O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior
Clique aqui para ver um mapa com o itinerário da viagem
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Este post faz descrições da cidade de Samarkand em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)
Samarkand, 09/06/2003
Outro dia de muito, muito calor e ar seco. Segui as indicações do mapa, caminhando à beira de uma estrada que saia do mercado de Samarkand, circundando um cemitério ao meu lado esquerdo. O cemitério tinha uma colina e era possível ver de longe as tumbas refletindo o sol.
"- Ei, ei!", me disse, desde o outro lado da rua, todo agitado, um jovem de uns 16 anos vestido modestamente. Não estava muito no espírito de conversar e, para falar a verdade, fazia tanto calor que se eu parasse para tentar usar meu russo, cozinhava os miolos. Fingi não ouvir.
"- Shahr-i-Zinda! Eu sei onde é! Quer um guia? Eu sei!"
Depois de uns 500 ou 600 metros, ele desistiu de me perseguir, e me deparei com um portal. A entrada me autorizava a subir uma escada a céu aberto. No transcorrer do que calculei serem uns 80 degraus, as construções, vetustas e finamente trabalhadas, se faziam anunciar. Subi lentamente. A cada degrau, um suspiro: A Tumba do Rei Vivo se abria para mim. Um universo azul, em todos os tons, texturas e dimensões, flutuando livremente entre o céu sem nuvens e a terra seca.
O Shahr-i-Zinda, ou "Tumba do Rei Vivo" em tadjique, é o local onde Tamerlão e Ulugh Bek, seu neto, enterraram muitos de seus familiares e amigos mais queridos. Trata-se de uma rua de mausoléus. Uma rua estreita e com uns 100 metros de comprimento, em que cada uma das "casas" tem um portal esculpido com lindos azulejos azuis, moldados, remoldados e pintados com alegorias de plantas e flores. Também há as fachadas com composições abstratas, geométricas, matemáticas, cósmicas. Os mais belos trabalhos em azulejo que existem no mundo? Reflito enquanto fico paralisado logo no primeiro mausoléu.
Depois de seu portal, cada mausoléu apresenta uma câmara com um pequeno domo. No chão, repete-se nas casinhas a caixa de pedra retangular, deitada, indicando onde estão depositados os restos mortais do seu habitante. A sombra faz tudo ficar fresco e agradável, um oásis no clima sufocante. As cúpulas ecoam as minhas palavras de prazer: que lugar maravilhoso. Mas me assusto em seguida quando as sílabas despertam uma família de morcegos que, espertamente, fez seu lar em um dos tetos curvos.
A escolha deste lugar para abrigar os mausoléus tem um bom motivo: trata-se, certamente, da área mais sagrada para os muçulmanos de Samarkand. Caminhando pela rua de mausoléus, se chega à entrada de uma galeria que é guardada por um zelador. Sentado em um dos bancos ao redor da entrada, em uma área coberta, ele se reúne com outros visitantes para rezar. As palmas das mãos voltadas para cima, os olhos fechados. Sem incomodar, com receio de estar fazendo algo proibido, adentro a galeria. Lá no fundo, mais pessoas rezando, ao redor do que parece ser uma tumba. Aqui está enterrado um dos primos do profeta Maomé, Qusam Ibn-Abbas, aquele que se acredita que trouxe a crença em Alá para esta região do planeta. O santuário é uma das mais antigas edificações da cidade, mas o fluxo diário de visitantes exigiu que fosse reformado para continuar vencendo o teste dos tempos.
A rua de mausoléus fica já a caminho da saída da cidade. Continuando pela beira da estrada depois do Shahr-i-Zinda, caminhei por mais 1,5 km além do cemitério, passando pelas escavações arqueológicas de Maracanda - a Samarkand conquistada por Alexandre, o Grande. Lá perto, fica, ou se acredita que fique, o curiosíssimo mausoléu do profeta Daniel, da Bíblia, do Talmude e do Corão. Evidentemente, é uma lenda (há outras cinco cidades no mundo que clamam abrigar a morada final do profeta). E ela diz que Daniel teve seus restos trazidos para Samarkand por Tamerlão e que, mesmo após sua morte, o corpo do profeta continuou crescendo. Por isso, seu caixão, que pode ser visto por todos que forem ao santuário, hoje tem nada menos que 18 metros de comprimento. Acredita-se que seja mais do que suficiente para acomodar o cadáver do profeta, pelo menos por ora.
Ainda na estrada, o passeio me levou ao lugar escolhido por Ulugh Bek para seu famoso observatório. Ulugh Bek, que sucedeu Tamerlão no controle do seu vasto império, pagou com a vida seu amor pelas ciências. Em 1420, ele abriu em Samarkand a primeira "universidade" da região, na madrassa que levou seu nome, no Registan. Mandou construir também um gigantesco astrolábio, com a ajuda do qual mapeou 200 estrelas. Também fez cálculos precisos sobre a duração do ano e hoje é reconhecido mais pelo seu legado como astrônomo do que como um dos principais herdeiros do seu temido avô. Contudo, no seu tempo, o hobby de Ulugh Bek começou a chamar a atenção de puritanos islâmicos, que perceberam que o líder preferia ficar suspirando para suas estrelas em vez de estudar o Corão. Foi o próprio filho de Ulugh Bek, Abdul Latif, que organizou um golpe contra ele e garantiu que fosse decapitado, em 1449. Em seguida, seu amado observatório foi apagado da face da Terra. O que sobrou - encontrado por arqueólogos apenas em 1908 - foi uma das peças do astrolábio, curva e inacreditavelmente imensa (uns 30 metros), que é exibida na colina do observatório, ao lado de uma estátua do astrônomo. No dia em que estive lá, talvez como uma poética ironia, a Lua era visível no céu azul, coroando a estátua, como uma auréola na cabeça de um santo mártir. Um mártir das estrelas.
Ulugh Bek foi enterrado com Tamerlão no mausoléu Guri Amir, no centro de Samarkand. Próxima parada.
* * *
Eu permaneci aqui um longo tempo, ao mesmo tempo comovido e perturbado. Um homem entrou e rezou um pouco, depois se foi. Os choros de crianças soavam enfraquecidos vindos de fora. Sob o rutilar decorativo da cúpula, a simplicidade dessas lápides era honrada e simples: um reconhecimento da pequenez até mesmo deste homem e da passagem do tempo. Ao lado dele jaz seu dócil filho Shah Rukh; acima, seu ministro; sob uma área parcialmente confinada, seu xeque. Seu neto Ulugh Bek está a seus pés.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia, 1994
A primeira coisa que vem à cabeça é que está faltando alguma coisa. Na fronteira da parte uzbeque com a parte russa e mais modernizada da cidade, o Guri Amir, com sua cebola-cúpula turquesa, se apresenta no fim de uma esplanada plana. Parece pequeno demais. Algumas ruínas cercam a edificação, mas, ainda que levando em conta o que o complexo pode ter sido um dia, ela parece ser muito menor do que as madrassas do Registan ou que a mesquita Bibi Khanoum. O lugar tem um quê de tranquilidade interiorana: as ruínas com uma roseira aqui e ali, algumas borboletas e abelhas, o sol da tarde refletindo nas pedras, um ventinho mais fresco. Sei que a noite virá logo, e que talvez a brisa já a esteja anunciando. Mas o mausoléu e sua moldura parecem delimitar uma área em que o tempo passa mais devagar. Como se hesitante em afastar Tamerlão mais e mais das glórias passadas.
O ouro é eterno e mantém essas glórias vivas.
Calculo que o ouro usado no salão principal onde estão as tumbas de Tamerlão e Ulugh Bek, recobrindo o interior de seu domo e detalhes das paredes, poderia ser usado para dar almoço à população da cidade inteira por meses. Nas paredes de mármore, formas geométricas hipnóticas novamente me detiveram por um bom tempo. No centro do salão ficam as caixas de pedra que indicam onde estariam descansando os dois heróis da história do Uzbequistão. As pedras, porém, não são o que parecem ser. Depois de negociar com a zeladora do mausoléu, ela me leva para o lado de fora, onde uma escada me conduz a uma sala imediatamente embaixo do rico salão. Lá estão as verdadeiras tumbas, em uma câmara bem simples, com tijolos nas paredes. O sarcófago de Tamerlão é de jade escuro e com uma rachadura na sua tampa. A cicatriz é do século XVIII, quando um líder persa tentou transportá-la para o atual Irã e, descuidado, a deixou se quebrar.
Tamerlão, durante sua vida, construiu um pequeno mausoléu onde pretendia ser enterrado na sua cidade natal, Shakhrisabz, a algumas horas de viagem ao sul de Samarkand. Mas, segundo dizem os relatos históricos, quando ele morreu - nas estepes do Cazaquistão, prestes a lançar uma campanha para conquistar a China - era inverno e as estradas de Samarkand para Shakhrisabz estavam bloqueadas pela neve. Era 1404. Sendo impossível transportar o corpo do conquistador para sua cidade, optou-se por enterrá-lo no mausoléu que ele estava construindo para alguns de seus netos, no Guri Amir.
"- Quer ver algo que você não vai acreditar?", perguntou a zeladora russa em inglês, com seu forte sotaque, quando estávamos saindo da cripta subterrânea. Dessa vez, não tive que pagar. Do lado de fora, ela apontou para um túnel que, com suas escadas, levava a uma sala simples - na verdade, um corredor com uns dois metros de altura e teto curvo, toda de tijolos. "Este é o início da rede de túneis. Esta parede é nova, não estava aqui originalmente. Do outro lado dela, estão os túneis, que ligam o mausoléu ao Registan e até ao Shahr-i-Zinda. Eles nunca foram abertos, porque há partes (da rede de túneis) que são perigosas, nunca foram restauradas, outras estão bloqueadas. Mas os túneis estão aí." Não sei se ela falou a verdade. Duvidei muito. Seriam túneis de quilômetros por baixo da terra. Ainda assim, a zeladora me tentou com a ideia de que Samarkand, e o Uzbequistão, têm coisas que eu, ou nenhum turista, vai nunca ver ou saber se são reais. Um mundo de sombras, de mistérios. E o que ficamos sabendo nas visitas não é metade do que há por saber.
O dia terminou com melancolia. Minha despedida dos meus dois amigos franceses foi em um restaurante na avenida em frente ao Registan. Degustamos um laghman - um macarrão estilo talharim típico uzbeque, que vem submerso em uma sopa bem quente. Para equilibrar a temperatura, pedimos cervejas russas bem geladas.
Noite de céu estrelado, amena. Na avenida, o trânsito das vans de lotação levando constantemente as pessoas para o centro da cidade. Amanhã, volto a ficar sozinho, para o fim da minha jornada. Jean-Marie e Olivier ainda estão no início, vão para as montanhas do Tajiquistão, para outro povo, outro universo. Eu, por outro lado, vou para a terra proibida do Uzbequistão, no extremo leste do país. O suposto lar dos extremistas islâmicos, da repressão política em grau mais elevado, do maior medo das autoridades. Estou empolgado. Quero comprovar se o que ouvi falar do Vale de Fergana tem a ver com a realidade.
Clique aqui para ler o próximo capítulo
.
No comments:
Post a Comment