferas. Havia lá duas casas - uma, a da mulher e sua família, e, a outra, o "hotel" - com salas espaçosas e tapetes cobrindo o chão de madeira e uma dez camas espalhadas em três cômodos. Do lado de fora, uma casinha com um chuveiro morno e outra com uma privada - um conforto a mais depois da pousada em Cholpon-Ata com o buraco no chão, para se agachar. Tudo, 500 soms (aproximadamente US$ 7), com café da manhã.

Cheguei a Tamchy às 15h30. Depois de me registrar no "hotel", o resto do dia se desenrolou muito como em um dia de verão numa praia brasileira. Fui para o lago. Havia muita gente na areia aproveitando o tempo bom e a água azul, mas bem menos do que em Cholpon-Ata. Em Tamchy, a extensão da praia também era maior. Andando descalço na areia, depois de alguns poucos minutos encontrei um espaço desocupado e me deitei. Cochilei no sol.

Uma hora depois, me emocionei ao, finalmente, entrar no Issyk-Kul pela primeira vez. Enfrentei os seixos pequenos e dolorosos sob meus pés nos passos para o fundo. Foi estranho sentir a temperatura. Fiquei instintivamente esperando uma água bem fria, mas já sabia que não era assim. Estava tépida, agradável, quase que uma extensão da temperatura do meu corpo. Muito transparente, sem nenhuma onda. Meus pés permaneceram visíveis, mesmo estando eu mergulhado até o peito. A água é salobra, mas não muito - um gosto parecido com o da água mineral engarrafada que havia comprado mais cedo.

Novamente, como em Cholpon-Ata, lixo na praia. E, aqui, camelos para turistas tirarem fotos. Já vi mais camelos por essas bandas do que em qualquer outro lugar na Ásia Central em que estive anteriormente. Mas sempre conduzidos por gente procurando conseguir uns trocados dos visitantes com dinheiro para jogar fora. Se existem livres na natureza os famosos camelos-bactrianos descritos por viajantes antigos, esses camelos naturais do coração da Ásia estão bem escondidos. Também encontrei umas vacas na areia, tranquilíssimas, totalmente no espírito do verão.

Mais tarde, a caminho do anoitecer, saí da praia para caminhar pelas ruas de terra do vilarejo. Foi quando uma legítima tempestade de areia transformou o panorama. Ela veio do nada, de repente. O forte vento levantou a areia da praia e a poeira das ruas, que chicoteavam minha pele e me impediam de abrir os olhos direito. De repente, me encontrei em uma cidade fantasma, quase um cenário de filme de faroeste: 17h30, o Sol ainda forte, o ar intransponível e amarelado, pouquíssimas pessoas ao meu redor, portas e janelas batendo, um homem com um cavalo passando apressado, tentando proteger o rosto. Nessa altura, pelo menos a temperatura do vento estava agradável. Mas o Sol teimou em não enfraquecer até muito pouco antes do anoitecer. Voltei brevemente à pousada para me proteger.

De noite, o vento se acalmou. Eu e um casal de turistas hóspedes na mesma casa decidimos enfrentar as ruas novamente para comer alguma coisa. No único restaurante que achamos, houve uma queda de energia. Na escuridão só iluminada por um lampião na cozinha, vi o casal europeu atacar dois apetitosos espetinhos de carne bovina, cheirosos, com uma salada de cebola ao lado. Eu fiquei sem o lagman (talharim estilo asiático, grosso, achatado) que pedi, o cozinheiro esqueceu de cozinhá-lo quando a luz acabou. Apesar da graciosa oferta do casal, não quis comer carne - nem sei porquê. Fui para casa comendo um pedaço de pão com pimenta, restos da janta dos dois. Fiquei satisfeito.

Mais uma vez, me espantou a pobreza e falta de infraestrutura dos locais. Estamos numa região turística, o dinheiro dos visitantes flui. Eu esperaria que o governo investisse aqui. Mas, aparentemente, não há coleta de esgoto. Na casa onde fiquei, por exemplo, não há, apesar de ela ser grande e confortável. Notei que a privada, com a qual me empolguei mais cedo, simplesmente cobre um buraco profundo na terra (novamente, como na pousada em Cholpon-Ata). A água vem de poços - trazida para a superfície por bombas manuais. A falta de saneamento acaba impulsionando todos a manter o hábito tradicional de ferver água e tomar chá quente, mesmo no calor. Além disso, nenhuma rua, a não ser a estrada principal para Bishkek, é asfaltada. Muitas casas aparentam estar largadas, precisando desesperadamente de uma reforma. São de alvenaria. As mais bonitas estão próximas à praia, onde está sendo construído um hotel chamado "Old Castle", assim mesmo, em inglês. Basicamente, a réplica de um pequeno castelo, com uma torre. Será que atrai turistas?

Apesar da riqueza de frutas - novamente vi árvores carregadíssimas, de maçãs e damasco, e encontrei geleias maravilhosas à venda -, toda a economia local parece depender exclusivamente do turismo. Muitos alugam quartos, outros têm pequenos empórios ou bares, todos apostando nos meses de sol. Não imagino quão deprimente seja esta região no inverno, com o vento desta tarde igualmente forte, mas gelado, com o tempo nublado, sem um turista sequer. Mas a beleza do Issyk-Kul serve de consolo.

Tamchy, 29/08, 7h

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