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Este texto faz referência à minha visita anterior a Bukhara, relatada nos capítulos VI e VII de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); clique aqui para relembrar
10/9/2012
A madrassa Mir-i-Arab. À minha frente, fazendo-me sombra.
Ao redor, Bukhara. Bukhara que mudou, ou eu que mudei. Ou essa sensação de estar em um lugar diferente do que eu já conhecia é simplesmente por causa da época em que voltei. Mais provavelmente, uma mistura de tudo isso.
A cidade está tomada por turistas - especialmente franceses, espanhóis, italianos e alemães. Eles desfrutam de uma cidade que agora tem hotéis excelentes. Ao lado do histórico laguinho da praça Labi-Hauz, me senti um pouco testemunha da história desta cidade. Vejo o local onde ficava a pousada Fatima e Ibrahim, onde fiquei em 2003. É quase na frente da Labi-Hauz. Hoje o lugar é o Hotel Fátima, bem maior, parecendo novinho em folha. Ainda respeitando, meio como uma réplica barata, a arquitetura de tijolos gastos desta nobre cidade.
A Labi-Hauz, à beira da qual me diverti em almoços com meus colegas franceses em 2003, agora tem até luzes coloridas submersas em suas águas. Elas criam uma atmosfera moderna à noite, quando há também esguichos que lançam a água com força, fazendo curva no ar, das extremidades para o interior da piscina. O restaurante que conheci está maior, mais mesas, muita gente. O local todo fervilha. Aqui do lado, numa área coberta conectando a Labi-Hauz a outras partes da cidade velha, barraquinhas vendem velharias soviéticas, especiarias, panos, roupas típicas. No século XIX um viajante que esteve por aqui descreveu toda a Labi-Hauz como uma feira livre. Diferente hoje, com os ônibus de turistas, com a casa de chá que virou restaurante, com menos barracas. Mas não tanto.
"Me pareceu um local dos mais atraentes. É quase que uma praça perfeita, tendo no centro um reservatório profundo, 30 metros de comprimento e 24 de largura. Pela margem estão alguns olmos, e em suas sombras a inevitável casinha de chá (...) Nos outros três lados, pães, frutas, doces e carnes quentes e frias estão à venda expostos em barracas sob a sombra de esteiras. As centenas de lojas improvisadas para a ocasião, ao redor das quais multidões de consumidores ávidos zanzam como abelhas, nos brindam com um espetáculo muito característico."
- Arminius Vámbéry, Travels in Central Asia, 1864
Os preços ainda não estão proibitivos na cidade, para minha surpresa. É isso. Em essência, esta é a velha Bukhara do emir que um dia fez dela um país: à tarde, no sol, me perdi nas ruas entre a fortaleza medieval, a Ark, e a Labi-Hauz. Na poeira e no ar quente, procurava me guiar pelo minarete Kalon.
Nesse caminho, nas ruas que eu não reconheci e onde dei voltas e voltas, vi a verdadeira cidade, suas rugas-ruínas que lhe dão tanta dignidade histórica, uma essência, Alá permitindo, imortal. Vi as casas antigas, ocres, com suas fachadas caindo aos pedaços. Até uma mesquita pequena, lá naquela rua, esquecida, abandonada, trincada, e ainda assim orgulhosa, o mesmo orgulho que a mantém de pé há séculos. Em alguns casos, porém, a dignidade história assusta como um câncer. Uma madrassa (seminário islâmico) bem perto da Mir-i-Arab, outro tesouro, continua sem restauro no interior e um pedaço do seu mihrab ruiu. Aqui, um risco claro a esse patrimônio sem preço.
Há o outro lado do descaso. As salinhas onde os estudantes costumavam viver na madrassa estão vazias, escuras, fantasmagóricas. E convidam, como sempre, o explorador, o curioso, o viajante do deserto.
Mas não há nada, nada, nada como a Mir-i-Arab e suas cúpulas azuis, o minarete Kalon à sua frente, e a elegante mesquita Kalon atrás dele - o complexo conhecido como Poi Kalon (assista ao vídeo abaixo).
A Mir-i-Arab, claramente timurida em seu estilo, é herança dos shaibanidas, a dinastia uzbeque que trouxe glória ao khanato de Bukhara (depois, transformado em emirado) entre o século XIV e o século XVI, destronando justamente os timuridas - Samarkand foi conquistada em 1505, Bukhara, em 1506. Mas o complexo tem raízes mais antigas. O minarete do século XII, por exemplo, é karakhanida, ou seja, é parente do mausoléu de Aisha Bibi em Taraz.
O Poi Kalon é um dos mais belos conjuntos arquitetônicos do planeta. Como me ocorreu quando encontrei o mausoléu de Yassawi, a madrassa ordenou que eu me sentasse à sua frente, ao lado da entrada da mesquita. Passei os 40 minutos seguintes, até o anoitecer, inspecionando cada mínimo detalhe de sua fachada. Lembrando e descobrindo suas sutis assimetrias e afirmando-as como perfeitas. Ou melhor, provisoriamente imperfeitas. Em um dos lados da fachada, um trecho de tijolos está sendo reconstruído e foi coberto por uma tela que imita a parte que cobre. Mas nada, nem isso, pode diminuir seu esplendor; o doce misturar do azul das cúpulas, o azul do céu e o dourado do Sol poente.
Algo mais que não havia percebido na minha última visita: a presença de turistas do próprio Uzbequistão. Perambulando em frente à madrassa antes do lusco-fusco, encontrei um grupo de três velhinhos, todos usando o chapéu típico uzbeque. Eles se aproximaram de outro velhinho, um vendedor de suvenires sentado na calçada próxima à Mir-i-Arab. O vendedor perguntou de onde eram: "Andijan" foi a resposta. Seguiram-se carinhosos apertos de mão e saudações. Pareciam conhecidos de longa data, amigos que há muito não se viam. Depois, despediu-se o grupo do vendedor e foi à mesquita Kalon. Sacaram suas câmeras e fizeram fotos, vídeos. De repente, viro-me e vejo um outro grupo, de velhinhas, cobertas com vestidos e véus feitos com a colorida seda de Fergana. Os velhinhos de antes e as velhinhas de agora. São daqui e não são daqui. Estou feliz em vê-los explorando os tesouros de sua própria terra, explorando o mundo, felizes, irradiando seus dentes de ouro, desfilando suas vestimentas tão lindas.
Jantei na Labi-Hauz. Possivelmente, é o programa mais relaxante de toda a Ásia Central. Dois shashliks imensos de carne bovina e uma cerveja, cerca de US$ 15. A cerveja foi uma atração especial, negativamente. Em 2003, lembro-me de ter tomado por aqui a única cerveja que havia, a Baltica, uma marca da Rússia. Não era ruim, mas, também, não tinha nada de especial. Não me lembro de ter sequer visto, em toda aquela minha viagem, outra marca em todo o Uzbequistão. Entretanto, ontem, em Tashkent, passei por três mercados e nenhum deles sequer tinha cerveja para vender. Desta vez, na Labi-Hauz, pedi uma cerveja e me trouxeram uma com o sugestivo nome de "Ouro Tcheco". Duvido que seja tcheca. A "coisa" ficou rapidamente choca logo depois de abrir. Mesmo com o gosto aguado, agradeci. Ajudou a descer pela garganta a gordura do churrasco.
* * *
Cheguei a Bukhara após embarcar em um trem às 8h30 em Tashkent. Fui à principal estação da cidade, um lugar bonito e aparentemente moderno do lado de fora. Mas estou no Uzbequistão, é claro que tem algo em relação à estação que deixa você com a pulga atrás da orelha. Pois bem: se você quer ver esse bonito prédio por dentro, só pode fazê-lo se tiver bilhete para embarcar. Os guardas não deixam entrar ninguém que não seja passageiro - possivelmente para evitar terroristas. Mas, ora bolas, um terrorista pode comprar um bilhete barato para entrar e pronto! Está lá dentro... A segunda idiotice: ao entrar, não se vê nenhum cartaz indicando onde ficam as plataformas para pegar os trens. Você tem que descobrir, e se não falar alguma língua local ou conhecer de vezes passadas a estação, está perdido.
O trem expresso "Sharq" para Bukhara é bem confortável. Poltronas acolchoadas, novas, me lembraram a de bons aviões. Para cada par delas há uma mesa. Até Samarkand, o ar condicionado funcionou, o que foi um grande alívio. Mas, depois, até Bukhara, eu e meus colegas passageiros fomos cozinhando a mais de 30 graus. Pela janela, as paisagens se alternavam - ora o inóspito deserto de Kyzylkum, terra seca e arbustos espinhosos, ora plantações, principalmente de algodão. No caminho inteiro, a expectativa imensa de rever a nobre cidade. E conhecer finalmente, amanhã, locais dela onde nunca estive antes.
Labi-Hauz, 11/9, 12h
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