Sunday 5 February 2023

Novas Fronteiras - Prefácio



Viajar pode ter uma infinidade de significados para diferentes pessoas. Mas dificilmente uma viagem longa, solitária e a um local distante de nossa própria zona de conforto deixará de ser uma experiência transformadora para quem quer que seja.

Quiçá “transformação” seja a essência deste novo diário que apresento. Quem acompanha meus diários – publicados no meu blog, Central Asia Observatory – sabe que, em essência, eles são longos relatos em que procuro apresentar as mudanças que vêm ocorrendo em uma região do mundo que amo profundamente, a Ásia Central ex-soviética (Uzbequistão, Tajiquistão, Quirguistão, Cazaquistão e Turcomenistão), em contraponto com minhas próprias mudanças, pessoais, emocionais e espirituais, com o passar do tempo. Entender o alcance que procuro dar a estes relatos apenas como uma tentativa de oferecer a mais profunda e abrangente descrição dos pontos turísticos que visito na minha jornada (o que, sim, procuro fazer), como um mero guia de turismo, significa não compreender o que escrevo. Esta experiência literária é profundamente pessoal e, ao compartilhá-la com os leitores, eu estou compartilhando o que há mais de íntimo em mim. Sem a menor dúvida a Ásia Central é, nestes parágrafos, um espelho de mim e eu, um reflexo dela.

“Novas Fronteiras” é a quarta viagem que realizo à região. O que começou com uma visita de trabalho em 2001 caminhou para jornadas progressivamente mais ambiciosas de exploração, em 2003 (viagem relatada em “Um Brasileiro no Uzbequistão”), 2012 (“Diário de Almaty” e “Nos Desertos, nas Montanhas”) e finalmente neste diário. Desta vez, a viagem não me levou ao Quirguistão e ao Cazaquistão, mas me conduziu pela primeira vez a um dos países mais fechados e misteriosos do mundo, o Turcomenistão. Tão fechado é o país que a única maneira de visitá-lo foi pagando por um pacote turístico que incluiria um guia, além das acomodações. Eu temia que fosse uma viagem muito restritiva (sem a liberdade que gozei ao visitar os outros países da região). Entretanto, para minha felicidade, essas restrições foram muito menores do que eu imaginava. Além da fronteira do Turcomenistão, que adentrei pelo Uzbequistão (perto de Nukus), estive em duas outras regiões de divisa que nunca havia visitado: a uzbeque-afegã na cidade de Termez, no Uzbequistão, que não cheguei a cruzar; e a uzbeque-tajique entre Samarkand (Uzbequistão) e Penjikent (Tajiquistão). As fronteiras, na medida em que representam marcos de transição entre duas realidades intimamente relacionadas, mas diferentes, são momentos-chave desta narrativa. Assim, nada mais natural o título deste diário. São novas fronteiras, são novas explorações, e essas explorações ativamente mudam o viajante.

Como em diários anteriores, escrevê-lo até a publicação neste blog foi um processo longo. A viagem ocorreu em 2018 – portanto, há cinco anos. Desde então, em meio à rotina diária de trabalho integral e com o nascimento de minha filha, primeiro enfrentei o esforço de passar a limpo os manuscritos feitos durante toda a viagem. Depois mergulhei em um complexo período de pesquisa histórica, antropológica e literária, checando informações e encontrando citações ilustrativas da importância dos locais visitados. Veio a edição de fotos e vídeos (produzi mais de mil fotos, e selecioná-las foi uma tarefa extremamente dolorosa) e, por fim, a longa revisão do texto. Quando me dei conta, havia se passado meia década, um período em que a viagem foi refeita inúmeras vezes (e, certamente, em cada uma das vezes, as novas fronteiras foram cruzadas de novo e tiveram novo impacto em mim). Foi uma tarefa lenta, mas extremamente recompensadora, que chegou a seu formato final em 35 capítulos.

Entretanto, pela demora, tive que pagar um preço, que é justamente a desatualização. O leitor deve ter em mente, antes mesmo de começar a leitura, que todos os relatos se referem a 2018. A Ásia Central, como não poderia deixar de ser, passou por grandes mudanças desde minha visita até agora. A principal, ao menos à primeira vista, se deu no Turcomenistão. Em 2018, o país vivia no retumbante tédio de uma ditadura totalitária que não parecia ter data para terminar. O presidente, Gurbanguly Berdimuhamedow, controlava o país desde 2006 e parecia saudável e sem nenhuma intenção de abandonar o poder. Surpreendentemente (talvez temendo pressões na elite política, cujas idiossincrasias jamais saberemos), o líder abriu caminho para uma sucessão adiantada para seu filho, Serdar Berdimuhamedow, que assumiu a presidência em 2022. A mudança, porém, não significou muito para os turcomenos. Não houve nenhuma alteração na política do país, que continua o mais distante possível de uma democracia. Não há oposição, os meios de comunicação são totalmente controlados e a população normalizou uma paranoia permanente, o medo de estarem sendo observados e poderem ser presos a qualquer momento. Assim, certamente o relato da visita ao país neste diário continua totalmente válido. O Turcomenistão, em suma, por causa de seu isolamento, quase sem turistas, me lembrou muito o Uzbequistão de vinte anos atrás, quando os turistas ainda estavam descobrindo o país. Foi uma interessante viagem no tempo.

No Uzbequistão, o diário descreve ainda um período de transição: o país seguia reconhecendo o fim do longo domínio do seu primeiro presidente, Islam Karimov (falecido em 2016) e o início do governo do sucessor Shavkat Mirziyoyev, até hoje presidente. Em vários pontos do país, o que vi foi uma certa euforia, um sentimento de otimismo e esperança com o novo presidente, principalmente com o fato de que ele havia revertido certas políticas de Karimov (em particular a reabertura da fronteira com o Tajiquistão). Isso eu senti até mesmo na república autônoma uzbeque do Caracalpaquistão, no extremo oeste do país. Em 2023, Mirziyoyev e a população do país estão em uma fase completamente diferente, em que o regime está sendo testado e o presidente procura se consolidar com o objetivo aparente de permanecer muito tempo no poder. Mirziyoyev prepara mudanças constitucionais para ter o direito de se reeleger além dos limites de mandato atuais. No Caracalpaquistão, o primeiro esboço de tais mudanças previa o fim da promessa de que um dia a região poderá decidir em um plebiscito se irá se separar do resto do Uzbequistão. Tal fato gerou uma violenta revolta na região em julho de 2022, deixando pelo menos 18 mortos. Foi algo raríssimas vezes visto no Uzbequistão. Após reassumir o controle sobre o Caracalpaquistão, Mirziyoyev retirou da proposta de reforma constitucional a mudança que afetaria os sonhos separatistas da região. O primeiro julgamento dos envolvidos na violência, que o governo disse ter sido transparente e justo, levou a 22 condenações, mas analistas criticaram todo o processo, acusando-o justamente de não submeter a polícia repressora ao mesmo escrutínio a que submeteu manifestantes que tomaram as ruas. Ecos dos anos Karimov.

No Tajiquistão, as mudanças foram menores. O país vive uma tensa expectativa quanto à transição. O presidente Emomali Rakhmon, de 70 anos, é hoje o líder da Ásia Central ex-soviética a mais tempo no poder (desde 1994). Em meio a relatos persistentes de problemas de saúde, parece cada vez mais claro que ele deve seguir o caminho de Gurbanguly Berdimuhamedow e nomear seu filho, Rustam, para sucede-lo, criando mais uma dinastia na Ásia Central. Enquanto isso, Emomali Rakhmon parece estar querendo resolver problemas de longa data para facilitar a transição para o filho. Além de lançar seus militares em uma missão para conter supostos insurgentes na região do Pamir, matando e prendendo dezenas em 2022, o presidente parece não estar se esforçando para evitar a escalada de um conflito fronteiriço com o Quirguistão. A fronteira ainda tem longos trechos não-demarcados e uma população que, dos dois lados da fronteira, depende de recursos compartilhados, como a água. No Quirguistão, a ascensão de um novo líder com perfil nacionalista (Sadyr Japarov, presidente desde 2021) ajudou a tornar a situação explosiva. O auge do confronto foi em abril-maio de 2022, quando dezenas de pessoas, de ambos os lados, perderam a vida. Novos episódios de violência foram registrados depois e, no momento, uma trégua frágil está sendo observada. Do ponto de vista do Tajiquistão, ceder ao Quirguistão em troca da paz poderia ser interpretado como um sinal de fraqueza de Emomali Rakhmon neste momento-chave pré-transição, então a perspectiva é de que a tensão continue, com episódios esporádicos de violência na fronteira. Entretanto, os relatos deste diário em território tajique se dão longe da fronteira comum e em uma região que ainda hoje é completamente pacífica. Nela, o mais claro (e que permanece ainda hoje) é a longa sombra de Rakhmon, que só parece não encobrir as montanhas que visitei perto da cidade de Penjikent. Lá, os moradores vivem num mundo paralelo, um pequeno paraíso que cada vez mais é descoberto pelos turistas.

Do ponto de vista pessoal, a viagem foi um enfrentamento. Tendo viajado à Ásia Central antes, o retorno me trouxe uma sensação de conforto e familiaridade; o desafio foi fugir dessa sensação. Encontrar o lado pouco conhecido. Abandonar as trilhas gastas dos turistas e já seguidas por mim no passado. Confrontar temores, fragilidades, entre elas uma imensa solidão em determinados momentos, além da falta de autoconfiança e o medo, puro e simples. Conhecer pessoas me ajudou muito nesse processo, e tenho uma dívida impagável com cada um dos muitos personagens fugazes que amei nas várias etapas da viagem. Com eles como aliados, enfrentar meus fantasmas me fez uma pessoa mais evoluída, cada vez mais integrada com o mundo, com a humanidade, com este plano espiritual.

Espero que os relatos sirvam para que mais brasileiros se animem a conhecer esta parte frequentemente ignorada, mas interessantíssima, do globo. E que, como eu, ao visitar, passem por uma experiência verdadeiramente transformadora.

Clique aqui para ler o primeiro capítulo

NOTA SOBRE TRADUÇÕES, CITAÇÕES E ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS

Novas Fronteiras contém uma infinidade de termos nas línguas locais e em russo. Procurei padronizar a forma como são escritos de acordo com a grafia que, em primeiro lugar, me pareceu a mais comum para o termo em português brasileiro ou, em segundo, a forma como aparece dicionarizada. Dessa forma, por exemplo, usei termos como "gaznévidas" (em inglês, "Ghaznevids") em vez de "ghasnávidas" ou mesmo "gasnávidas"); "iurta" em vez de "yurta" ou "yurt"; ou "Gengis Khan" em vez de "Gingis Khan" ou outras variantes. Termos não-dicionarizados, em língua estrangeira, aparecem grafados em itálico.

Todas as citações de outras obras no texto foram traduzidas por mim. Mantive os títulos das obras no idioma ao qual tive acesso às mesmas, não necessariamente o idioma em que foram escritas originalmente.

Por fim, cada capítulo começa com data a que o mesmo se refere e termina com a data e o local em que a entrada no diário foi escrita — não necessariamente a mesma abordada no capítulo.

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