Wednesday 29 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XVIII): Samarkand

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Este texto faz referência a minha primeira visita a Samarkand, narrada nos capítulos VIII e IX de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

12/9/2012

Jantamos, eu e Lutfollah, em seu pequeno paraíso em Shakhrisabz. Sua casa e seu pátio, escondidos na rua principal da cidade, são dificílimos de encontrar. Passei pela sua porta umas duas vezes e não me dei conta que era o local que estava procurando. O pátio é pequeno, mas uma arca abarrotada de tesouros, de dar inveja a qualquer hotel cinco estrelas. O quadrilátero é coberto pela parreira e pelos caquizeiros, tão, tão carregados de frutos que é difícil acreditar que são de verdade. Eles parecem de plástico, tendo sido pendurados lá de propósito. Não entendo por que as frutas não foram colhidas. Estão maduras, maduríssimas, o ar está carregado de doçura. E, circundando o pátio, quartos para os hóspedes, inclusive o meu. Estou me sentindo um rei. Sou o único hóspede e, como tal, sou quase da família.

Moças trazem a comida sem dizer uma palavra e desaparecem de vista. Primeiro, uma travessa com frutas secas, amêndoas, nozes, uvas passas. Depois: em rodelas, tomates e cebolas; e um pratão de um risoto chamado shavla, um prato muito parecido com o plov, a mais conhecida especialidade da culinária do Uzbequistão. A diferença é que o shavla vem com menos ingredientes - daí ser visto por alguns como comida de pobre. Nada de cabeça de alho inteira cozida juntamente com o arroz, por exemplo. Para beber, é claro, muito chá, verde ou preto.

Lutfollah - um rapaz de seus 35 anos, bem-educado, com cara cansada, olheiras profundas, mas muita curiosidade no olhar, vestindo camisa e calça surrados - é o dono do lugar, onde mora com sua família: o pai, bem mais velho, uns setenta anos, e as mulheres, quatro, que não cometo a indiscrição de perguntar se são irmãs, esposas, amigas das esposas, netas ou sobrinhas. Ficamos uma boa hora discutindo o inevitável futebol - de Pelé e Garrincha a Neymar. Me espanto com seu conhecimentos de nomes obscuros da genialidade futebolística brasileira. Porque, como bem sabe qualquer viajante brasileiro que se aventura por aqui, nós somos automaticamente considerados especialistas em futebol, sumidades com conhecimento enciclopédico da arte da bola, das Copas do Mundo, dos sistemas táticos, dos jogadores que fazem parte de cada grande equipe do mundo. Eu não sou, infelizmente. Mas me viro. Por apreço a meus anfitriões, por gratidão pela recepção tão maravilhosa, jamais poderia deixar de dar minha melhor interpretação de João Saldanha.

As frutas são uma delícia! Mordo uma uva, verde, bem pequena, quase uma esmeralda. O sabor fresco entorpece toda minha boca. Parece ter sido injetada com mel.

No fim do verão, a Ásia Central inteira é um festival de presentes da natureza. As uvas. Os melões fatiados, um vício. Melancias. As maçãs, por toda parte. As geleias. Foi assim no Quirguistão, no Cazaquistão, agora, aqui. Um sonho.


* * *

De manhã, peguei o trem e me despedi de Bukhara. E segui para Samarkand.

Samarkand, a nobre Samarkand, a capital de Tamerlão, a capital do mundo, o epicentro da Rota da Seda. Rever o conjunto do Registan com seu esplendor, as três madrassas com as fachadas iluminadas pelo Sol respectivamente no amanhecer, ao meio-dia e ao anoitecer. Aqui estão, imutáveis, inacreditáveis, como em 2003. Pena que há tantos, tantos turistas. Mas nem isso lhe rouba o poder hipnótico. Só me faz alvo constante de muitos vendedores e de muitos, muitos outros turistas disputando comigo espaço pelas melhores fotos, de curiosos que me perguntam infinitas vezes de onde eu sou e, caso eu responda que sou brasileiro, começam a falar de futebol.

A cidade, a maior joia timurida, é de fato tão turística como Bukhara. Entretanto, aqui, o fluxo de visitantes é concentrado no Registan e, claro, no mausoléu de Tamerlão, o Gur-i-Emir. Nas duas cidades é ainda possível se perder pelas ruas e ir a lugares menos disputados, onde o impacto da "indústria" é menor. Assim, fujo do Registan. A grande memória que tenho é a da primeira e grande exploração dessa preciosa composição de seminários islâmicos em 2003, e assim ela permanecerá. Lembro-me explorado a madrassa Tilla-Kari, o prédio central, e seu interior dourado. Agora a vejo de perto de novo, mas não de dentro. Supervisiono as outras duas madrassas que, juntamente com a Tilla-Kari, compõe o que talvez seja o mais maravilhoso conjunto arquitetônico islâmico já erguido (não sei dizer qual é mais bonito, o Registan, o Poi Kalon de Bukhara ou a praça Naqsh-e Jahan de Isfahan). A madrassa Ulugubek, à esquerda, é a mais antiga, tendo sido concluída em 1420, logo ainda no período do domínio dos timuridas. As outras duas, feitas no mesmo estilo, são shaibanidas, do século XVII.

Fujo antes que as boas lembranças sejam deturpadas por camelôs com suvenires ou, pior, turistas entediados que chegam em seus ônibus, tiram fotos de tudo sem apreciar nada, sem conseguir enxergar beleza nem que esta lhe seja esfregada no rosto.

Espantou-me a "maquiagem" de Samarkand. Desço pela via próxima que leva à colossal mesquita Bibi Khanoum e ao pitoresco cemitério Shahr-i-Zinda. Nessa rua, o presidente Islam Karimov fez uma clara higienização. O contraste é incrível para o que guardo na cabeça de dez anos antes. Ao redor do mercado ao lado da mesquita - onde outrora havia a alegre agitação dos vendedores de todo tipo de produto e dos cozinheiros preparando panelas imensas de plov, agora há um gramado, árvores plantadas. Isso é bom ou ruim? Bom e ruim, evidentemente. Caminhando pelo local, sinto nostalgia da velha bagunça, uma bagunça ancestral, de séculos e séculos, em um dos pontos mais importantes para compra de mantimentos para as caravanas atravessando o deserto, seguindo entre China e Europa. Por outro lado, o lugar está mais calmo, mas contemplativo, e é possível ver facilmente o Shahr-i-Zinda. Contudo, eu desconfio das intenções das autoridades, de Karimov. De fato, é higienização, mas para os limpinhos e endinheirados verem, para aqueles que só ficam admirando os monumentos e não têm interesse de olhar para o lado. Logo na esquina, descendo paralelamente à rua em frente ao Shahr-i-Zinda, há uma vala com esgoto a céu aberto, ao lado de casas e crianças pobres.

Volto rapidamente ao Registan, atravesso de novo a atual bagunça, a dos ônibus de excursão e senhores obesos e ofegantes. Por causa da hora, decido deixar para lá o mausoléu Gur-i-Emir, jurando visitá-lo novamente em uma nova oportunidade, e me dirijo a uma outra mandala arquitetônica que, como tantas outras por aqui, não tive em 2003 o prazer de visitar. Graças a informações desatualizadas de meu guia, demoro muitíssimo para encontrar o ponto de onde saem táxis compartilhados de Samarkand para o local de repouso final de Al-Bukhari, minha próxima parada. Minha procura de uma hora, a pé, me levou a uma avenida surreal - mais um sinal do projeto higienista do ditador uzbeque.

Posso estar enganado, pode não ter sido por ordem direta de Islam Karimov, mas eu sinceramente acho que nada neste país é feito sem sua bênção. A avenida é, basicamente, um canteiro de obras em seus dois lados: quase um quilômetro de calçadas e casas em construção, sendo criadas ou reformadas inteiramente. Claramente, ninguém vivendo nelas. No lado esquerdo e no direito. As pessoas foram retiradas, extraídas, ou ainda ninguém nunca viveu nessas residências. Metros e metros de casas estão sendo erguidas, substituindo habitações que certamente ocupavam os mesmos terrenos há décadas. O que vejo poderia ser algo natural se este fosse um bairro planejado, sendo construído do zero. Mas estou bem perto do centro de Samarkand, e esta é uma cidade grande, antiga.

Na minha caminhada, de repente avisto uma casa antiga, grande, ainda de pé, orgulhosa, em algum ponto da avenida. Provavelmente esperando sua execução. Por que não simplesmente restaurar as residências antigas, preservando suas feições originais?

Me entristeço muito. Penso que este lugar está perdendo muito de seu passado. Lembro de São Paulo.


* * *

Outra reflexão sobre as edificações de hoje. Neste caso, sinto algo bem diferente.

Muhammad Al-Bukhari (810-870) foi uma das maiores autoridades da história na interpretação dos hadiths, os dizeres e feitos do Profeta Maomé. Seu mausoléu, tal qual pode ser visitado hoje nas cercanias de Samarkand, é uma construção moderna, de 1998. Para mim, ela foi uma prova de que construções islâmicas modernas podem ser tão lindas e evocativas quanto as antigas, ainda que as do passado tragam o feitiço que só os séculos lhe podem conferir.

O mausoléu: um cubo de pedra de uns cinco metros de altura, feito de mármore amarelo, vestido de complexa caligrafia árabe e desenhos em alto-relevo que sugerem estrelas, espaços, flores, o cosmos. Em cima dele, uma cúpula-cebola azul. Dentro da construção, pode-se ver o paralelepípedo da tumba em si, também de mármore amarelo. Ao redor do mausoléu foi construído um pequeno parque com árvores e uma fonte que ajudam a enfrentar o Sol. A água é potável, deliciosa, e brota da terra à sombra. Um pavilhão com sólidas colunas de madeira, provavelmente de álamos, circunda o parque, dando acesso a uma mesquita e a um museu que guarda exemplares do Corão doados por vários países. Uma composição em branco, das paredes do pavilhão, em verde, das árvores do parque, e em castanho-claro, das colunas de madeira.

Sento-me com um grupo de senhores na faixa de 50 anos com seus chapéus uzbeques em um longo banco com almofadas verdes bem em frente ao mausoléu. Ao lado deles, um jovem com conhecimento religioso entoa uma oração-cântico. Todos estão com as mãos abertas e unidas, com as palmas viradas para o céu, na altura do peito. Um gesto de prece. É irresistível e me junto à oração. Fecho os olhos. O pensamento se tresmalha no eco da voz, na suave brisa que leva as palavras para perto da tumba do grande sábio. Mais ecos no mármore amarelo. Sem compreender a língua, entendo seu significado, o significado do momento. O louvor a Deus, o agradecimento pela água, pela brisa, pedidos de sabedoria. O breve silêncio final: as mão são levadas ao rosto, acariciam a pele, lavam a face com gotas imaginárias.

Fatos em relação a Al-Bukhari beiram o mitológico. Diz a lenda que ele memorizou todo o Corão aos sete anos e passou a vida colecionando as hadiths, entre as quais milhares (pelo menos uma fonte diz 300 mil) ele teria também memorizado. Sua obra mais conhecida é a Sahih Al-Bukhari, uma das seis grandes compilações de ensinamentos do Profeta para os muçulmanos sunitas, uma obra de fôlego, de centenas de páginas, que teria custado a Al-Bukhari 16 anos de dedicação.

O respeito e a adoração a Al-Bukhari surpreenderam as autoridades soviéticas, que apenas por uma rara intervenção externa se deram conta da necessidade de criar uma mínima infraestrutura para os visitantes do mausoléu. No século 16, uma modesta mesquita fora construída ao lado da tumba do sábio. Nos anos 1950, estava dilapidada. Em 1954, em uma visita à URSS, o então líder indonésio Sukarno solicitou às autoridades em Moscou autorização para visitar o mausoléu e prestar suas homenagens. Na época, Nikita Krushchov buscava se aproximar da Indonésia e de outras nações de maioria muçulmana, e uma recusa teria sido vista como prejudicial a esse esforço. Assim, o local foi arrumado às pressas - construiu-se até mesmo uma via asfaltada para dar acesso a ele, e a mesquita voltou a ter condições de receber fiéis. No entanto, apenas sob Karimov ganharia a dimensão de complexo que tem hoje.


* * *

Após Al-Bukhari, volto para Samarkand. Encontro transporte e sigo para as montanhas. No caminho para Shakhrisabz, abraço um frescor na estrada que só havia sentido antes na Ásia Central no lago alpino em Almaty. A estrada não é muito sinuosa, mas é cheia de desvios pela presença de vacas, bois, burros, carneiros, cavalos, todos cismando em dividir a estrada com os carros. À beira da via, que passa por Shakhrisabz para depois chegar ao Afeganistão, as montanhas vão revelando pequenas casas de chá; nelas, os motoristas se deitam preguiçosamente nas típicas camas-mesas, tomando suas infusões quentes. Vendo a tarde passar, mudar de cor, fitando as reses passando pela estrada... bem devagar... bloqueando o tráfego...

Ao anoitecer, já em Shakhrisabz, sou deixado pelo motorista na praça central, à sombra da impressionante estátua de Tamerlão. O conquistador olha para o infinito em sua cidade natal. O sol se põe.

Shakhrisabz, 13/9, 10h

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Sunday 26 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XVII): Bukhara

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Este texto faz referência à minha visita anterior a Bukhara, relatada nos capítulos VI e VII de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); clique aqui para relembrar

11/9/2012

Inacreditáveis ecos brasileiros na Ásia Central.

Ontem, antes de dormir, ainda com os shashliks e a cerveja choca festejando na barriga, decidi assistir um pouco de TV. No hotel, por US$ 15 por noite (incluindo café da manhã), me deram acesso a um quarto coletivo, com quatro camas. Tirando o barulho do entrar e sair dos mochileiros, a cama era confortável, tudo estava limpo, não havia mosquitos e, a cereja no sundae, o quarto tinha uma TV colorida com TV a cabo digital - centenas e centenas de canais. Zapeando, descobri canais em uma dezena de línguas diferentes. E, entre eles, um canal brasileiro. Se me falassem, eu não acreditaria. Ou acreditaria que poderia ser a Globo Internacional. Não, tratava-se de um canal religioso chamado "Canção Nova". Na tela, uma mulher pregando, em minha língua, para uma numerosa plateia. "O leão do pecado ruge... RUGE... RUGE..." Eis a mensagem que viajou milhares de quilômetros para falar só comigo. Fico pensando se há algum significado oculto por trás disso.

Hoje, novo assombro. Em um internet café/central telefônica em frente à Labi-Hauz, eu estava enfrentando o mouse com defeito para mandar notícias para a família e para os amigos. Um casal que nem vi chegar estava de pé em frente ao balcão, falando com o responsável pelo lugar. Logo se percebe que estavam tentando fazer uma ligação para o exterior de um dos telefones disponíveis. O dono do local coloca o telefone no viva-voz para que o casal possa entender o problema que está acontecendo na conexão. Ouve-se a gravação dizendo "este número de telefone não existe". Em português brasileiro e volume bem alto, invadindo os ouvidos de todos.

Levanto na hora. Foi uma reação completamente impulsiva. Fiquei muito surpreso, de verdade, meu coração disparou. Muito estranho ouvir a voz na sua cabeça passar para o mundo real. Após levantar, fui direto ao balcão e perguntei em inglês: "Quem diabos é do Brasil?"

O casal era formado por um homem mais velho, grisalho, uns 60 anos, e sua esposa, de uns 35 anos, ambos morenos de Sol. Risonhos e calmos, não demonstraram nem metade de minha surpresa. Eram de Minas. Estavam acompanhados de uma guia uzbeque que falava espanhol. Com ela, estavam fazendo o circuito básico do Uzbequistão, o mesmo que fiz em 2003 - Tashkent, Samarkand, Khiva e Bukhara. Armaram a excursão com uma operadora do Brasil e esta parte do Uzbequistão se seguiu a uma visita à Armênia. Uma viagem certamente com um preço bem salgado.

Conversamos por uns dez minutos, caminhando pela cidade. Foi muito agradável. Falamos justamente de como é caro vir do exterior para cá, mas como é barato viajar dentro do Uzbequistão. Falaram que estavam adorando tudo o que viam no país. Tentei incentivá-los a continuar o bate-papo - tudo era tão surreal para mim, falar com brasileiros que encontrei por acaso tão longe de casa. Mas o casal na verdade não parecia querer conversar tanto quanto eu. Especialmente quando eu incluía, na conversa, elementos sobre a história de Bukhara e do Uzbequistão. Senti uma certa tristeza ao perceber que eles pareciam não se importar, ou não pareciam entender, o meu deslumbramento em estar nesta terra tão distante, num lugar praticamente desconhecido pelo Ocidente e fora do radar do mundo até o final da União Soviética. Num lugar onde estrangeiros, há 170 anos, corriam o risco de serem executados em praça pública como espiões por estarem aqui. Um fato que realmente aconteceu.

Trata-se do trágico destino, em 1842, de dois oficiais do Exército britânico, o coronel Charles Stoddart e o capitão Arthur Conolly, em um dos episódios mais notórios do chamado "Grande Jogo", como ficou conhecido o período em que os impérios britânico e russo lutavam pelo controle da Ásia Central durante o século XIX. Stoddart fora enviado ao Emirado de Bukhara em 1838 com a missão de obter uma aliança com o emir Nasrullah Khan contra o avanço dos russos na região. Contudo, Stoddart, provavelmente com a arrogância típica dos militares britânicos da época, cometeu uma gafe diplomática atrás da outra no seu encontro inicial com o emir, levando o monarca a ficar furioso e prendê-lo, colocando-o em um buraco infestado de insetos.

O governo britânico, ocupado então com guerras no Afeganistão e na China, não deu muita importância para a prisão. Uma missão de resgate, porém, foi montada por Conolly, um experiente "jogador" do "Grande Jogo" - aliás, ele fora o próprio criador do termo, usado pela primeira vez em uma carta enviada por Conolly a um amigo em 1840.

Ao se encontrar com o emir, Conolly, porém, foi novamente alvo da fúria do monarca - que esperava receber uma carta da rainha Vitória em resposta a uma missiva que ele havia enviado a Londres. Incentivado pela percepção de fraqueza dos britânicos devido a uma recente derrota no Afeganistão, acreditando que não viriam represálias, Nasrullah Khan decidiu decapitar os dois britânicos em praça pública, em frente à Ark, a fortaleza do monarca na cidade.

Este é um resumo da história, que tem nuances incríveis e que resumem bem um dos períodos mais fascinantes da história da Ásia Central. Quem melhor colocou essas histórias no papel foi o britânico Peter Hopkirk, em um estilo, claro, um tanto tendencioso, ressaltando a glória dos emissários da rainha. Assim, segundo ele, foi o momento da decapitação.

Primeiro, sob o olhar da multidão em silêncio, os dois oficiais britânicos foram forçados a cavar suas próprias sepulturas. Então eles foram ordenados a se ajoelhar e se preparar para a morte. O coronel Stoddart, depois de denunciar em voz alta a tirania do emir, foi o primeiro a ser decapitado. Em seguida, o carrasco se virou para Conolly e o avisou que o emir lhe havia oferecido a oportunidade de ter a vida poupada se ele abdicasse do Cristianismo e abraçasse o Islã. Ciente de que a conversão forçada de Stoddart não o havia salvado da prisão e da morte, Conolly, um cristão devoto, respondeu: "O coronel Stoddart era muçulmano há três anos e vocês o mataram. Eu não me tornarei um e estou pronto para morrer". Então ele esticou o pescoço para o carrasco, e um momento depois sua cabeça rolou na poeira ao lado da de seu amigo.
- Peter Hopkirk, The Great Game

De volta à realidade, à muito diferente Bukhara de hoje. Quem sim ficou muito curiosa comigo, já que o casal de brasileiros estava mais interessado em ficar sozinho, acabou sendo a guia, que parecia perplexa em saber que esta era minha terceira viagem ao país e me perguntava por que eu gostava tanto do Uzbequistão. Não é a primeira vez que um uzbeque me pergunta isso. Respondo com sinceridade e simplicidade: "Olhe à sua volta!"

O encontro com os visitantes brasileiros provou como Bukhara de fato está se tornando um polo turístico internacional, como não é mais um destino apenas para aventureiros audaciosos. É claro que Bukhara ainda não é uma Paris e nunca será - é simplesmente longe demais de qualquer grande centro, do Ocidente e mesmo do Oriente; por isso sempre será caro chegar aqui e, quem vier, tem que estar disposto a uma longa viagem. Até mesmo os brasileiros estão passando a explorar a mítica Rota da Seda. Que bom! Quem sabe se, com mais dinheiro do turismo, alguma das velhas mesquitas caindo aos pedaços nas ruas ao redor da Labi-Hauz possam ser salvas.

Por outro lado, me bate o medo de que a cidade vá virando cada vez mais uma armadilha para turistas, seguindo o modelo americano, e perca completamente a sua alma. Os preços explodiriam, apenas ônibus de excursão tomariam as ruas, a vida deste centro maravilhoso seria espremida para fora dele, lembrando o museu a céu aberto que é a cidade velha de Khiva, no oeste do Uzbequistão - linda, mas quase morta.

Sinto que isso já está acontecendo. Mas torço para que a transição nunca se complete.


* * *

Não havia visitado este santuário do kitsch em Bukhara antes.

No palácio de verão do último emir, a cerca de 6 km da Labi-Hauz, o monarca Alim Khan (bisneto de Nasrullah), que governou de 1911 a 1920, combinou os esforços de arquitetos russos e artesões locais para criar em sua propriedade um jardim com rosas, árvores frutíferas, pavões... e uma orgia decorativa nos seus aposentos. Chamado Sitorai Mokhi Kosa (algo como "Palácio das estrelas parecidas com a Lua"), ele foi erguido no final do século XIX e inaugurado auspiciosamente em 1917, o ano em que os bolcheviques tomaram o poder em Moscou, três anos antes de acabar com o Emirado de Bukhara e anexá-lo à URSS.

Foi um capricho arquitetônico de Alim Khan e, pelo jeito, ele adorava cores. O teto da primeira casa do complexo do palácio, a que encontrei mais perto da entrada, é uma estonteante combinação de vidros coloridos, espelhos, áreas folhadas a ouro, alto relevos, pinturas. Uma mistura maluca. As paredes seguem a mesma regra. Em cada sala, padrões estéticos diferentes, detalhes que se chocam com força. Obviamente tudo é muito bonito, mas isoladamente. Juntos, todos os detalhes fazem doer os olhos, criando uma extravagância enjoativa e sem sentido. Na terceira e última casa do complexo era onde ficava o harém, e à beira dela o emir mantinha uma piscina para suas cortesãs. Também ao lado da piscina, até hoje está uma plataforma de madeira na qual se sobe por uma escada. Lá o monarca ficava em seu trono, olhando maravilhado a formosura das formas femininas se banhando à sua frente. Dizem que do alto da plataforma ele escolhia sua "vítima" e jogava à bem-aventurada uma maçã para indicar à moça que teria que trabalhar.

O complexo é hoje ocupado por museus com roupas, bordados e objetos do último emir. Os objetos são belos, mas a impressão que causam não é nada comparada com a das cores e brilhos dos tetos e das paredes do palácio. A mente é transportada para o mundinho do emir, suas preocupações fúteis e sua vida de luxos e banalidades como fantoche do Império Russo, explorando seus pobres súditos, até ser eliminado após uma longa sobrevida pela máquina bolchevique com a ajuda de aliados locais. Refletindo sobre os traidores e o destino do Emirado de Bukhara, passei um pouco pelos jardins, devorando uma ou outra maçã colhida das árvores, pensando depois se não estavam contaminadas por agrotóxicos vencidos desde os tempos do comunismo.

De volta à cidade, à perfeição suave de suas madrassas e mesquitas, atravesso vielas rumo à Ark. No meio do caminho, entro por ruas que nunca explorei, seguindo um mapa que nunca vi em meu guia. Logo estou no lar de um dos responsáveis pela derrocada do vaidoso último emir.

Estou na casa de Fayzullah Khojaev, quem, pode-se falar sem receio, é um dos pais do Uzbequistão moderno. Nascido em 1896 uma família de ricos mercadores em Bukhara, Khojaev logo seguiu pelo caminho da contestação ao absolutismo do emir. Seus anos formadores foram em Moscou, para onde seu pai o mandou para estudar na juventude. Percebendo como sua Bukhara era atrasada em relação ao mundo do czar, uniu-se a um movimento chamado jadidismo, que pregava o reformismo islâmico e a união dos povos turcos. Posteriormente, com astúcia, vendeu-se como um contato confiável para os bolcheviques, convidando-os a tomar o anacrônico emirado à força. Quando finalmente o emir caiu, em 1920, Khojaev assumiu o controle sobre o executivo da breve República Popular Soviética de Bukhara. Em 1925, com a mudança dos mapas estabelecida por Stálin, Bukhara se fundiu a territórios vizinhos e surgiu a República Socialista Soviética do Uzbequistão, com Khojaev como seu primeiro chefe de governo. Mas a carreira política, como a de tantos outras estrelas ascendentes da União Soviética nessa época, seria abreviada pelos expurgos de Stálin durante o Grande Terror dos anos 30.

O legado de Khojaev é um tanto maldito. No país, nunca vi monumentos a ele. De fato, não encontrei ruas nem praças com seu nome. Pode-se interpretar que, na verdade, Khojaev incitou os bolcheviques a acabar com o que restava do orgulho de Bukhara e do khanato de Khiva (também protetorado russo até então) antes de os dois se tornarem o Uzbequistão soviético. Ao estimular o surgimento de um novo país, fez um pacto maldito pelo poder, sendo inegavelmente ambicioso e inteligente como todo bom político. Assim, "vendeu" o Uzbequistão aos bolcheviques. Na independência, Karimov não o resgatou, preferiu Tamerlão.

Sua casa é hoje um museu. O luxo da propriedade da família Khojaev não é comparável com o da residência de verão de seu nêmesis emir. Entretanto, não faltou fartura e requinte aos seus familiares. A casa foi toda restaurada; especialmente elegantes são as colunas feitas de troncos inteiros, cheias de detalhes esculpidos com esmero. Elas seguram o teto em amplas varandas com vista para o pátio-jardim. Nessas amplas varandas, as camas tradicionais, miniplataformas quadradas onde se pode recostar para tomar chá e comer frutas secas. O pátio está colorido de flores. As paredes brancas da casa traz elementos decorativos cuidadosamente desenhados em azul.

A combinação torna o ambiente leve, lembra até um ambiente praiano. Bom gosto. Que contraste em todos os sentidos com o que se vê no palácio do emir.

Que lindo fim de tarde de verão.

Trem Bukhara-Samarkand, 12/9, 09h07

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Wednesday 22 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XVI): Bukhara

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Este texto faz referência à minha visita anterior a Bukhara, relatada nos capítulos VI e VII de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); clique aqui para relembrar

10/9/2012

A madrassa Mir-i-Arab. À minha frente, fazendo-me sombra.

Ao redor, Bukhara. Bukhara que mudou, ou eu que mudei. Ou essa sensação de estar em um lugar diferente do que eu já conhecia é simplesmente por causa da época em que voltei. Mais provavelmente, uma mistura de tudo isso.

A cidade está tomada por turistas - especialmente franceses, espanhóis, italianos e alemães. Eles desfrutam de uma cidade que agora tem hotéis excelentes. Ao lado do histórico laguinho da praça Labi-Hauz, me senti um pouco testemunha da história desta cidade. Vejo o local onde ficava a pousada Fatima e Ibrahim, onde fiquei em 2003. É quase na frente da Labi-Hauz. Hoje o lugar é o Hotel Fátima, bem maior, parecendo novinho em folha. Ainda respeitando, meio como uma réplica barata, a arquitetura de tijolos gastos desta nobre cidade.

A Labi-Hauz, à beira da qual me diverti em almoços com meus colegas franceses em 2003, agora tem até luzes coloridas submersas em suas águas. Elas criam uma atmosfera moderna à noite, quando há também esguichos que lançam a água com força, fazendo curva no ar, das extremidades para o interior da piscina. O restaurante que conheci está maior, mais mesas, muita gente. O local todo fervilha. Aqui do lado, numa área coberta conectando a Labi-Hauz a outras partes da cidade velha, barraquinhas vendem velharias soviéticas, especiarias, panos, roupas típicas. No século XIX um viajante que esteve por aqui descreveu toda a Labi-Hauz como uma feira livre. Diferente hoje, com os ônibus de turistas, com a casa de chá que virou restaurante, com menos barracas. Mas não tanto.

"Me pareceu um local dos mais atraentes. É quase que uma praça perfeita, tendo no centro um reservatório profundo, 30 metros de comprimento e 24 de largura. Pela margem estão alguns olmos, e em suas sombras a inevitável casinha de chá (...) Nos outros três lados, pães, frutas, doces e carnes quentes e frias estão à venda expostos em barracas sob a sombra de esteiras. As centenas de lojas improvisadas para a ocasião, ao redor das quais multidões de consumidores ávidos zanzam como abelhas, nos brindam com um espetáculo muito característico."
- Arminius Vámbéry, Travels in Central Asia, 1864

Os preços ainda não estão proibitivos na cidade, para minha surpresa. É isso. Em essência, esta é a velha Bukhara do emir que um dia fez dela um país: à tarde, no sol, me perdi nas ruas entre a fortaleza medieval, a Ark, e a Labi-Hauz. Na poeira e no ar quente, procurava me guiar pelo minarete Kalon.

Nesse caminho, nas ruas que eu não reconheci e onde dei voltas e voltas, vi a verdadeira cidade, suas rugas-ruínas que lhe dão tanta dignidade histórica, uma essência, Alá permitindo, imortal. Vi as casas antigas, ocres, com suas fachadas caindo aos pedaços. Até uma mesquita pequena, lá naquela rua, esquecida, abandonada, trincada, e ainda assim orgulhosa, o mesmo orgulho que a mantém de pé há séculos. Em alguns casos, porém, a dignidade história assusta como um câncer. Uma madrassa (seminário islâmico) bem perto da Mir-i-Arab, outro tesouro, continua sem restauro no interior e um pedaço do seu mihrab ruiu. Aqui, um risco claro a esse patrimônio sem preço.

Há o outro lado do descaso. As salinhas onde os estudantes costumavam viver na madrassa estão vazias, escuras, fantasmagóricas. E convidam, como sempre, o explorador, o curioso, o viajante do deserto.

Mas não há nada, nada, nada como a Mir-i-Arab e suas cúpulas azuis, o minarete Kalon à sua frente, e a elegante mesquita Kalon atrás dele - o complexo conhecido como Poi Kalon (assista ao vídeo abaixo).



A Mir-i-Arab, claramente timurida em seu estilo, é herança dos shaibanidas, a dinastia uzbeque que trouxe glória ao khanato de Bukhara (depois, transformado em emirado) entre o século XIV e o século XVI, destronando justamente os timuridas - Samarkand foi conquistada em 1505, Bukhara, em 1506. Mas o complexo tem raízes mais antigas. O minarete do século XII, por exemplo, é karakhanida, ou seja, é parente do mausoléu de Aisha Bibi em Taraz.

O Poi Kalon é um dos mais belos conjuntos arquitetônicos do planeta. Como me ocorreu quando encontrei o mausoléu de Yassawi, a madrassa ordenou que eu me sentasse à sua frente, ao lado da entrada da mesquita. Passei os 40 minutos seguintes, até o anoitecer, inspecionando cada mínimo detalhe de sua fachada. Lembrando e descobrindo suas sutis assimetrias e afirmando-as como perfeitas. Ou melhor, provisoriamente imperfeitas. Em um dos lados da fachada, um trecho de tijolos está sendo reconstruído e foi coberto por uma tela que imita a parte que cobre. Mas nada, nem isso, pode diminuir seu esplendor; o doce misturar do azul das cúpulas, o azul do céu e o dourado do Sol poente.

Algo mais que não havia percebido na minha última visita: a presença de turistas do próprio Uzbequistão. Perambulando em frente à madrassa antes do lusco-fusco, encontrei um grupo de três velhinhos, todos usando o chapéu típico uzbeque. Eles se aproximaram de outro velhinho, um vendedor de suvenires sentado na calçada próxima à Mir-i-Arab. O vendedor perguntou de onde eram: "Andijan" foi a resposta. Seguiram-se carinhosos apertos de mão e saudações. Pareciam conhecidos de longa data, amigos que há muito não se viam. Depois, despediu-se o grupo do vendedor e foi à mesquita Kalon. Sacaram suas câmeras e fizeram fotos, vídeos. De repente, viro-me e vejo um outro grupo, de velhinhas, cobertas com vestidos e véus feitos com a colorida seda de Fergana. Os velhinhos de antes e as velhinhas de agora. São daqui e não são daqui. Estou feliz em vê-los explorando os tesouros de sua própria terra, explorando o mundo, felizes, irradiando seus dentes de ouro, desfilando suas vestimentas tão lindas.

Jantei na Labi-Hauz. Possivelmente, é o programa mais relaxante de toda a Ásia Central. Dois shashliks imensos de carne bovina e uma cerveja, cerca de US$ 15. A cerveja foi uma atração especial, negativamente. Em 2003, lembro-me de ter tomado por aqui a única cerveja que havia, a Baltica, uma marca da Rússia. Não era ruim, mas, também, não tinha nada de especial. Não me lembro de ter sequer visto, em toda aquela minha viagem, outra marca em todo o Uzbequistão. Entretanto, ontem, em Tashkent, passei por três mercados e nenhum deles sequer tinha cerveja para vender. Desta vez, na Labi-Hauz, pedi uma cerveja e me trouxeram uma com o sugestivo nome de "Ouro Tcheco". Duvido que seja tcheca. A "coisa" ficou rapidamente choca logo depois de abrir. Mesmo com o gosto aguado, agradeci. Ajudou a descer pela garganta a gordura do churrasco.


* * *

Cheguei a Bukhara após embarcar em um trem às 8h30 em Tashkent. Fui à principal estação da cidade, um lugar bonito e aparentemente moderno do lado de fora. Mas estou no Uzbequistão, é claro que tem algo em relação à estação que deixa você com a pulga atrás da orelha. Pois bem: se você quer ver esse bonito prédio por dentro, só pode fazê-lo se tiver bilhete para embarcar. Os guardas não deixam entrar ninguém que não seja passageiro - possivelmente para evitar terroristas. Mas, ora bolas, um terrorista pode comprar um bilhete barato para entrar e pronto! Está lá dentro... A segunda idiotice: ao entrar, não se vê nenhum cartaz indicando onde ficam as plataformas para pegar os trens. Você tem que descobrir, e se não falar alguma língua local ou conhecer de vezes passadas a estação, está perdido.

O trem expresso "Sharq" para Bukhara é bem confortável. Poltronas acolchoadas, novas, me lembraram a de bons aviões. Para cada par delas há uma mesa. Até Samarkand, o ar condicionado funcionou, o que foi um grande alívio. Mas, depois, até Bukhara, eu e meus colegas passageiros fomos cozinhando a mais de 30 graus. Pela janela, as paisagens se alternavam - ora o inóspito deserto de Kyzylkum, terra seca e arbustos espinhosos, ora plantações, principalmente de algodão. No caminho inteiro, a expectativa imensa de rever a nobre cidade. E conhecer finalmente, amanhã, locais dela onde nunca estive antes.

Labi-Hauz, 11/9, 12h

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Sunday 19 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XV): Tashkent

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

9/9/2012

Comecei bem cedo - 6h20 estava de pé, arrumando a mochila, o Sol ainda nem tinha se levantado, e a movimentada rua do hotel em Turkistan estava vazia. É o início de um período mais intenso na minha viagem: a partir de agora, passarei menos tempo em cada lugar. Há muito, muito que quero ver. Já sinto falta da lenta contemplação do mausoléu de Yassawi, do faroeste de horas em Sauran, olhando fantasmas de argila e poeira.

Pego a van rumo a Shymkent na companhia de um francês incomum. Um ser franzino, alto, grisalho e com olhos saltados. Aparentava ter uns 45 anos. À primeira vista, me pareceu doente - sua pele branca tinha um aspecto pouco saudável, pálida, meio esverdeada. Também a princípio me pareceu meio assustado com a bagunça natural da negociação de preços para o transporte, como se não estivesse familiarizado sobre como as coisas funcionam por aqui. Descobrimos logo que estávamos hoje a caminho do mesmo lugar - Tashkent, a capital do Uzbequistão. Naturalmente, combinamos forças para cruzar a fronteira, sempre um evento potencialmente problemático por aqui. Nada melhor que ter um aliado, alguém para te ajudar se as coisas apertarem com guardas querendo propinas, por exemplo. Todo esse processo de enfrentar as fronteiras me enche de desconforto, mas hoje me sinto estranhamente confiante. Nesta negociação com o dono da van que nos leva a Shymkent, por exemplo, fui o líder - o motorista tentando nos extorquir ao máximo, vendo a mim e ao francês como cifrões ambulantes, como é natural para eles. Arranquei com teimosia um preço bom, sinto-me orgulhoso do meu russo básico, evoluindo lentamente.

Na estrada, conheço mais meu colega francês, e a impressão inicial muda um pouco. Não lhe perguntei o nome. Extremamente culto, com mestrados e PhD em estudos culturais, anos de livros nos olhos. Frágil como parece, vestido com uma bata indiana e levando uma bolsa com poucas roupas, esteve em muitíssimos países da Ásia, inclusive em pelo menos dois lugares que sonho em conhecer - o Afeganistão (visitou duas vezes) e o Turcomenistão (uma vez, com, naturalmente, um visto de trânsito, a única forma de viajar de forma independente pelo país). Descreveu como o momento mais difícil de todas suas jornadas pela Ásia a travessia da remota divisa turcomano-afegã, no meio do nada, sozinho, longe de qualquer ajuda, tentando entender todas as burocracias necessárias sem falar as línguas dos guardas de fronteira. Conta com empolgação como conseguiu (sortudo) o visto de trânsito de dez dias para o Turcomenistão (o cônsul francês na capital turcomana, Ashgabad, o ajudou). Em geral, os que tentam pegam vistos de três dias, ou, com sorte, de cinco ou sete. Dez, eu nunca havia ouvido falar.

Franzino é um exemplo exótico dos muitos viajantes estrangeiros que cruzam o Turquestão, uma espécie com diversas raças. Há quem se iluda e pense que são todos iguais - jovens movido por um espírito como o de David Livingstone, o famoso explorador britânico do século XIX. Entre esses é fácil incluir alemães ou australianos com mochilas cargueiras, mapas, com os olhos escancarados, buscando o mundo selvagem ou subdesenvolvido que não encontram em suas urbes. Contudo, há viajantes e viajantes. Franzino me sugere o viajante peregrino, sereno, buscando elucidação espiritual. Sem acompanhante, enfrentando a si mesmo, encontrando a si mesmo. Respirando o mundo invisível, indo até os confins do globo em uma tentativa de se aproximar de Deus, o Deus que o inspirou nos livros, ou que o inspirou em algum episódio doloroso que superou em sua vida. Ou que o inspira em um momento difícil, presente, de sua existência. Eu não sei o que sou nesse contexto. Quem sabe um pouco de franzino, quem sabe um pouco de Livingstone.

Franzino fala de histórias fantásticas de extrema falta de conforto (penitência?) no Tajiquistão, para onde me dirijo após rever as terras uzbeques. Mas quando ele começa a lembrar, em seu ritmo calmo e ponderado, dos inúmeros livros que leu sobre a região, entre tomos de viagem e filosofia, me perco no meu sono. Um sono confortável, envolvente, teoricamente impossível nesta estrada horrorosa de buracos e desvios. Com minha cabeça batendo no banco da frente da van, babando, sonho com praias e mulheres. Fui em um instante para muito longe. Litoral norte de São Paulo. Numa manhã de verão e mar calmo.

Foram, me pareceu, apenas segundos de desvario. De repente estou em Shymkent, novamente na rodoviária onde peguei a van para ir a Turkistan.

Encaramos a preocupação de não achar transporte para Tashkent. Nada de ônibus. O alívio veio quando descobrimos que a melhor opção nos aguardava nesta rodoviária mesmo - não teríamos que nos deslocar para outra da cidade, o que atrasaria tudo. A melhor opção é pegar uma van que nos deixará na fronteira, atravessá-la a pé e, do outro lado, pegar transporte para Tashkent. Como a divisa é do lado da capital uzbeque, não imaginei que teria muitos problemas em encontrar transporte para o centro depois de enfrentar os guardas fronteiriços.

Com o local de onde partiria nossa van localizado, e confirmado o preço do transporte, atacamos um café da manhã na rodoviária. Eu fico com uma grande caneca de kvas (uma bebida fermentada típica dos países eslavos) e três sansas incomuns. As sansas centro-asiáticas são parecidas com as samosas indianas - pequenos pastéis triangulares com recheios diversos. Mas enquanto a samosa indiana é frita, por aqui elas são em geral folhadas e assadas. Em geral. Estas daqui são diferentes. Se parecem a esfihas fechadas, bem gordinhas. Gostosas, mesmo sendo a carne do recheio cheia de gordura e nervos. Mesmo tendo a qualidade universal de comida de rodoviária.

Aproximadamente duas horas depois, já na fronteira, relembro com grande desgosto um problema fundamental de visitar o Uzbequistão: a obrigação de preencher, na entrada, um formulário descrevendo todo o dinheiro que se carrega, com detalhes, separando os montantes por tipo de moeda. Estou levando uma boa dinheirama, em dólares e libras, além de um pouco de tenges cazaques e soms quirguizes, e me incomoda revelar para guardas potencialmente corruptos que eu sou um alvo apetitoso. Uso duas estratégias. A primeira: arredondo o total para menos, bem menos, imaginando que se os senhores flagrarem que estou mentindo, digo que errei no cálculo. A segunda: descrevo apenas o que levo em libras esterlinas, que é de fato a maior parte do que levo, e ignoro o que tenho em dólares, que é bem menos. Isso porque imagino que, enquanto que a maioria das pessoas por aqui sabe exatamente o valor do dólar, do euro e do rublo russo, poucos sabem quanto vale a libra.

Uma hora de fila. Entrego o formulário e vivo o momento inevitável de tensão, mas atravesso a fronteira sem problemas após o carimbo entediado da burocrata de uniforme.

De fato, é surpreendentemente curta a distância entre o posto de fronteira de Chernyaevka e o centro de Tashkent. Logo ao pisar no Uzbequistão, encontramos um taxista e, 20 minutos depois, eu já estava entrando no metrô da ensolarada capital. No dia em que o Cazaquistão invadir o Uzbequistão, Tashkent será um alvo bem mais fácil para os cazaques do que a capital cazaque Astana, milhares de quilômetros ao norte, será para os uzbeques.


* * *

Rever Tashkent! Após nove anos! Ao entrar na cidade, não a reconheci. Mas logo o taxista nos deixou no mercado Chorzu, que eu visitei logo na minha primeira viagem em 2001 e revi em 2003, e logo uma sensação de déjà vu tomou conta de mim. De cara, mesmo reconhecendo o prédio principal do mercado - uma grande meia-laranja de concreto - percebi como o Chorsu havia mudado. Áreas que em 2003 estavam em construção estão agora terminadas, mais urbanizadas, menos caóticas. Me despeço rapidamente de franzino, que, por boas horas, foi um irmão para mim, me passando calma e otimismo.

O metrô, um maravilhoso legado da era soviética. O frescor do mármore subterrâneo e os trens da era comunista me receberam como velhos amigos. Este mundo sob a terra é todo um alívio frente ao calor intenso lá fora. Fui direto ao sul da cidade, onde eu já havia reservado um excelente hotel por uma noite. Fico em um bairro com grandes casas atrás de grandes portões que escondem e enganam, dando a impressão de que muitos desses châteaus são casas simples. Não, nada disso. São formidáveis residências, com pátios deliciosos, com árvores, sombra, deleites. São as casas tradicionais. E bem perto, descendo uma rua ou avenida, o que talvez hoje também pudesse ser chamado de "tradicional", a velha arquitetura soviética: grandes blocos residenciais, entediantes, feios. A feiura, amenizada com detalhes exóticos na fachada, como maquiagens dando um gosto centro-asiático a esses edifícios nascidos sem alma. Fachadas interessantes, entretanto, são apenas fachadas. O metrô, os prédios: os soviéticos ainda estão presentes e ficarão presentes por muito tempo.

O alfabeto. Nesta volta, tenho impressões chocantes que não tive antes. Em primeiro lugar, me sinto estranho em ver esse alfabeto. O governo uzbeque adotou o alfabeto latino, diferentemente do Cazaquistão e do Quirguistão. Embora o alfabeto cirílico dos tempos soviéticos ainda esteja presente em Tashkent, está ficando cada vez mais raro - certamente mais raro do que nas minhas visitas anteriores. Com o alfabeto latino, fica bastante evidente como o uzbeque se parece ao turco.

O segundo choque é em relação à propaganda estatal. Como no Cazaquistão, ela está por toda a parte - em outdoors, em cartazes em muros, em painéis gigantes em prédios. Mas, se no Cazaquistão há uma grande ênfase na figura de Nazarbayev, por aqui quase não se vê fotos do ditador local, Islam Karimov. Na fronteira, do lado uzbeque, logo vi uma frase atribuída a ele em um grande letreiro. No sul da cidade, em um parque, encontrei uma pequena foto dele juntamente com cidadãos do país. E foi só. O resto da quase unipresente propaganda estatal faz alusão ao recente Dia da Independência, primeiro de setembro, e aos 21 anos de vida da República do Uzbequistão. Há muitos temas patrióticos nesses cartazes de propaganda: a bandeira, prédios históricos, jovens e velhinhas com trajes típicos. O mais frequente, porém, é a figura de Tamerlão, adotado por Karimov como herói nacional e símbolo do orgulho da pátria logo após a independência. Assim, se tem a impressão de que o culto de personalidade de Karimov aqui é menos intenso do que no Cazaquistão.

Difícil dizer se a imagem de Karimov não é tão popular aqui como é a de Nazarbayev no vizinho do norte, se é por isso que ele não aparece mais nas propagandas. Analistas vieram com algumas interessantes teorias para explicar essa menor exposição. Em uma delas, Karimov, como pai fundador do recém-nascido país em 1991, estabeleceu uma estratégia para desenvolvimento da identidade nacional que passa por trazer ao presente um momento glorioso do passado uzbeque e usá-lo como inspiração, referência e matéria-prima para a união do povo de seu país. O passado escolhido foi o de Tamerlão, que nasceu no atual território uzbeque. Por outro lado, no Cazaquistão, a construção da identidade nacional seguiu o caminho do futuro - a inspiração está nos monumentos futuristas de Astana, nos planos mirabolantes de construção em Turkistan, no presidente prometendo que o Cazaquistão brilhará neste século e no início da construção desse sonho na forma de urbanismo. Visto que boa parte desse futuro ainda não existe, Nazarbayev, como um profeta ou arauto, ganha o destaque. O construtor do futuro, ao redor do qual todos os cazaques se unem.

Uma outra teoria acadêmica, igualmente interessante, foca as atenções no uso da imagem de Tamerlão não para exaltar um passado mítico e usá-lo como argamassa da nação, mas para ser a viga sólida que sustenta o regime atual. De acordo com essa teoria, Karimov tem no Uzbequistão também um culto de personalidade, quiçá ainda mais pronunciado do que em seus vizinhos. Mas, aqui, Tamerlão é a personalidade celebrada como símbolo do líder ideal, no que se refere a seu talento administrativo, sua habilidade de construir um império e ser justo, sábio, mas ao mesmo tempo, duro, implacável. Para Karimov, Tamerlão seria o modelo de estadista, a personificação de tudo o que ele acredita que seja necessário a um líder uzbeque. Assim, o conquistador ganha proeminência como uma máscara; as estátuas, as imagens de Tamerlão, todas são, dissimuladamente, de Karimov.

E, assim, o país vai se distanciando dos tempos soviéticos. Abraçando um passado muito mais distante para construir uma nova era.

O que foi este psicótico, tardio episódio de domínio soviético senão um esforço sustentado de por um fim à história de uma vez e expulsar esses fantasmas de todos os tempos? Agora chegou a hora do nacionalismo de Tamerlão, uma ideologia firmemente assentada no desenvolvimento de formas próprias de bizarrice antiquada, com seu gigante cavalo de ferro - estátuas erguidas em cada cidade e outdoors anunciando o decreto extático em grandes letras romanas: "O FUTURO DO UZBEQUISTÃO É COM CERTEZA GRANDE!"
- Larry Frolick, Grand Centaur Station


* * *

De noite, desfruto ao máximo do meu hotel três estrelas. De vez em quando, nessas longas viagens, é bom investir em um lugar mais confortável para recuperar as energias. Que diferença do hotel Turist de Shymkent! Me jogo na cama king size, no edredom branquíssimo e fofo, para delirar com a maravilhosa TV uzbeque, que me pareceu tão bizarra como nas vezes anteriores. Foi nela que, naquela distante noite de 11 de setembro de 2001, testemunhei o incidente que mudaria o destino da humanidade em Nova York. Em horário nobre, no jantar, como acompanhamento para a sopa, enquanto o Brasil e os EUA acordavam para o espanto.

No canal O'zbekiston, pontualmente às 21h, começa o noticiário. O cenário é high tech, nada de diferente dos noticiários das grandes TVs brasileiras. O conteúdo, porém, deixa milhas atrás a Globo e a Bandeirantes. Começa com uma "introdução" de uns dois minutos do âncora. Ele fala, sem o apoio de nenhuma imagem, a respeito de uma importantíssima visita de Karimov a Astana. Depois, segue-se a reportagem: dez minutos de minuciosa cobertura.

Primeiro, a chegada de Karimov, com pompa e circunstância, abraçando o "irmão" Nazarbayev. A execução dos hinos nacionais, a conversa cordial filmada sem áudio, os shots protocolares antes da reunião de trabalho, os discursos com todos os pormenores, de um, de outro. Os dois andando pela futurista Astana, uma "coletiva" (com longas, longas, longas declarações de Karimov). A despedida no aeroporto. Disse que tudo isso durou dez minutos? Talvez mais, uma hora. Chapa branca como a neve virgem nas estepes. Para mim, divertidíssimo. A linguagem televisiva é anacrônica demais. Tão diferente de qualquer TV no Brasil (mesmo os canais estatais do governo) ou da Europa Ocidental.

O relato sobre a visita se seguiu a outra longa reportagem ressaltando o excelente desempenho da indústria uzbeque em um país em que a economia enfrenta seríssimas dificuldades, onde um dólar se traduz em uma pilha de notas de mais de dez centímetros, testando a resistência de qualquer carteira. Como há nove anos, a economia paralela (o câmbio negro nas ruas, por exemplo) parece mais robusta do que a economia real. Alguém no governo deve lucrar com isso.

O resto do noticiário, não vi. Embarquei em um sono profundo ao final da reportagem das indústrias. Sonhos com praias e mulheres como na jornada Turkista-Shymkent, não mais. Desta vez, fui flutuando para o azul das cúpulas de Samarkand e Bukhara.

Trem Tashkent-Bukhara, 10/9, 9h

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Wednesday 15 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XIV): Turkistan

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8/9/2012

Os pés levantam a poeira. De novo secura, de novo um calor sufocante às 10h da manhã. Uma luz tão intensa que mal consigo manter os olhos abertos. Ao meu redor, as arquibancadas de um coliseu imaginário. Um quadrilátero de muralhas erodidas pelo tempo, os restos de mais uma cidade perdida. Os restos da história me seguem. Entre os montes de barro seco e farelento, chuto aqui e ali pedaços de porcelana. Aqui e ali, pequenos pedaços de azul e branco, ou verde, ou verde e preto. Um lagarto passa correndo, quase atropela meu pé.

Esta é Sauran. Como Otyrar, outro fantasma da rota da seda. Suas origens estão imersas em mistério, um mistério que ecoa sua atual existência, uma interrogação não muito longe de Turkistan. Certamente era um ponto importante de parada para caravanas na via ancestral entre a China e a Europa antes mesmo do terror de Genghis Khan, marcando um merecido descanso entre o deserto e o Syr Darya. Todavia, diferentemente de Otyrar, Sauran se manteve de pé durante a carnificina mongol e permaneceu tão imponente que acabou sendo escolhida por um líder da Horda Branca - um dos impérios que surgiram da desintegração das conquistas de Genghis - como sua capital no século XIV. Forte e orgulhosa continuou, com minaretes que se viam à distância, durante o período de dominação dos cazaques, a partir do século XV. A queda, a demolição que se vê hoje, veio apenas depois, no século XVIII, com a invasão dos jungars, que também vitimaram definitivamente a então renascida Otyrar. No caso das duas cidades, a invasão dos bárbaros talvez tenha apenas acelerado um processo inexorável, com a mudança do curso do Syr Darya (por aqui tão evidente quanto em Turkistan). Então já condenada pela distância da água, sufocada pelas areias do deserto de Kyzylkum, Sauran nunca mais voltou. Seus derradeiros habitantes, uns teimosos, saíram na aurora do século XIX.

Encontrei as ruínas a cerca de 40 minutos de carro de Turkistan, à beira da estrada e perto da ferrovia entre Turkistan e as distantes Kyzylorda, Aralsk e o resto do oeste. Pensar que esses restos dos muros da cidade que vejo ao meu redor estão aqui há tanto tempo genuinamente me impressiona. Como isso tudo ainda não ruiu, como isso tudo ainda não virou uma grande planície, alimento para as nuvens de poeira? Talvez o próprio abandono do deserto, o cenário inóspito, o calor horroroso, tudo isso tenha ajudado a preservar Sauran, afastando os curiosos.

Não há ninguém por perto. Sequer uma alma viva. Basta entrar, não há que pagar nada.

O som é o do vento soprando, tão fraco que por vezes o silêncio absoluto toma tudo.

No chão, além do barro seco e dos lagartos, matos baixos, daquele tipo que nada no mundo é capaz de arrancar. Na arena entre os restos das muralhas - uma área de uns dois ou três campos de futebol - apenas uma pequena área parece ter sido escavada, como em Otyrar-Tobe. Lá afloraram e foram renascidas câmaras com paredes de tijolos, um caminho com chão de pedras planas, uma rua. Racionalmente, imagino que os soviéticos tenham explorado cada centímetro deste sítio. Mas novamente prefiro me iludir. Estará aqui ainda escondido um grande tesouro dos guerreiros da Horda Branca?

Passo nada menos que duas horas andando por Sauran. Virando pedras - mais e mais pedaços de porcelana colorida. Traçando com lentidão, com os olhos, a topografia do terreno e o desenho das fortificações há tanto tempo desaparecidas. Sem a presença do rio por perto, Sauran parece ser um local extremamente vulnerável a ataques de todos os lados. Imagino os exércitos dos jungars chegando, a toda velocidade, levantando uma nuvem com seus cavalos. Os guerreiros, sedentos de tesouros.

Não muito longe, uns três quilômetros daqui, vejo a ferrovia que vai para o oeste, e um trem passa. Não o ouço, só o vejo correndo, a toda velocidade, para conquistar destinos que nem imagino quais são.

Penso no Brasil. Penso em minha imensa São Paulo. Como é difícil ficar sozinho em um lugar público em São Paulo. Como é difícil se encontrar em São Paulo. Como é difícil ter tempo em São Paulo. Tempo. E espaço.

Ando até um ponto um pouco mais alto da muralha semidestruída. Há uma passagem onde deveria ter ficado um dia uma porta ou portão. Atravesso. Do outro lado, há um pequeno grupo de cavalos. Um pouco distantes, a uns cem metros, quem sabe. Lá embaixo. Estou em uma parte alta ainda. Jogo minha mochila para o lado. Sento no barro seco, entre um arbusto e outro. Olho os sete cavalos. Completamente alheios a mim. Testemunhas de uma era bem diferente.

O mistério das ruínas da Ásia Central quiçá aqui surja com o máximo de sua força. Muito mais do que em Otyrar. Porque estas muralhas de Sauran tornam tudo muito vivo - cavalos, súditos, guerreiros, artesãos; um cenário de velho oeste medieval centro-asiático à sombra de torres de argila. Uma versão cazaque das torres do Monument Valley nos filmes de John Ford.

O mistério de uma capital que sobreviveu ao teste do tempo e agora jaz etérea, quase irreal, no meio do nada, deixando a imaginação flutuar.


* * *

O povo aqui adora uma festa e, se há uma festa favorita, é o casamento. Já vi mais noivas desde que cheguei à Ásia Central nesta viagem do que em todo o resto da minha vida. Nos fins de semana, noivas e noivos, acompanhados por sua entourage de fotógrafo, cinegrafista e amigos, vão aos parques e monumentos mais bonitos vestindo as roupas formais da boda - as mesmas dos casamentos no Ocidente, smoking ou terno para o homem, vestido branco para a mulher. Aí, eles tiram fotos. Muitas fotos. No início achei graça e compartilhei a felicidade dos noivos cada vez que encontrava um casal diferente. Mas são tantos que agora eles já estão me incomodando - parece que toda vez que quero tirar uma foto de algo interessante, tem um casal de pombinhos que entra na frente da paisagem.

Depois, é claro, eles se casam e tem o festão. Na frente do meu hotel em Turkistan contei dois salões de festa, ou toikhanas, como são chamados por aqui. As festas de casamento são as mais chamativas, mas as casas recebem eventos de todo tipo. Às vezes até mais de um ao mesmo tempo. Ontem foi difícil pegar no sono: uma pequena multidão comemorava a circuncisão de dois meninos em uma das toikhanas (veja no vídeo abaixo).

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A festa transbordava para a frente do salão, tomando parte da rua. Em meio à alegria, uma música incomum, uma melodia que não dá para assoviar. Dois homens sopravam com toda a força dos pulmões dois clarins - seria melhor descrever como vuvuzelas - gigantes. Feitas de metal, as peças soltavam um som horroroso, assustador. Ao lado, no meio da multidão, outro músico tocava uma espécie de oboé, cujo som namorava com o melódico, mas nunca seguindo uma lógica, nada previsível. Parecia que o sujeito estava executando o que lhe vinha à cabeça, não uma música. Como que em transe jazzístico.

No fundo, uma gravação, saindo dos alto-falantes, trazia a base rítmica, com tambores, e era isso, desconfio, que fazia as pessoas dançarem. Todos estavam sorrindo, todos estavam adorando a barulheira. Todos estavam dançando - pais abraçando suas crianças, mulheres sacolejando, algumas delas com vestidos longos e chiques. Novamente, se vestiam exatamente como as pessoas no Brasil se vestem nessas ocasiões, a maioria, bem formais, com alguns destoando, mas informais. Mas a roupa é toda ocidental, jeans, camisas, nada diferente do que conhecemos. Só a música é bem diferente - e estranhamente contagiante.

Mas nem todos comparecem assim a essas ocasiões. Depende da família, do grau de religiosidade e tradicionalismo delas, da riqueza daqueles que estão festejando, da idade dos presentes. Existem festas e festas.

De manhã, passo em frente a outro salão. Um casamento tinha acabado de acontecer. Dessa vez a cultura centro-asiática (ou, na verdade, a multicultura centro-asiática) estava muito bem representada nas vestimentas. Entre os convidados que conversavam alegremente ao redor dos noivos, vi uns velhinhos com vistosos chapéus ak kalpaks quirguizes abraçando fraternalmente outros com a tubeteika cônica que encontrei adornando cabeças no Cazaquistão e outros com o chapéu dope uzbeque. As mulheres todas com seus vestidos longos e coloridíssimos, de seda e algodão com detalhes brilhantes, e seus véus cobrindo o cabelo. Dentes de ouro por toda a parte, sorrisos maravilhosos. O Sol forte ressaltando as cores e o reluzir das roupas, dos dentes, dos olhos.

Foi uma boa despedida, a música estranha de ontem, o colorido brilhante de hoje. Adeus, Turkistan. Despeço-me do Cazaquistão jantando em um restaurante qualquer na cidade do nobre mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi. Novamente acompanhado de uma caneca de Shimkentskoe. Tentando decifrar um videoclipe em russo que vejo em uma TV de plasma, um pop que me parece uma cópia sem vergonha de alguma música que já ouvi bilhões de vezes em inglês. O restaurante, coincidência, parece decorado para um casamento - até as cadeiras estão revestidas com panos brancos. Um brinde às festas, à alegria das festas, às pessoas se abraçando, rindo e bebendo para celebrar a vida.

E que eu não mais seja atrapalhado por casais querendo tirar fotos nupciais nos lugares turísticos. Saúde!

Tashkent, 9/9, 22h

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Sunday 12 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XIII): Turkistan



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7/9/2012

Como é bom ter tempo.

Seis e meia da manhã. Os primeiros raios de Sol incidem sobre a fachada do mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi, e os pássaros festejam com sua algazarra. Estão dentro dos buracos na parede ou empoleirados nos troncos ainda enfiados nos tijolos desde o tempo que eram usados na construção do edifício, nos séculos XIV e XV. Mais e mais chegam voando. Outros, muitos, alçam voo para buscar o café da manhã.

É muito alto o barulho que as aves fazem. Parece o ruído de um estádio de futebol cheio de torcedores, mas, neste caso, torcedores de penas. É uma mistura de pios, um caos sonoro. Uma delícia de escutar.

A glória de um amanhecer dourado. Com tempo.

Umas poucas pessoas testemunham a aurora como eu. Elas passam de lá para cá, de cá para lá. Algumas entram no prédio de Yassawi. Faz um friozinho sem vento e, pela primeira vez nesta viagem, coloco um casaco.

Que luz linda. Manifestação de Deus. A fachada despida de Tamerlão é ainda mais impressionante iluminada pela manhã. Falta algo? Faltam os azulejos, mas o tempo fez com que esta simplicidade também fizesse todo sentido e, talvez, tornasse toda a obra ainda mais inesquecível, ainda mais única. Uma obra oculta, que só pode ser vista de verdade indo além dos olhos.

Após a morte de Yassawi em 1166, um pequeno mausoléu foi construído para ele por aqui. A cidade não sofreu a dor e a destruição que outras sofreram quando vieram os mongóis, no século XIII, e o local continuou atraindo fiéis durante todo o período até a chegada de Tamerlão, que determinou a construção deste mausoléu atual. Os trabalhos começaram em 1389. Tamerlão costumava trazer para fazer grandes obras em suas cidades favoritas artesãos dos locais que conquistava, e assim vieram grandes talentos da Pérsia para criar os mosaicos e azulejos da nova edificação. A morte de Tamerlão em 1405 paralisou os trabalhos, mas posteriormente partes do prédio ainda foram feitas, muitos anos depois da estrutura original. Isso explica a disparidade visível no gigantesco pórtico. Muitos tijolos usados na fachada são de um tamanho completamente diferente dos demais, por exemplo. As torres laterais da fachada lembram torres de castelos da Inglaterra, não me parecem torres timuridas. Entretanto, mesmo com as diferenças, não parece que nada está muito deslocado do conjunto. É um todo compacto, sublime.

O que ainda não sei é como é ele por dentro. E me preparo agora para adentrá-lo. Admito que estou nervoso, antecipando o mistério de paredes semiconstruídas, câmaras escuras, cheiro de pedra e deserto.

O local foi tombado pela Unesco em 2003, considerado patrimônio da humanidade. No momento, ele vem sendo restaurado. Ao redor de sua cúpula azul principal, os andaimes de metal indicam que esse trabalho está a todo vapor. Por isso, ao entrar, esperava algum restauro ocorrendo no interior.

Após uma pequena câmara de chegada (onde as mulheres são obrigadas a colocar um véu), vem a escura câmara de uns 18 metros de altura logo abaixo da grande cúpula. Ela está em parte tomada pelas barras metálicas que ajudam os restauradores a alcançar as alturas. Elas vão do chão ao teto. Por entre as barras, no chão, iluminado, há um tesouro, um esplendoroso caldeirão de bronze de duas toneladas, todo decorado com inscrições em árabe e altos-relevos, presente do próprio Tamerlão. O cadeirão impressiona, como tudo que é timurida, pelo tamanho, pelo capricho, pela leveza.

Mas, tirando o caldeirão, o resto da grande sala me entristeceu. Dá para ver nas partes já restauradas que todas as paredes foram pintadas de branco. Detalhes do teto perto da cúpula, entradas e saliências intrincadas, que um dia imagino que tenham tido cores ou ao menos o tom familiar dos tijolos, estão brancos. Duvido muito que essa tenha tido a aparência original do salão - ou o que Tamerlão esperava ver, já que certamente partes do interior não devem ter sido concluídas com ele ainda vivo.

Outras salas do complexo, mais à frente - e há mais de 30 delas, uma com uma pequena mesquita, outra com um poço - também estão com as paredes brancas. Não inteiras - a parte mais abaixo é de tijolos. Porém, mais para cima nas mesmas paredes, a cerca de um metro do chão, os restauradores deixaram uma nova superfície com o que parece ser concreto pintado de branco. Procuro o espírito medieval do mausoléu e não encontro nessas paredes. Este lugar por dentro parece um museu, parece um hospital, parece outra coisa, mas não um mausoléu timurida. Isso se repete até na mais sagrada sala do complexo - onde está a tumba de Khoja Ahmed Yassawi. A tumba, em si, é belíssima - coberta com um pano de veludo verde com inscrições árabes em amarelo -, colocada por sobre um alto pedestal de mármore verde. Mas as paredes brancas destoam.

São os detalhes não brancos deste universo que me hipnotizam. O caldeirão verde, a tumba, todo o exterior com suas cúpulas azuis e a porta de madeira trabalhada que leva à tumba. Uma porta esculpida centímetro por centímetro, inscrições, desenhos. Uma devoção que comove e que confirma a glória real do mausoléu.


* * *

À tarde, honrando meu espírito atual de relaxar e viajar, e não apenas conhecer o maior número de lugares com o tempo que tenho, vou preguiçosamente ao museu regional, que fica em um bonito prédio moderno ao lado do mausoléu. O museu conta a história desta região do Cazaquistão desde a pré-história até os dias atuais, mostrando relíquias arqueológicas, impressões artísticas e recriações de cenários de momentos-chave da história, além de fotos. Antropologia, etnografia. Vi como seria uma casa cazaque em séculos passados, o salão do trono de um monarca local, um khan. Seria um museu bem mais interessante se não fosse um detalhe: tudo, absolutamente tudo é escrito em cazaque. Apenas em cazaque.

Isso me surpreendeu. Me parece lógico que principalmente turistas visitem este museu ao lado de um ponto tão turístico, e turistas muitas vezes não conhecem a língua local. Mas sequer em russo há informações à vista. Por outro lado, esse fato combina com o que se vê entre a população local. Eu diria com segurança que 90% das pessoas que encontrei em Turkistan não sabem mais que o básico de russo, como eu, e que talvez apenas 5% saibam muito bem a língua-franca da antiga URSS. Eu esperava, contudo, ver mais jovens falando inglês, para se integrar com o mundo, ter mais acesso à cultura ocidental que os fascina. Mas também não vi muitos sinais disso em Turkistan. Encontrei com apenas um jovem falando inglês na cidade - um funcionário do museu que, me vendo perdido com as placas em cazaque, veio me saudar.

Com simpatia, ele se dispôs, sem pedir dinheiro, a me explicar todo o conteúdo do museu na língua de Shakespeare. Pobre rapaz. Deve ficar exausto de falar inglês quando há excursões de turistas estrangeiros. Faço a ele a pergunta inevitável - por que diabos não há nada escrito em inglês ou russo no museu? Resposta simples: "Nosso diretor não gosta da ideia". Ficam sem respostas todas as perguntas que fiz a seguir, todas lógicas: Então o diretor acha que, porque aqui é o Cazaquistão, todos devem falar apenas cazaque? Ele acha que não vale a pena o investimento de colocar informações em outras línguas? Ele acha que este museu é voltado apenas para a população local? Todas explicações do jovem funcionário são vagas, fugindo do assunto. Não insisti, senti que estava colocando-o em uma situação desconfortável. Talvez o motivo seja muito mais banal, talvez, simplesmente não há dinheiro para isso. Mas o museu, tão moderno e reluzente, sugere que dinheiro é o que não falta. E o museu que visitei em Shymkent, mais velho e menos cuidado, tem pelo menos algumas informações básicas em inglês. Difícil entender.

O nível de inglês do funcionário não é excelente, mas bastante satisfatório. E, com sua ajuda, posso aproveitar bem a visita. O que me chama mais a atenção é o que está em exibição no terceiro e último andar. É o andar dedicado ao presente e futuro de Turkistan. Segundo os planos mirabolantes do presidente Nursultan Nazarbayev, um grande projeto de construção vai ser iniciado na cidade. Grande, mas melhor chamá-lo, para ser mais preciso, de faraônico. Bairros inteiros serão remodelados, prédios moderníssimos com cúpulas azuis serão erguidos, jardins e fontes serão criados. Uma tremenda transformação para uma cidade hoje de ruas mal asfaltadas, casas antigas e em muitos casos sem manutenção, meio esquecidas, envelhecidas, tomadas pela poeira e pelo Sol. O próprio guia do museu, explicando o projeto, repetiu três vezes que a construção começaria em 2013. Como se tentando, ele mesmo, se convencer de que aquilo tudo pode ser realidade no futuro.

No fim da tarde, contemplo novamente o mausoléu de Yassawi. À distância, novamente, o Sol dourado. Fico nostálgico. Tomara que tudo aqui não mude muito. Que, ao redor do mausoléu, exista para sempre um vasto terreno com misteriosas elevações de terra com ruínas e tesouro nunca descobertos. Mesmo se de fato não existirem, eles existem enquanto o mistério for mantido. Se vier uma motoniveladora e forem feitos cinco prédios de dez andares, será como São Paulo: a alma desta terra vai se perder.

Vai só ficar concreto, possivelmente pintado de branco.

Turkistan, 8/9, 16h58

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