Sunday 19 February 2023

Novas Fronteiras (V) - Termez, Uzbequistão



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7/8/2018 (Continuação)

Após a manhã intensa, com a visita ao conjunto arquitetônico Sultan Saodat, o banquete inesperado no mausoléu e khanaka Kokildor Ota e a misteriosa ruína Kyrk Kyz, voltei ao hotel. Era por volta do meio-dia e havia uma forte névoa no centro de Termez. Era uma cerração que me lembrou a das montanhas da Serra do Mar entre a cidade de São Paulo e o litoral; mas, neste caso, quente, seca, dolorosa de se respirar. Na avenida Al-Termizi, ela cobria a torre do relógio que é um reconhecido ponto de referência na cidade. Uma mistura de areia, vapor, poluição, fantasmas. Abafadíssimo. Tomei um banho, liguei o ar condicionado no máximo e me joguei na cama.

Às 16h, quando acordei, a névoa tinha se dissipado. Voltei à região vizinha ao Fayoz-Tepe para visitar um famoso mausoléu e identificar o local correto de onde parte o transporte rodoviário rumo a Samarkand, para onde eu seguiria no dia seguinte. Não me preocupei muito com o adiantado da hora. Apesar de serem já quatro da tarde, o sol tardaria em se pôr, apenas por volta das 19h, o que certamente me daria tempo para fazer o que planejava. O táxi seguiu por uma longa avenida até que ela virou uma rodovia (aparentemente, a principal rumo ao norte). Nesse ponto, o motorista não quis seguir. Disse que ficaria muito complicado para ele fazer o retorno. Explicou que o mausoléu não ficava longe, um quilômetro adiante. Desci e comecei a caminhar.

À beira da rodovia, do lado direito, ficava a periferia de Termez — casas simples agrupadas em ruas limpas, mas sem nenhum charme. Aquele era um bairro na certa urbanizado pelos soviéticos, ocupado por pequenos produtores rurais e trabalhadores com empregos no centro de Termez. Ruas desertas, nenhuma criança jogando bola. Tudo vazio. Do meu lado esquerdo, os carros, caminhões e ônibus passavam a milhão. O vento e a trepidação me jogavam para o lado. O barulho repentino dos motores se aproximando e se distanciando me irritava. Em dado momento, encontrei uma rua que saía diretamente da estrada e entrava no bairro. Ao fundo, no fim dessa rua, vi uma plantação. E, no meio da plantação, o que parecia ser uma grande colmeia, gigante, de pé. Era uma estupa budista de séculos atrás.

Foi uma surpresa. Durante a breve visita ao museu ao lado de Fayoz-Tepe, em um momento em que meu guia ficou um pouco calado, em um cartaz li a respeito de uma outra estupa que ficava na região, igualmente antiga como a de Fayoz-Tepe, igualmente um milagre de sobrevivência aos rigores do tempo. Havia fotos no museu, e não foi difícil reconhecer o que estava vendo agora, no fim daquela rua. Não esperava encontrar a estupa, não era meu objetivo. Mas, agora, para mim não havia outra coisa a fazer. O magnetismo era forte demais. A construção ancestral, calculei, ficava a mais ou menos um quilômetro de onde eu me encontrada. Arrogante, julguei que meu cálculo de distância era à prova de erros. Logo, saí da estrada. Segui firmemente rumo à estupa, em marcha vigorosa, sem pestanejar, já calculando quanto tempo teria depois para ver o mausoléu que queria visitar em seguida. Ainda havia muito tempo. O sol estava forte, bem acima do horizonte. Que alívio me afastar dos caminhões irritantes na rodovia.

Estranhei não haver placas indicando o caminho da estupa para os turistas. Mas lá estava ela, acenando. Venha, venha.

A rua logo terminou na plantação, que era de algodão, o principal produto agrícola do Uzbequistão. Não havia nenhuma trilha a seguir. A estupa estava então a uns 100 metros de mim, com alguns detalhes de sua superfície já tentadoramente visíveis. Para alcançá-la, não parecia haver nenhuma outra escolha a não ser me embrenhar na plantação. Pensei em desistir. Claro que, em seguida, a imprudência se impôs de forma irresistível. Venha, venha, dizia o monte de barro.

A terra da plantação, pelo caminho que segui entre uma fileira de plantas e outra, estava encharcada. Me afundei até a canela várias vezes na lama. Os pés de algodão estavam altos, seus ramos me impediam de ver bem onde estava colocando os pés. Foi um inferno levantar e abaixar as pernas naquele mar pegajoso e sujo, arruinando minha calça, minhas meias, minhas botas, com medo de perder o equilíbrio e acabar mergulhando de cabeça na terra. Foram-se dez minutos só na plantação. Já estava a meros 50 metros da estupa. Pensei: agora que comecei, nada me fará voltar atrás.

A plantação logo acabou; entre eu e a colmeia gigante, encontrei um profundo canal de irrigação, cheio de água, com uns dois metros de largura. Impossível pulá-lo. Impossível andar nele sem me molhar completamente.

Por onde passar? Vi do outro lado do canal um lavrador com uma enxada. O chamei para pedir uma sugestão. Ele coçou a cabeça... e me pediu para segui-lo até um ponto mais estreito. Enfiou a enxada no fundo do canal, nesse ponto onde a água não estava muito profunda, e usou o cabo como apoio para pular para o meu lado. Emprestou a enxada para mim e sugeriu que eu fizesse o mesmo. Parecia simples! Lá fui eu para o meu salto com vara improvisado. Evidentemente, a conclusão foi bastante infeliz. A água chegou até quase minhas coxas. Antes eu estava com as pernas cheias de lama. Agora, elas estavam encharcadas (e ainda com lama). No entanto... ei-la! A estupa. Imponente, à minha frente.

Chama-se estupa de Zurmala. Novamente, como o sítio de Fayoz-Tepe, trata-se de uma relíquia dos tempos de domínio kushano, provavelmente do século III ou IV, feita de tijolos de barro. Claramente a estupa foi um dia uma construção imponente, mais até que a estupa de Fayoz-Tepe; o que permanece de pé, como um monte desfigurado, tem 13,5 metros de altura. Originalmente, teria sido erguida em uma plataforma que agora jaz sob a terra. Há quem diga que é a edificação mais antiga ainda de pé no Uzbequistão — algo difícil de certificar, especialmente comparando-se com Kara-Tepe ou Fayoz-Tepe. Mas, enquanto esses outros sítios foram recuperados e preservados, a estupa de Zurmala parece destinada a desaparecer, tal seu estado avançado de desgaste a céu aberto. Além disso, seu isolamento indica que não há muito interesse em mudar isso. Ao redor da construção, encontrei uma calçada de concreto, um caminho quadrado perimetral para se caminhar, emoldurando todo o monumento. Em um ponto da calçada, havia uma placa, indicando que a construção do caminho perimetral e a preservação da estupa (o que quer que signifique preservação neste caso) haviam sido investimentos do Japão. Louvável esforço, mas um tanto quanto surreal: a calçada permitia ver com conforto a estupa, mas lamentavelmente ninguém parece ter pensado em como chegar a ela. Todo o terreno ao redor é de plantações. Confirmei que, para chegar à calçada, só havia mesmo um jeito, apenas atravessando os campos de algodão, o que, eu já havia descoberto, é bastante desconfortável.

A estupa apresentava uma superfície externa nua, puro barro seco. A visão que eu havia tido à distância, indicando possíveis inscrições, foi pura ilusão de ótica. O tempo foi muito inclemente com a estrutura, como havia sido com a sua irmã em Fayoz-Tepe. Fiz uma verificação minuciosa. Fui circundando o monumento, caminhando pela calçada, olhando a superfície dela de cada lado. Atrás, até então escondido de mim, havia uma espécie de gruta ou nicho onde, acreditei, antes ficava a imagem do Buda. Era escuro, não era possível ver o seu fundo de onde eu estava, na calçada.

Peguei minha lanterna na mochila. Me aproximei.

Zanzando pelo ar, passando perto de minhas orelhas, vespas. Parei um pouco. Meu dedo ainda estava inchado da picada no primeiro dia da viagem. Fui devagar, tentando não assustar os insetos, não fazer movimentos bruscos. Acendi a lanterna; mirei o fundo da gruta, eu estava a uns dois metros de sua entrada. Concentrado em inspecionar o buraco, senti um rasante ainda mais ousado de uma vespa em minha orelha e me assustei. Nisso, de novo, o movimento instintivo de afastar o inseto com a mão.

De novo, outra picada.

Dei urros e pulos de dor e de raiva ao mesmo tempo. Não sei qual, raiva ou dor, era maior. A picada havia sido desta vez na outra mão, não a que tinha sido o alvo dos demônios voadores antes. O inseto agora havia aterrizado nas costas da minha mão esquerda. Malditas, malditas vespas. Fechava os olhos e trincava os dentes de dor, depois abria os olhos e olhava para a maldita estupa. Com roupa molhada, enlameada, provavelmente cheio de agrotóxicos da plantação e, agora, com a mão latejando e rapidamente inchando. Dei as costas àquela estupa dos infernos e, sem nenhuma opção, refiz o mesmo percurso que fizera para chegar. Mais água, mais lama.


No total, de volta à estrada, havia gasto o dobro do tempo que esperava gastar na aventura. O sol já estava bem mais baixo, era o meu último dia em Termez, e eu ainda tinha que ver o famoso mausoléu de Al-Termizi, um dos motivos que me haviam trazido à cidade. Acelerei o passo com a luz poente, que estava incidindo diretamente sobre meu rosto.

A estimativa de distância do taxista havia sido claramente otimista demais. Mais uma meia hora se passou até finalmente aparecer a entrada do complexo, do outro lado da rodovia. Depois, por mais uma via saindo da rodovia principal, passado esse primeiro portal, surgiu um caminho triunfal emoldurado com altas árvores. Nesse trecho, foram mais uns 20 minutos de caminhada. Então surgiram mais dois portais, o segundo parecendo o portão de uma cidade murada, abrindo caminho através de grandes fileiras de pedras criando uma muralha bege. Pareciam ser antigas fileiras, reconstruídas ou recolocadas no lugar posteriormente. Nada ao redor, a não ser a muralha, os portais e a estrada. Aqui, muito tempo atrás, ficava o coração da cidade de Termez, seu núcleo perdido. Hoje, ele é sinalizado apenas por ruínas e pelo magnífico santuário de Al-Termizi, que, finalmente, veio a seguir.

Definir Al-Hakim Al-Termizi ("O Sábio de Termez") é um grande desafio, particularmente para não muçulmanos. Abu Abdallah Muhammad ibn Ali ibn al-Hasan ibn Bashir al-Termizi nasceu em Termez ainda no século IX, poucas décadas após a chegada do Islã à Ásia Central. Ele foi um prolífico autor de tratados filosóficos e teológicos que influenciariam, mais tarde, sábios da era de ouro da civilização islâmica que viria entre o século X e a obliteração mongol do século XIII. Mais especificamente, Al-Termizi é hoje considerado um dos primeiros pensadores do sufismo, a prática, através de diferentes estratégias, usadas pelos muçulmanos para se aproximar misticamente de Alá. Esses estudos de Al-Termizi, na verdade, vieram antes do surgimento das grandes ordens de sufismo predominantes na Ásia Central, uma região onde elas vieram a se tornar muito populares por sua sinergia com formas ancestrais de fé que antecedem o Islã. Dessa forma, Al-Termizi não é considerado um sábio sufi, mas algo como um "pré-sufi", já que já falava nas suas obras da necesidade de aproximar os ensinamentos do Islã do coração dos fiéis de uma maneira mais direta, além das escrituras. Em sua obra mais famosa, Selo dos Santos (Khatm al-Awliya), ele faz reflexões sobre o polêmico conceito dos santos (wali), não aceito pelo sunismo ultratradicional. Por essas ousadias, Al-Termizi teve que enfrentar acusações de heresia em seu tempo, vivendo exilado de Termez. Sua obra, porém, seria depois aceita como pilar e influência. Segundo estudiosos, até o famoso Abu Hamid Al-Ghazali (1058-1111), um dos mais celebrados sábios da era de ouro, teria sido influenciado por Al-Termizi. Contudo, tudo isso é muito distante da realidade atual. O que é Al-Termizi hoje para os habitantes de Termez? Quantos deles sabem de sua importância, de sua história? Seu mausoléu é um local de peregrinação, tal qual o de qualquer santo associado ao sufismo. Mas talvez muitos venham apenas atrás da refeição gratuita oferecida às quartas-feiras a todos os visitantes. Talvez, venham apenas para passear nos magníficos jardins, mantidos com um carinho comovente em uma região tão seca.

Na hora dourada do ocaso, com o sol baixo, toda a cor fica ainda mais intensa. O terceiro portal marca o início da área, sem acesso a carros, onde começam os jardins do complexo. Flores coloridas por toda a parte, os aromas da natureza, o frescor da grama recém-regada. Plataformas de madeira cobertas e banquinhos para se sentar, outros bancos ao redor entre as plantas, tudo em excelente estado, tudo limpíssimo. Alto-falantes espalhados pelo verde, no alto de postes, foram acompanhando meu passeio pela calçada de concreto da entrada dos jardins até o mausoléu em si. Os alto-falantes emitiam gravações de leituras em árabe, dizeres de Al-Termizi, reflexões. Queria entendê-las. Pensei: que lugar mais agradável, mais fresco, mais vivo. Vivíssimo no meio do que está morto há tanto tempo, as estupas budistas, tão perto do sufocante calor do centro de Termez. Um oásis para contemplação, para reflexão.

Cheguei à entrada do mausoléu às 18h45 e o lugar estava praticamente deserto. Nenhum táxi na entrada. Assim, tinha que ver tudo e depois tentar chegar, ainda com luz de preferência, a um ponto de ônibus e táxi que ficava na rodovia para voltar para o hotel. Calculei que teria, no total, teria 15 minutos para ver tudo e ainda ter luz na volta. Estranhamente, apesar disso, não senti pressa nem apreensão com a possibilidade de ficar à deriva no meio do nada, sem transporte para voltar para o centro de Termez.

A tranquilidade só aumentou quando entrei no mausoléu, uma construção simples de tijolos aparentes. Circundado de tumbas sem identificação, o prédio, construído a partir do século IX, mas datando principalmente do século XII, não tinha nada de especial à primeira vista: o portal típico dos mausoléus islâmicos, nenhum mosaico. Sem decoração de azulejos, muito simples. Dentro, porém, a arte tenta traduzir a beleza da mensagem do sábio com uma cornucópia carregada de ouro, claramente restaurada e preservada com primor. Cúpulas e paredes ricamente trabalhadas com padrões geométricos hipnóticos, linhas e vértices brilhantes, um capricho que poucos artistas poderiam conceber. A decoração na cúpula, em particular, é um tesouro como nenhum outro que havia visto — não perfeitamente circular, um tanto quanto deformada, torta. Quiçá de forma proposital; o imperfeito guardando o perfeito, como o homem guarda Deus em si.

Sentei-me em um canto, olhando para os detalhes, sendo observado pelo curioso mulá. Imaginei que ele já quisesse ir embora e que fosse em breve me pedir para me levantar e partir. Qual não foi minha surpresa quando um grupo numeroso — idosos, jovens, crianças — chegou em questão de minutos para dar boa noite a Al-Termizi, aproximando-se com reverência da tumba, tocando os Corões colocados em frente a ela. A tumba: um cenotáfio de pedra branca coberto com rica caligrafia, doado por Ulugh Bek, o neto de Tamerlão, no século XV.

Fechei os olhos. Uma prece entoada pelo mulá, acompanhada por todos os visitantes. A reza ecoado pela cúpula dourada.

Fui embora apenas às 19h20. O sol já estava abaixo do horizonte. Lusco-fusco. Me sentia feliz, extático, otimista. Claro que encontraria facilmente transporte. Claro que sim! Nenhum problema, o transporte já estava vindo em minha direção. Eu nem acelerava o passo.

Entre o segundo e o primeiro portais, vi duas vans se aproximando, vindas do mausoléu, indo para a rodovia. Fiz sinal para pararem. A que parou disse que estava indo para o centro. Em 20 e poucos minutos, eu estava no hotel.


* * *

Despedida de Termez com um sanduíche de churrasco grego em uma mesa instalada pela lanchonete em frente ao grande relógio, na avenida Al-Termizi. Neste restaurante me trataram muito bem. Sorrisos. O moço jovem no caixa disse o que eu já sabia, que via poucos turistas. Puxei papo com ele; espontaneamente, ele disse que as coisas estão muito melhores para ele, para Termez, com o novo presidente. Depois, falei com dois taxistas sentados ao lado, que haviam me perguntado de onde eu era. Me disseram a mesma coisa: o Uzbequistão se abriu desde a morte do presidente Islam Karimov, em 2016. O sucessor de Karimov, Shavkat Mirziyoyev, trouxe essa mudança, afirmaram. Isso os deixava felizes. E a mim também!

Em dois dias, vou ver um dos efeitos dessa abertura — a fronteira com o Tajiquistão perto de Samarkand, há tanto tempo fechada, reabriu recentemente. Vizinhos e familiares há muito separados por tolices podem agora facilmente se reencontrar.

Quanta alegria!

Penjikent, 9/8, 12h10

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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