Sunday 12 February 2023

Novas Fronteiras (III) - Termez, Uzbequistão



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6/8/2018

À distância, à beira do rio que marca a fronteira uzbeque com o Afeganistão, um veículo militar ganhava velocidade. Ele deixava atrás de si uma coluna de fumaça que refletia a luz do sol poente. "Está vendo?", disse meu jovem guia, um moleque de uns 16 anos, parando a bicicleta, apontando para o horizonte entre as baixas colinas sem árvores. "São militares. Estão por ali. Por isso não podemos ir ao Kara-Tepe", explicou, se referindo a um ancestral sítio arqueológico budista vizinho. "Só vão lá os clientes da Marco Polo". Marco Polo é uma agência de turismo para abastados. Conseguem acesso a tudo pagando alto, bem alto, aos burocratas uzbeques.

O jovem então apontou para o ônibus da tal Marco Polo, parado na estrada do sítio arqueológico em que nos encontrávamos, Fayoz-Tepe. Antes, disse, os turistas estavam aqui, depois foram para o Kara-Tepe a pé. Sorte minha. Fayoz-Tepe estava agora sozinho, sozinho para mim e para o adolescente franzino, guardião do lugar, empolgado com a chance de ganhar uma gorjeta (a gorjeta que não tem chance de ganhar da Marco Polo, que vem com seu próprio guia). Como ele tinha as chaves da estupa — uma construção característica dos budistas, um local onde em geral são guardadas relíquias, usada para meditação — de Fayoz-Tepe, não vi como dizer não a ele me acompanhar. Depois de admirar o horizonte comigo, ele me indicou o caminho.

Fayoz-Tepe é um desses fantasmas inacreditáveis da Ásia Central. É um complexo budista testemunha da riqueza desta região no longínquo século III, quando estas margens do rio Amu Darya eram parte do império kushano, um vasto domínio que se estendia para o sul. Esta pegada é uma de várias dos kushanos que chegaram até hoje, muitas delas guardadas no museu nacional do Tajiquistão, incluindo um Buda gigantesco, visão impressionante de minha visita à capital tajique em 2012. Mas eu ainda não havia visto nada relacionado aos kushanos ao ar livre. Descoberto apenas em 1968, Fayoz-Tepe foi escavado, restaurado e até certo ponto reconstruído. Essa cirurgia plástica o fez um tanto artificial, me causou a impressão de estar vendo algo novo demais, algo que contrastava com a antiguidade real do sítio.

Caminhei atrás do meu guia. Há uma sequência de salas sem teto, sem azulejos, salões que um dia poderiam ter reunido dezenas de pessoas. As paredes foram todas reconstruídas com primor. Em alguns locais, é possível ver tijolos ancestrais derretidos pelas intempéries, lentamente deixando de existir. No salão principal, há longas fileiras com as bases de colunas do que era um mosteiro. O ar fantasmagórico, de permanente interrogação, me acompanhou a cada passo. Não há placas para entender o que era, exatamente, delimitado pelas paredes. Não há referências.

O mais chamativo é um domo, também com a cor ocre característica, novamente uma reconstrução. Subimos por uma escada até ele, que fica em um dos cantos do complexo de barro. Havia uma porta, fechada. O guia, com a chave, a abriu para mim. Dentro, em uma ambiente de sombra e fresco, está a estupa. Neste caso, tratava-se de um monte de barro no formato de um meio ovo (ou talvez, melhor dizendo, um cupinzeiro) com uns bons três, quatro metros de altura. A imagem de Buda que deveria adornar alguma de suas faces há muito se foi. Sobrou apenas um buraco na terra desfigurada. Um mistério valioso, protegido pela cúpula externa, moderna.

Fayoz-Tepe é um sítio grande, com aproximadamente 1,5 km². Apesar de vazio (o que sobrou, mosaicos e estátuas de Buda, foram transportados para museus), tem tanta importância que atraiu dinheiro do longínquo Japão para sua reconstrução. Sobre isso, há sim uma placa, a única em todo o complexo. Traz o logotipo da Unesco, identificando que o local recebeu apoio também da instituição. Segundo meu jovem guia, foi até visitado em pessoa pelo Dalai Lama — algo que me pareceu duvidoso. O Lama, segundo o jovem, teria se ajoelhado humildemente em frente ao que sobrou da estupa ancestral, louvando-a pelos séculos que a construção enfrentou e venceu. Apenas o fato de ainda estar de pé talvez seja um sinal de que foi abençoada pelos bons espíritos. "Foi assim que o Dalai Lama fez", mostrou entusiasmado o jovem, ajoelhando-se em frente à estupa, esticando os braços, inclinando o tronco até a cabeça quase tocar no chão. Não tentei dissuadi-lo. Era claro que desejava louvar a estupa. Conscientemente ou inconscientemente. Esta era apenas a perfeita ocasião.

Me passou pela cabeça que este local atravessou os séculos apenas para dar sentido à vida do jovem.

Saída da estupa. Olhei de novo, ofuscado pelo sol, em direção ao rio, o Amu Darya, o ancestral Oxus atravessado por Alexandre, o Grande (356-323 a.C.) em sua conquista do que era para ele o fim do mundo, e pelos soviéticos em seus últimos metros de paz antes do inferno da Guerra no Afeganistão (1979-1989). Minha última visão do Amu Darya havia sido em 2012 na fronteira tajique-afegã. De onde estava agora, ao lado da estupa, não conseguia ver o rio, talvez pela luz forte nos meus olhos. Mas sabia que o Amu Darya estava lá pela referência do outro sítio arqueológico, Kara-Tepe, o visitado pelos turistas ricos. E também pelos veículos militares, zanzando de cá para lá, na tensão permanente desta linha de contenção da confusão afegã. Tão distante e tão perto, o Afeganistão. Gostaria de caminhar até Kara-Tepe, ver direito. Não. Fora de alcance.

Apesar de não ter sido muito opcional pedir a ajuda do guia — que, além das chaves da estupa, controlava o acesso a um pequeno museu ao lado —, concluí que foi bom visitar Fayoz-Tepe com ele. Não sei como faria para entender as paredes de barro com as poucas informações do meu livro-guia. Agradeci de coração. Pena que brigamos no final. Ficou revoltado com o valor da minha gorjeta. Dei uma quantia que me pareceu justa, não era pouco de forma alguma, mas ele queria muito, muito mais. Argumentei, claro, que eu não era um turista da Marco Polo.

O sol apenas havia descido para baixo do horizonte.


* * *

Como o esperado. Já haviam me advertido que essa seria a primeira característica de Termez que iria me chamar a atenção. Trata-se de uma cidade quente, muito abafada. Chegando com o trem vindo de Tashkent bem cedo, encontrei meu hotel, me desfiz de minha mochila, saí para trocar dinheiro e tive que voltar para meu quarto para tomar um banho. Eu estava ensopado de suor, da cabeça aos pés, não apenas na parte da roupa em contato com a mochila, mas em toda parte. Nada surpreendente que uma das teorias sobre a origem do nome da cidade seja que ele vem de thermos, "quente" em grego.

O grego seria uma herança de Alexandre, que teria passado por aqui no caminho de suas conquistas que viriam depois, mais ao norte. O quanto existia de povoado neste terreno naquela época é incerto; segundo arqueólogos, porém, é possível estabelecer que esta região era habitada já 2,5 mil anos atrás, se tornando sem a menor dúvida um dos mais importantes portões de entrada na Transoxiana, com os gregos chamavam a terra além do rio Amu Darya (chamado por eles de Oxus). A história indica que o local já era conhecido pela dinastia persa aquemênida, de Ciro (600-530 a.C.) e Xerxes I (518-465 a.C.). Outra origem hipotética do nome de Termez seria do persa antigo, "ponto de passagem" ou "cruzamento", provavelmente uma referência à travessia do Amu Darya. O orientalista russo Vasily Barthold (1869-1930), autor de uma clássica narrativa histórica da Ásia Central publicada no início do século XX, explicou a importância estratégica da cidade:

A existência de uma grande ilha que facilitava a construção de uma ponte flutuante, e sua proximidade de Balkh (no atual Afeganistão), o centro de todo o país, fez de Tirmidh (Termez) talvez o mais importante ponto de cruzamento do Amu Darya depois de Amul (atual Turkmenabat, Turcomenistão); guerras frequentemente eram travadas pela sua possessão entre os senhores da Transoxiana e do Afeganistão.
— Vasily Barthold, Turkestan Down to the Mongol Invasion (1928)

Após a passagem de Alexandre, toda a região de Termez ganharia grande importância sobre o domínio dos kushanos, desenvolvendo-se como um importante centro de difusão do Budismo. Apenas em Surkhandaryo, a província uzbeque onde fica Termez, os kuchanos fundaram mais de 110 assentamentos e complexos budistas, entre eles Fayoz-Tepe e Kara-Tepe. Era então ainda a primeira encarnação da cidade, a que seria conquistada pelos túrquicos em suas primeiras hordas invasoras no século IV, e depois pelos árabes e por outros impérios antes da traumática visita de Gengis Khan (1162-1227). Assim descreveu Barthold a conquista do mongol, que veio do norte:

Até a primavera de 1220 Gengis Khan já podia incluir a Transoxiana entre seus territórios e havia já tomado medidas para restaurar a vida pacífica (...) No outono, Gengis Khan avançou rumo a Tirmidh (...) Os números de suas forças não são conhecidos. Uma proposta de rendição foi rejeitada, e ambos os lados lutaram um contra o outro com catapultas por alguns dias. Finalmente os mongóis silenciaram as armas de seus inimigos e a fortaleza (de Termez) foi tomada de assalto após um cerco de 11 dias; a cidade foi destruída, e todos os seus habitantes, massacrados.

A reconstrução e surgimento de sua segunda encarnação veio rapidamente, diferentemente do que ocorreu em outros lugares da Ásia acariciados pelo Khan, provavelmente pela sua posição estratégica no cruzamento do rio. Em aproximadamente 1333, se tornaria mais conhecida ao mundo exterior com a passagem de um dos mais notórios viajantes da história da humanidade, o marroquino Ibn Battuta (1304-1368?), que cruzaria o Amu Darya por aqui vindo de Samarkand e a caminho da Índia, em um período em que toda a região estava sob controle dos herdeiros de Gengis. Graças a Ibn Battuta, sabemos hoje que a cidade foi reconstruída mais para o interior, se afastando de seu local original, à beira do rio, onde fica Fayoz-Tepe. Os hábitos locais teriam causado certo estranhamento ao experiente explorador:

Então chegamos a Termez (...) É uma grande cidade com lindas edificações e bazares. É cortada por canais, tem muitos jardins, uvas e marmelos são extremamente doces por aqui. Há muita carne e leite. Os residentes da cidade lavam suas cabeças nos banhos com leite azedo (...) Em cada banho, os funcionários trazem grandes ânforas com leite azedo. Todos os que entram nos banhos colocam o leite em jarras menores para então lavar suas cabeças.
— Nematulla Ibrahimovich Ibrahimov, The Travels of Ibn Battuta to Central Asia (1999)

Tamerlão (1370-1405), no século XIV, conquistaria a cidade a seguir e criaria serviços de balsas sobre o rio, obrigando os viajantes e caravanas a pagar pela travessia, assim gerando ainda mais riqueza para seu vasto reino centrado em Samarkand.

Depois a região passaria a ser parte do Emirado de Bukhara e permaneceria quase esquecida até que, após a expansão do Império Russo no século XIX, se tornou uma das fronteiras dos domínios do czar, uma das mais importantes. Era então o principal ponto de travessia para o Afeganistão, onde os britânicos nessa época travavam sucessivas guerras fracassadas para expandir seu império centrado na Índia. Sendo a cidade um dos tabuleiros do chamado Grande Jogo entre os dois impérios, surgiu outra encarnação de Termez, a de cidade-quartel, centro militar na fronteira. O número de fardados explodiu, e a cidade ganhou um quê de última parada antes do início da terra de ninguém. Isso só se reforçou nas décadas seguintes: primeiramente, nos anos 1980, quando Termez se tornou um grande centro de concentração de militares soviéticos a caminho da morte na Guerra no Afeganistão. Foram os soviéticos que construíram a ponte em Termez ligando os dois países. Em segundo lugar, já com o Uzbequistão independente, quando recebeu militares da coalizão da Otan que a usavam como trampolim para o novo conflito no Afeganistão a partir de 2001.

Dado seu retrospecto militar e a importância que teve especialmente nos últimos anos da URSS, eu esperava que Termez fosse muito mais russificada — com os descendentes dos imigrantes russos nas ruas, cartazes em russo além do uzbeque, igrejas ortodoxas, todo o legado de anos de presença dos eslavos. Ficou no passado. No hotel, me disseram que havia uma igreja ou catedral ortodoxa por perto, mas não na avenida Al-Termizi, a grande referência do centro, onde está o burburinho. O biotipo e a vestimenta dos que cruzavam comigo pela calçada me levou de volta ao Vale de Fergana. Mulheres com vestidos, nada de calças. Vestidos bem coloridos, tal como no vale.

Na Al-Termizi fica a principal atração turística contemporânea da cidade, a maior esperança do governo local para atrair mais e mais as hordas endinheiradas que invadem Samarkand e Bukhara. O Museu de Arqueologia tem uma linda fachada — um arco com colunas e a parede coberta com azulejos azuis primorosos. Cúpulas também azuis, de inspiração na arquitetura timurida. Muito recente, inaugurado em 2001, com cheiro de novíssimo. Certamente o prédio glorioso foi financiado pela pujança turística de outras partes do país. Impossível não vê-lo na avenida vindo da estação ferroviária ou a caminho dela.

A razão do investimento não demorou muito a ficar clara. Logo na entrada, havia um mapa tridimensional de toda a província de Surkhandarya, onde fica Termez. O mapa mostrava os dezenas de sítios arqueológicos que pipocam em toda a área. Praticamente em cada canto. Sítios à beira do Amu Darya, na área onde fica o núcleo original de Termez e Fayoz-Tepe; sítios no vale do rio Sukhan Darya, que segue para o norte; sítios nas montanhas perto do rio, em cavernas, em cantos ocultos. Sítios de muitas eras diversas. Da época de Alexandre, da civilização kuchana, da época do número quase incontável de civilizações, tribos e impérios que disputaram e transformaram a Ásia Central num cabo de guerra, século após século. Uma riqueza impressionante de memórias perdidas e encontradas de séculos e séculos e séculos e séculos, entrelaçadas.

As peças do acervo, milhares, apresentam uma boa introdução da história desta terra. As mais impressionantes são budistas, dos kuchanos, complementando as ruínas peladas que podem ser vistas em Fayoz-Tepe. Fiquei confuso e segui, no andar de baixo do museu, a ordem anticronológica do acervo em exibição. Há algumas estátuas de Buda que outrora adornavam estupas da região. Uma delas, incrivelmente bem preservada, é identificada como vinda de Fayoz-Tepe. Sendo de entre os séculos III e IV, é incrivelmente semelhante, ou quiçá idêntica, a uma que vi em no Museu de História do Uzbequistão em Tashkent — quem sabe aquela tenha sido uma cópia? Ou esta fosse uma cópia? Não ficou claro. Outra, ainda mais antiga, mostra dois Budas, um em cima do outro, com rostos desfigurados, de terracota. É de entre os séculos II e III. Segui o corredor e apareceu um pé de terracota, imenso. Mais antigo ainda, de entre os séculos I e II, distintamente grego em estilo. Eu estava chegando aos impérios helênicos que sucederam o de Alexandre na região, o Selêucida e o Greco-Bactriano, ambos nos primeiros séculos depois de Cristo, antes dos kushanos.

Voltei depois à ordem cronológica e subi para o segundo andar, que estaria completamente às moscas não fossem duas ou três funcionárias profundamente entediadas, sentadas em cadeiras, contratadas para não permitir que os poucos visitantes tocassem as peças. Novamente, impressionantes tesouros budistas. Havia alguns objetos enigmáticos, miniestátuas de Buda feitas de metal, provavelmente bronze, com dobradiças, de um tamanho que cabe na palma da mão. Pareciam pequenos sarcófagos. Lupas permitiam ver os detalhes intricados das peças, os Budas esculpidos em posição meditativa e de pé. Nunca havia visto nada parecido. Pequenas imagens para inspirar os monges budistas durante suas orações.

Saí do museu com muita sede.

Parei ao lado em um restaurante, me deitando sob uma sombra em um tapchan, a cama-mesa onde os uzbeques tradicionalmente tomam chá e apreciam suas refeições ao ar livre. Duas da tarde, um sol violentíssimo. Me trouxeram chá preto em um bule fervente, salada de tomate e pepinos e manti, os raviolis típicos com generoso recheio de carne. Ao lado havia um borrifador de água para umedecer o ar e aliviar o forno ambiente. Estava mal regulado, os pingos eram grossos e me alcançavam, molhavam minha camisa e minha orelha. Agradeci.

Uma hora depois, fui para o hotel. A Al-Termizi estava lotada; carros, buzinas, uma cidade grande, como outra qualquer. Nas calçadas, nenhum turista, ninguém nem remotamente parecido comigo. Eu era um alienígena. Fiquei desconfortável como em poucas vezes no Uzbequistão. As pessoas me olhavam muito. Estava muito distante do conforto de Samarkand e Bukhara, tomadas por ônibus de excursão, ou mesmo do Vale de Fergana. Me senti muito vulnerável.

Cruzei com um grupo de homens. Mal me viram, perguntaram se eu tinha dólares para trocar — um anacronismo, já que o câmbio no mercado negro já não vale mais a pena. Falei que não, pedi desculpas com educação, sorri com cortesia, continuei meu caminho. Queria ir tirar uma soneca, me esconder do sol. Só pensava nisso. Minha barriga pesava com o manti. Não insistiram, segui meu caminho.

Não tive sorte a seguir. Encontrei uma mulher de pele mais escura, talvez uma refugiada das terras vizinhas do Afeganistão, talvez uma cigana. Tinha duas crianças de uns oito ou dez anos, uma menina, maior, e um menino. Vestiam roupas coloridas que perderam a cor, puídas, sujas. As crianças colaram em mim, me agarraram. Não entendia nada do que falavam, não era russo. Sorri, tentei me desvencilhar. Não consegui. Elas ficaram mais agressivas. Apertavam mais meus braços, ficavam em meu caminho, pulavam nos meus pés. A menina era forte, espremeu demais meu braço esquerdo, quase me machucou. Eu não tinha o que fazer. Indiquei à mãe, olhando à distância, que me ajudasse, que controlasse os pequenos, e ela deu de ombros. Me irritei, mas não queria demonstrar irritação, julguei que só pioraria a situação. Não as queria perto de mim. Não queria sacar minha carteira e dar a elas algo, mostrar meu dinheiro no meio da rua me pareceu muito arriscado. Não tinha nenhum trocado solto no bolso para dar a elas.

Senti raiva pelas crianças terem me escolhido como vítima. Mas, ao mesmo tempo, tive pena, muita pena, morri de pena, senti uma dó gigante. Meu coração ficou amassado.

No final, as crianças se penduraram, literalmente, em mim, uma em cada braço. Me arrastei com as duas por quatro quarteirões. Só me largaram quando cheguei ao portão do hotel.

Sombra e ar condicionado no meu quarto. Olhei pela janela, meio ofuscado pela luz do sol. Estava no quarto andar, enxergava a Al-Termizi diretamente à frente. Na entrada do hotel, lá embaixo, vi as duas crianças. Olhavam para as pessoas passando. Olhavam para o hotel. Olhavam uma para a outra. Olhavam para o chão.

Termez, 22h35, 6/8

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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