Sunday, 12 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (VII)

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Este post faz descrições da cidade de Bukhara em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Bukhara, 06/06/2003

Não há luz elétrica aqui dentro. Lá fora, cai uma chuva leve, o céu está todo nublado. Pouco consigo enxergar do rosto de meus vizinhos no salão escuro. Eles estão ajoelhados nos tapetes colocados lado a lado. O cântico tende a te deixar quieto, anestesiado. O imã, rezando lá na frente, invisível de onde estou, tem uma voz bem grave e forte. Ele a faz ecoar com facilidade pelo teto de abóbadas, reverberando nas paredes e nas janelas. Nos breves intervalos entre uma estrofe e outra de seu poema sagrado, dá para ouvir uma pomba, provavelmente em seu ninho no teto, fazendo seu arrulho igualmente ecoante. Protegendo sua ninhada dos pingos de água fria. O cheiro é o da poeira acumulada nos tapetes. Com meus olhos se acostumando à escuridão, descubro que os tapetes são vermelhos, com intrincados motivos. De repente, o canto para. Meus vizinhos abrem as palmas das mãos, apoiando-as, viradas para cima, nos joelhos. Uns demoram mais, outros menos, uns movimentam a boca como se falando palavras secretas, outros não, mas todos acabam levando a mão ao rosto e o acariciam, como se o estivessem lavando.

A mesquita Kalon, ao lado do minarete do mesmo nome, tem um imenso pátio e pode receber até dez mil fiéis para as preces de sexta-feira. Uma sexta-feira como esta em que Olivier nos convenceu a adentrar seus portões e, com o prévio consentimento dos sacerdotes e funcionários, assistir à cerimônia. Não me causou estranhamento ver amplos espaços vazios no salão. São áreas reservadas às pessoas que ainda não se recuperaram dos efeitos da União Soviética sobre a sua fé. O Islã, a despeito dos gloriosos monumentos em nome de Alá no Uzbequistão, ainda tem que ser absorvido melhor pela população após anos enfrentando a aberta antipatia das autoridades. Isso não significa também que a religião não tem a sua força. Com chuva ou sem chuva, a sexta-feira sempre é um feriado em Bukhara, me dizem moradores.

Os anos de comunismo moldaram a alma desse povo e por isso hoje é difícil acreditar que exista espaço para radicais islâmicos por aqui. É espantoso lembrar que o Talebã floresceu logo ao lado, no Afeganistão, impondo a mais estrita obediência ao Corão.

No pátio, há uma linda árvore, sozinha e alta, emoldurada pelas paredes coloridas dos mosaicos e inscrições estilizadas em árabe. Difícil é o ofício do observador da arquitetura da mística Bukhara: horas se passam, e se tem a impressão de que ainda não se viu o suficiente. Os fiéis, ainda ajoelhados, levam a cabeça ao chão à frente deles três vezes, e depois se levantam. Muitos, jovens e velhos, se reúnem em grupos para uma conversa em voz bem alta lá mesmo. Outros, como eu e meus amigos, seguem para a saída, onde saudamos o imã, antes de mergulhar em um chá vespertino.

Chá e conversa fiada, o esporte nacional. Em rodinhas de pessoas agachadas. Já havia percebido o hábito dos uzbeques em Tashkent, quando descobri, para meu espanto, um casal de jovens - a menina linda, com um vestido rosa deslumbrante e uma flor na mão, e o jovem de blazer e cabelo bem alinhado - namorando num parque, os dois de cócoras. Eles ficam horas assim. Alguns almoçam também nessa posição: compram um churrasco desses à venda nas ruas e, com ele num pratinho, caminham para baixo de uma árvore. Lá, agachados, o devoram. Fiz um experimento, e depois de ficar dois minutos agachado, minhas pernas passaram a doer horrivelmente. Quando me levantei em seguida, tive tonturas. Este povo parece ter um gene a mais que os protege de tais efeitos colaterais. Talvez seja o mesmo gene que permite que eles bebam tanto chá. Como observou em Bukhara Ryszard Kapucinsky, em 1967:

A essa hora as casas de chá estão cheias de uzbeques de cócoras com seus turbantes coloridos na cabeça. Bebem um chá verde. Bebem por horas a fio, muitas vezes ali permanecem o dia todo. Muito agradável esse tipo de vida passada num tapetinho à sombra de árvores entre os companheiros mais chegados. Sentei na grama e pedi um bule.
- Ryzard Kapucinsky, Imperium, 1993

Meu chá foi na Labi-Haus, um dos pontos mais inevitáveis do centro antigo: uma pracinha de altas amoreiras ao redor de uma piscina pública. À beira da água, restaurantes para turistas, e, cercando os restaurantes e a piscina, lindas madrassas desativadas. A piscina de pedra foi construída em 1620, e a água é marrom, mas limpa o suficiente para atrair dezenas de crianças em dias de calor. Antigamente, cerca de 200 piscinas como a da Labi-Haus adornavam o coração da cidade velha. Mas o governo soviético acreditava que elas eram focos de doenças e as drenaram, deixando poucas, sendo a da Labi-Haus a principal. A medida afastou pássaros, exterminou rãs e mosquitos e mudou o clima na cidade, tornando o ar mais seco. Apesar das mudanças, a Labi-Haus permanece agradavelmente igual. Mesmo os restaurantes para turistas não afastaram os locais, especialmente os mais velhos. Há os que se reúnem para jogar dominó, como nas praças de cidadezinhas do interior do Brasil. Uma atmosfera imutável de tranqüilidade. Chove e é sexta-feira, assim, a paz é ainda mais acentuada. À beira da piscinas estamos só nós e mais um grupo de turistas.

Hoje, muitos usam Labi-Haus para designar tanto a praça quanto a própria piscina. O nome significa "ao redor da piscina" em tadjique, uma língua semelhante ao persa falado em Bukhara desde os tempos em que a cidade era a gloriosa capital da dinastia persa samanida, no século X. Na verdade, os tadjiques reivindicam o controle sobre a cidade, e correspondem a uma minoria significativa da população de Bukhara até hoje. Muitos até mesmo relutam em se identificar como tadjiques. Seus bisavós provavelmente não viam nenhum problema nisso, mas nos tempos das URSS os tadjiques do Uzbequistão foram descobrindo que era melhor para eles se identificarem como uzbeques para ter mais chances no mercado de trabalho local e não serem marginalizados. Muitos falam tadjique em casa, não na rua. Por outro lado, há aqueles que não temiam, nem temem, o preconceito por não se identificarem como uzbeques no país dos uzbeques, arquitetado artificialmente pelos soviéticos.

À tarde, depois que a chuva passou, eu e Jean-Marie fomos conhecer o bairro judeu de Bukhara. A ancestral capital dos samanidas tem uma área identificada há séculos com a comunidade, com ruas estreitas e estrelas de Davi, em que o comércio sempre foi a principal atividade econômica. Trata-se de uma das comunidades de judeus mais isoladas, mais antigas e mais teimosas do planeta. Sua fé sobreviveu não só a União Soviética e a então perseguição à prática religiosa, como também a "febre de religião" pós-queda do comunismo, na qual o Islã foi "redescoberto" pelos cidadãos de Bukhara, reconquistando o coração de quase todos os que buscavam uma religião.

O labirinto de ruelas começa bem ao lado da Labi-Haus e logo descobrimos que estávamos perdidos em uma vizinhança pobre - e sem nenhum tipo de lojinha ou mercearia. Passamos em frente a uma porta em que uma jovem de aparentemente 24 anos nos abordou, sorridente, falando uma ou outra palavra de inglês misturada com russo. Tinha pele morena e cabelo longo, castanho, e usava um vestido branco, azul e rosa, mas muito sujo. Sua pele também estava suja - seu rosto estava coberto de um pó negro que parecia com o que se acumula no rosto de mineiros de carvão. Perguntei se ela sabia onde ficava a sinagoga. Ela disse, para nosso espanto, que era judia e quis nos mostrar uma coisa em sua casa.

Entramos. O lugar estava abarrotado de restos de brinquedos de plástico verdes e vermelhos, espalhados pelo chão. Quatro crianças se espremiam numa salinha num canto, vendo uma TV velha, em branco e preto, mal-sintonizada. Não só a mulher e as crianças pareciam cobertas de sujeira: as paredes também, tudo tinha a mesma cor enegrecida, de fuligem. Não havia móveis, nem sequer uma mesa. A garota se ausentou brevemente e nos trouxe dois livros caindo aos pedaços que guardava em algum cômodo escondido: eram cartilhas para o aprendizado de hebraico. "Você sabe ler? Falar?", perguntei. "Sei ler um pouco. Há uma escola aqui perto, na sinagoga. Havia muita gente aqui que falava, mas eles foram indo embora. Eu levo vocês à escola", disse ela.

No caminho, um vento forte soprou trazendo muita areia, vinda não sei de onde, e nós praticamente tivemos que andar com os olhos fechados. Perguntei à garota se era de Bukhara mesmo, ou se havia vindo de outro lugar. "Sou tadjique", disse, com um sorriso. "Sou judia, tadjique e moro aqui." Um ser único, pensei. Ela me explicou que a vida estava muito difícil para os judeus na cidade, e que a maioria havia optado por imigrar para Israel. Resignada, ela mesmo deu a entender que gostaria de fazer isso, mas não faz por um motivo bem evidente, a falta de dinheiro. "Vocês não se importam de me dar uns trocados por levar vocês à sinagoga? Não tenho como alimentar meus sobrinhos", disse, falando das crianças que encontramos na casa.

Pouco depois, chegamos à sinagora e sua escola: um complexo de salas ao redor de um pátio aberto, não muito grande, no qual entramos por uma porta que trazia algo escrito em hebraico. O lugar parecia abandonado. A garota nos conduziu por um corredor até a sala de aula principal, coberta. Entre livros velhos em prateleiras, uma foto emoldurada e pendurada na parede mostrando o mais ilustre visitante do local: a ex-primeira-dama americana Hillary Clinton. Com uma máscara de batom e pó de arroz, rugas de expressão bem marcadas ao redor dos olhos e da boca, eis na foto a mulher do então homem mais poderoso do mundo, o que podia mudar tudo, o onipresente. Em seguida, apareceu o rabino - materializou-se do nada, do ar, e só me cumprimentou depois que a garota explicou quem éramos. Muito diferente do rabino que sempre se imagina. Sem barba, óculos grossos. Não o vi sorrir e, depois que balbuciou três palavras para me saudar, sentou-se num canto para não mais abrir a boca. Manteve a mesma expressão facial permanentemente. Eu não conseguia ver para onde ele olhava por trás daqueles seus óculos de lentes sujas. Estava lá e lá deve estar até agora. Vendo o tempo passar. Sem nada para dizer. Sem nada para viver.

Com a chuva voltando e acabando com o que restava do ânimo de Jean-Marie, deixei-o com Olivier perto da Labi-Haus e fui passear longe dali, na cidade nova, para longe dos sonhos samanidas, para perto dos sonhos camaradas. Como Tashkent, a cidade tem uma clara divisão entre o que é antigo, persa, tadjique, uzbeque, e o que é russo, erguido nos tempos do czar ou nos tempos da URSS.

Fui caminhando, saí da cidade velha, e logo o lado soviético mostrou sua face mais agressiva, na forma de usinas e fábricas desativadas, enferrujadas e desmoronantes, imensas, com suas chaminés-torres. Segui uma grande avenida moscovita de quatro pistas e encontrei, no caminho, em meio de um conjunto habitacional, os restos de uma mesquita antiga. Fiquei curioso com o prédio deslocado, num local improvável. Quis ver seu interior, e o simpático zelador me deixou entrar.

Nada de muito interessante dentro, tudo desfigurado, horrivelmente remodelado, coberto por tinta e gesso. O local bem poderia ter sido um depósito de armas nos tempos soviéticos. Contudo, se por um lado o interior me frustrou, por outro o papo valeu a pena. Mesmo sem eu entender metade do que o zelador me disse, nem ele metade do que eu lhe disse, senti um carinho dele por este brasileiro, vindo de tão longe, que quis conhecer uma mesquita que ninguém quer conhecer. Sem querer, nem pedir, por causa da minha pura curiosidade, me tornei seu velho amigo. E ficamos lado a lado, por agradáveis minutos, vendo pontinhas do sol se pondo entre as nuvens no horizonte. Iluminando o minarete da mesquita perdida e deformada, tesouro improvável, longe e perto de mim.

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