Sunday, 4 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXVIII): Dushanbe

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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Este texto faz referência a minha visita ao Irã narrada em Sombras Persas (2005); clique aqui para relembrar

22/9/2012

Dushanbe, capital do Tajiquistão. O nome significa "segunda-feira" em persa. Trata-se de uma referência ao dia da semana em que, antigamente, neste local, se realizava um grande mercado. Mas se segunda-feira é o dia mais triste da semana, esta cidade não está me deixando muito deprimido. Só um pouco.

Linda a avenida Rudaki, com suas árvores, de norte a sul. É vida e alma de uma cidade que ainda guarda com carinho tesouros arquitetônicos czaristas e comunistas, mas que está sendo desfigurada, como tantas outras nesta região. Desfigurada pela sanha revisionista, pela sanha da nova história, pela megalomania de um ditador.

O Parque Rudaki fica na avenida, em frente ao palácio presidencial. O parque é lindo, mas, como no centro de Tashkent, sinto que está faltando alguma coisa. Tudo parece artificial. Algumas pessoas, com feições centro-asiáticas, vão perambulando pelo Sol, tirando fotos da estátua do poeta persa (858-941) que dá nome ao parque e à avenida. Então, elas observam por um tempo o palácio presidencial. Em seguida, a outra estátua no parque (previsivelmente, de Ismail Samani). Depois, o segundo mastro mais alto do mundo (165 metros), que leva às alturas uma bandeira de 700 kg, tão grande que certamente seria preciso um furacão para fazê-la tremular por inteiro. Essas pessoas parecem estar desempenhando algum papel pré-estabelecido para elas. Como se seguindo ordens. Não duvido nada, se forem tajiques, que estejam fazendo o que acreditam que se espera delas... para evitar qualquer problema com as autoridades. Talvez se perguntem, lá no fundo, o por quê de tanto gasto grandioso em obras grandiosas. E silenciosamente, escondidas, talvez suspirem.

O palácio presidencial, defronte ao parque, é modestamente chamado de "Palácio das Nações". Demorou oito anos para ser construído - de 2000 a 2008. Com uma opulência impressionante, dizem que ele custou mais do que todo o orçamento anual do Tajiquistão para a saúde. Substituiu o antigo bairro judeu da cidade, um reduto de um povo em extinção nesta terra, o que gerou uma onda de protestos internacionais. O palácio é coroado por uma cúpula dourada que ofusca o Sol da manhã. A ostentação é agressiva, talvez o maior exemplo de megalomania que já vi na Ásia (ainda hei de visitar o Turcomenistão).

Hipnotizado, fui mantido bem à distância, eu e todos os mortais. Há um portão na frente, e ele fica bem longe da edificação em si. Nem bem me aproximei dele, um policial de guarda pediu para eu me afastar. Fiquei pensando que o melhor seria pintar uma linha vermelha no chão para estabelecer até onde as pessoas podem se aproximar a fim de evitar os olhares desconfiados dos pobres soldados, na certa adestrados dia e noite por anos para serem paranoicos. Todos têm que ficar bem longe do imaculado poder, turistas e locais. Não há nada o que fazer. Observo à distância a modesta morada do presidente Emomali Rakhmon, o humilde servo desta nação, cujo semblante adorna tantos prédios por aqui.

É como se a opulência e as fotos de Rakhmon tentassem compensar a pobreza e a falta de identidade legítima do país.

Prova dessa falta de identidade se vê perto do parque e do palácio, na sede da Associação de Escritores do Tajiquistão. A fachada da instituição relembra com estátuas os grandes nomes da cultura persa. Lá estão, como em uma reunião de família, Rudaki, Ferdosi, Omar Khayyam. O governo tajique reforça essa ligação íntima que tem com seu passado persa, o patrimônio atrelado à dinastia persa samanida, do século X. Paradoxalmente, isso ao mesmo tempo torna a identidade tajique mais forte e mais fraca. Uma visita ao Irã, como a que fiz em 2005, faz o visitante conhecer os ícones da milenar cultura do país. Lá também são enaltecidos Ferdosi e Khayyam (ambos nascidos no atual Irã, só Rudaki nasceu no atual Tajiquistão). Não seria o Tajiquistão apenas um eco centro-asiático do Irã, essa sim uma grande nação? Não seria o Tajiquistão um filho pródigo do Irã que se perdeu no meio das montanhas distantes, nas satrapias distantes dos aquemênidas, reencontrado depois?

O Tajiquistão busca sua própria personalidade ao celebrar seu passado persa. Mas o passado persa pertence também aos outros. Pertence ao Irã, de onde tantos de seus heróis literários, onde fica, inegavelmente, o centro da cultura persa. E pertence ao Uzbequistão, onde está Bukhara e a tumba de Samani, maior herói tajique. Uzbeques e tajiques por séculos foram povos unidos, em simbiose. Assim, o que é realmente, exclusivamente tajique?

Nesse contexto, Rakhmon assume essa identidade. Ou tenta assumir. Quer ser a personificação do povo tajique.

Pobre país.


* * *

No Museu Nacional de Antiguidades, a luz das salas vai sendo acesa pelos funcionários à medida que você vai passando por elas. Todos são obrigados a tirar os sapatos e a colocar sapatilhas de plástico nos pés.

Vale a pena. Há algumas preciosidades. Relíquias que, realmente, provam que Alexandre esteve no Tajiquistão... já que as ruínas desfiguradas de Istaravshan e Khojand não provam muita coisa. Suas pegadas, ei-las visíveis nos artefatos tirados do sítio arqueológico de Takh-i-Sagin, perto da atual fronteira tajique com o Afeganistão. Incríveis colunas, que um desprevenido diria que foram retiradas de Atenas. Estátuas com as formas gregas clássicas e até o que parece ser uma cabeça de Alexandre, esculpida em marfim.

Mas esta terra foi lar de muitos outros povos. Um deles foram os kuchanos (ou cuchanos), que tiveram o auge de seu império nos primeiros anos da era Cristã. Os kuchanos foram um dos primeiros impérios a surgir da desintegração do império de Alexandre, o Grande, na Ásia. Após a morte do macedônico, em 323 a.C., um de seus generais, Seleuco, assumiu o controle na Ásia Superior, criando o que hoje se conhece como Império Selêucida. Posteriormente, em 250 a.C., o governador da província de Báctria (região da antiguidade que coincide, em grande parte, com o atual Afeganistão), Diodotus, declarou sua independência dos selêucidas, formando outro reino chamado pelos historiadores de Greco-Báctrio. Invasões de guerreiros nômades de outras partes da Ásia levaram à desintegração desse novo reino, criando as condições para a ascensão dos kuchanos a partir do primeiro século depois de Cristo. Os três reinos têm uma coisa em comum, confirmada pelo que foi encontrado por arqueólogos: realizaram a helenização de fato da Ásia Central, juntando elementos da cultura local, como a religião budista, com outros vindos da distante Grécia, como a estética das esculturas.

Os kuchanos, que só seriam eliminados de vez por volta do século IV d.C., chegaram a dominar um território vasto que ia do Vale de Fergana até muito mais ao sul, onde fica a metade da atual Índia. Acredita-se que usavam o alfabeto grego, mas, ao mesmo tempo, adotaram o Budismo e foram grandes incentivadores da religião, expandindo-a da Índia à região da Ásia Central, incluindo a China. Nesse período, se construíram inúmeros mosteiros e templos na região.

No sítio de Anjina-Tepe, novamente no sul tajique a caminho do Afeganistão, eles deixaram o seu maior legado na Ásia Central. Maior mesmo, literalmente, descomunal. Uma estátua de um Buda em nirvana, deitado, medindo 12 metros, feita de argila. Tão grande que teve que ser cortada em dezenas de pedaços para ser transportada para o museu em Dushanbe.

Depois da destruição dos Budas de Bamiyan no Afeganistão pelo Talebã em 2001, esta é a maior estátua de Buda que resiste na Ásia Central. Vê-la em uma sala do museu, com o funcionário acendendo a luz e meus olhos demorando para fazer sentido do tamanho da figura, me deixou boquiaberto. Como eu gostaria de ter visto esta estátua no local onde foi encontrada, gostaria de ter sido seu descobridor. Certamente quem a encontrou deve ter tido uma sensação de espanto mil vezes maior que a minha.

Logo, meu deslumbramento passa à tristeza e à conclusão que o museu é provavelmente o melhor lugar para este tesouro. Quantos já se perderam na mão de ignorantes como o Talibã. O próprio homem destruindo o que tem de mais valioso, sua própria memória.


* * *

Viajar por muito tempo por lugares desconhecidos proporciona essas coisas. De repente, seu próprio corpo te trai e você está sozinho. Mas acabei tendo uma experiência positiva e até engraçada na capital tajique quando me vi obrigado a sacrificar boa parte de meu dia para ver um médico e esclarecer o porquê do sangue na minha urina. Sentia medo, constrangimento e simples desamparo - como explicar uma coisa tão complexa em russo, se nem falo russo direito?

Na noite anterior, fiz questão de beber muita água numa tentativa (evidentemente sem nenhuma base científica, só nascida de instinto) de "eliminar as toxinas". Me ocorreu que andei bebendo muito pouca água durante a viagem e que se tive algo pequeno, algum pequeno ferimento, a água poderia ajudar a limpar. De manhã, minha urina me pareceu laranja, mas fiquei em dúvida se era amarelo escuro e meu olhos estavam me enganando. Imaginando que os médicos fossem me pedir para ver a urina, e temendo a demora em fazer o exame, me adiantei e colhi um pouco do líquido numa garrafinha transparente. Me sentia bem, sem febre.

Lá fui eu pelas ruas de Dushanbe com minha "garrafa de guaraná" para a clínica particular recomendada pelo consulado.

Chegando lá, uma longa fila. Levei meu dicionário de bolso e me fiz entender, mas insisti várias vezes para ver alguém que falasse inglês. A recepcionista me deu um formulário para preencher e me pediu para subir as escadas e aguardar numas cadeiras em um corredor cheio de portas e pessoas vestindo branco. Estranhei as paredes - eram avermelhadas - e a escuridão, mesmo sendo de manhã. Uma enfermeira chegou e perguntou meu problema. Fiquei envergonhadíssimo, e o russo não saia. Pedi novamente para ver alguém que falasse um mínimo de inglês e um médico. Ela pegou o formulário e desapareceu.

Passaram-se uns cinco minutos. Uma enfermeira mais velha, obesa e com uma tremenda cara de poucos amigos, chegou acompanhada de um homem igualmente mais velho, os dois com jalecos. A mulher era a típica russa. Braços volumosos, cabelo penteado com um coque, bem esticado, rugas e semblante permanentemente raivoso. Voz dura e forte, pele suando. O homem, com o rosto todo enrugado, tinha um olhar doce e paciente, parecia sem pressa, tranquilo. A mulher me disse que falava "um pouco de inglês". Pediu para eu explicar qual era meu problema.

Expliquei devagar. Sempre que falo com médicos me pergunto o grau de detalhe que eles querem ouvir da gente, nunca sei se algo aparentemente irrelevante para mim pode ter grande importância na hora do diagnóstico. E o grau de detalhes que costumo dar varia de acordo com a preocupação que tenho em relação ao meu quadro clínico. Ou seja, neste caso foi mais ou menos um resumo da última semana. Ando dormindo em lugares horríveis doutor, horríveis. Respirei pó sei lá de que ano da era Brejnev, passei frio e tomei chá com água de procedência suspeita. Como sem pensar muito no que estou comendo. E ando, ando, horas e horas. Comecei a sentir os primeiros sinais de uma gripe em Isfara. Eu tomei tal remédio para gripe, que trazia da Inglaterra, melhorou minha febre. Em Istaravshan ela esta alta, atrapalhou meu passeio, meu sono. Lá minha urina estava estranha, pensei que era algo do meu fígado, porque eu já tive hepatite e a urina fica escura. Então, tomei cuidado com a alimentação. Aí cheguei em Dushanbe depois de mais uma longa jornada de carro, me sinto ótimo, sem febre, mas ontem fui ao museu e tive vontade de urinar, fui ao banheiro e vi que minha urina estava vermelha, acho que é sangue em minha urina. Esta garrafinha aqui, tem urina de hoje de manhã, olha - está meio laranja ainda. Ou não? Já nem sei. Só sei que ontem estava vermelha. O que pode ser?

Falei, falei, longos minutos. Dei, enfim, detalhes minuciosos. A enfermeira ouviu. Algumas vezes eu parava, para ver se ela queria me fazer alguma pergunta, me pedir para falar mais devagar, mas ela não dizia nada. Então, eu continuava. Falei, falei. Até o final. O que pode ser?

Fiquei em silêncio. Finalmente a enfermeira abriu a boca. Dirigiu-se ao médico em um russo que até quem não sabe russo entenderia. Simplesmente falou "está mijando sangue", deu as costas e foi embora.

Que doce de pessoa.

O médico me convidou para entrar em uma sala de consulta, fez mais umas perguntas em um russo básico, me examinou e pediu um ultrassom e um exame de urina. Pensei que demoraria, como no Brasil, dias para ter tudo pronto. Nada disso. Saí do consultório, fui direto fazer o ultrassom. Pegaram minha urina da garrafinha. Uma hora depois, me chamaram no corredor. Com os resultados em mãos, voltei ao consultório. O doutor escreveu uma receita e me explicou - "provavelmente, algo nos rins, algo pequeno". Entendi que provavelmente tinha se criado um minicálculo ou minicálculos, como areia, no órgão ou nos ureteres, o que gerou um ferimento e possivelmente uma infecção. Fiquei pensando em como não senti nenhuma sede em vários dias de passeio. Esqueci uma regra básica, beber muito líquido.

O médico continuou sendo extremamente gentil. Fez questão de me acompanhar até a farmácia da clínica e pediu os remédios para mim - antibiótico e um outro, que não consegui entender para o que era. Repetiu três vezes a posologia. Este, um por dia por dez dias. Este, um a cada refeição por uma semana. Perguntei se podia continuar viajando. Sim, sim. Tome os remédios e pode viajar. Mas nada de álcool. Cerveja, nem pensar, até acabar o antibiótico.

O temível Tajiquistão me deu um tratamento médico de primeiro mundo, enfim. Evidente. Fui atendido em uma clínica particular e, provavelmente, a mais cara da cidade. Remédios, consultas e exames consumiram uma semana de meu orçamento. Mas estava tão feliz, tão profundamente aliviado, que nem sequer pensei no dinheiro. São e salvo! Livre!

Volto para o hotel, pijama, internet. Mais conforto. Amanhã, voltamos à aventura.

Dushanbe, 22/9, 21h14

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