Wednesday 28 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXV): Alichur

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29-30/9/2012

Dezesseis bois e vacas caminham vagarosamente na planície bege. No horizonte, o Sol já se pôs, e sobe uma Lua quase cheia. O céu perto da Lua está em tons de rosa, vermelho, azul.

A Lua enfeitiça.

É um quadro de um mestre da pintura. As vacas, lentas, meus olhos, preguiçosos. O ar limpo demais, tênue demais.

Perto do lago Bulunkul, a pouca distância das vacas, mais beleza. O lago, a seus quase 3.700 metros de altitude, é de um azul profundo. Perto dele acompanhei a despedida do Sol dourado.

Ao redor dele, caminhei 30 minutos. Me agarrando a uma disposição que me surpreende após os acontecimentos das últimas horas, temendo por minha saúde. Parando e levantando os olhos, forçando-os a trabalhar, para apreciar o Teto do Mundo.

Logo após escrever meu diário ontem, fui dormir. Me sentia ótimo, havia jantado e estava com sono. Estranhamente, no momento em que encostei a cabeça no travesseiro, minha noite praticamente acabou. Meus olhos se abriram com o peso em minha barriga. A comida, sopa com pedaços de carne e pão, ficou parada no meu estômago. O sono não veio, o mal-estar cresceu e se transformou em tosse, febre, calafrios, tremores, náusea. A noite inteira foi um suplício de ir e voltar ao banheiro até que só bile me saía pela boca, e, ao voltar ao quarto, lutar para ficar quieto na cama e não tossir para não prejudicar ainda mais o sono dos meus colegas de viagem.

A manhã veio com um Sol lindo que me encontrou após um total de talvez uma hora de sono. Muito cansaço, dor no abdômen, dor de cabeça. E tudo sem entender o que poderia ter ocorrido, já que todos comeram no dia anterior o mesmo que eu.

Preocupado, Iker, que anteontem era o "doente" do grupo, descobre onde há um médico em Ishkashim. E vamos. Uma pequena clínica em uma casa cercada de grama amarelecida.

Lá dentro, dois enfermeiras, nenhum médico. As paredes brancas me parecem tão escuras. Uma enfermeira me deita em uma cama, passa a mão em meu abdômen. Senti um alívio. Diz que é simplesmente algo que eu comi e que não fez bem, que não há nada para fazer. Simplesmente o sorriso e as palavras de consolo já foram um tremendo tratamento. Agradeci, me agarrando à promessa de que, no dia seguinte, eu já estaria melhor.


* * *

Nos planos de hoje, deixar Ishkashim - mas antes, fazer uma breve visita ao mercado afegão. Minha primeira tentativa de vencer a letargia.

Ishkashim existe em dois países. Há a Ishkashim tajique e, do outro lado da fronteira, a sua irmã afegã, com o mesmo nome. Entre elas, o rio Panj, e no meio do rio, uma ilha. Todos os sábados, as cidades-gêmeas se unem em um dos eventos mais surreais da Ásia Central. É quando se realiza um mercado com vendedores dos dois lados. Ele acontece em uma terra de ninguém na ilha, um limbo que não é controlado inteiramente nem pelo Afeganistão nem pelo Tajiquistão. Visitá-lo é uma oportunidade de ouro para ver mais de perto o mundo proibido do outro lado do Panj, o mundo que vem nos acompanhando pela janela do nosso carro desde que chegamos ao Pamir.

Imperdível esse mercado, pensei. E fui me arrastando para o veículo com os olhos semifechados, tonto, enfrentando o Sol fortíssimo.

Nosso motorista foi se aproximando e, da estrada, enxergamos a ilha, que havíamos visto rapidamente ontem, quando estávamos chegando à cidade. Antes, estava vazia, havia apenas um galpão deserto. Agora, já de longe se vê a multidão colorida.

Estacionamos. Para entrar na ilha, há uma ponte. Na entrada dela, guardas tajiques pedem nossos passaportes. Não pedem para ver vistos. Apenas avisam que vão ficar com os documentos. Colocam eles no bolso e nos autorizam a cruzar a ponte. Fiquei pensando na possibilidade de eles desaparecerem de repente e venderem nossos passaportes para qualquer larápio falsificador de documentos. E em como, se isso acontecesse, me tornaria um prisioneiro desta terra.

Uma gota de suor corre pela minha testa. Que tremendo mal-estar. As pernas com dificuldade a cada passo, a barriga pesada com não sei o quê.

Em alguns segundos, estou em um lugar completamente diferente. Um universo de homens de turbantes e chapéus pakol, olhares cansados e barbas escuras. A pele do rosto, quando não oculta pelos pelos, novamente escura e enrugada, curtida como couro, a aparência típica dos habitantes do coração do Pamir.

Os afegãos andam de lá para cá entre as mercadorias estendidas em toalhas no chão. Vão contando maços de dinheiro. Entre eles, não vejo nenhuma mulher vestindo burca (aliás, entre eles, não há nenhuma mulher). Além dos afegãos, há outros turistas como nós, há homens pamiris com o chapéu típico (circular e raso, verde ou vermelho, cobrindo apenas o alto da cabeça), mulheres pamiris com seus véus de seda coloridos cobrindo parte do cabelo e soldados tajiques, todos com o uniforme sujo e gasto. Ouço muita conversa exaltada que me parece ser em dari e tajique, alguns vendedores arranhando o inglês, e ninguém, em absoluto, falando uma palavra de russo.

À venda: panelas, tapetes e roupas, utensílios de plástico, provavelmente tudo vindo da China. Alimentos, vegetais, grãos. Pakols. Tiro meu celular do bolso e, a esmo, me ponho a tirar fotos, sem mirar direito meus alvos, sem mesmo verificar se o foco está bem. Meu cérebro está em festa, quer absorver cada milissegundo desta experiência. Meu corpo é totalmente o oposto, quer uma cama. Minhas pernas querem desabar, meus olhos pedem trégua ao Sol. Vou para o galpão, a parte coberta do mercado.

Encontrado, encostado num muro, um velhinho. Turbante branco, barba branca, sentado, olhando para baixo, fazendo nós em uma linha. À frente dele, uma pilha de roupas à venda. Encurralado, triste, esperando que a morte seque de vez seu corpo e o devolva ao pó do ar.

Mais dez minutos ou menos de caminhada pelo mercado e chego ao meu limite. O Sol está forte demais. Fico em um canto, encostado, esperando meus amigos terminarem o passeio. Não consigo abrir os olhos. Estou triste, sofrendo com o meu corpo.

Das 13h, quando deixamos Ishkashim, até umas 16h, permaneci no banco de passageiros da frente do carro, ao lado do motorista, sem falar uma palavra, sem abrir os olhos, meio dormindo, meio delirando, vendo memórias do Brasil e da Inglaterra, não vendo lugares interessantíssimos. Com medo de não melhorar logo e perder muito mais.

Nosso próximo hotel foi novamente perto de um balneário termal. Subimos por uma estrada para o meio das montanhas e, ao chegar, estava repentinamente bem mais frio - vi um termômetro no hotel marcando seis graus. Me enfiei na cama enquanto meus amigos saíram para explorar ruínas de um forte não longe dali.

Acordei depois de mais ou menos uma hora, um pouco melhor. Engoli sem nenhuma vontade uns pedaços de pão amanhecido com mel, meia maçã e cinco goles de água. Daí fui enfrentar o frio - encarar a caminhada de volta pela estrada até as ruínas onde esperava ver meus amigos.

Cobri o pescoço e as orelhas o melhor que pude. Continuava com uma sensação de fraqueza, mas tinha muita vontade de ver onde eu estava. Não poderia mais ficar parado.

Atravessei o portão do pequeno hotel com passos lentos. A estrada era de uma terra cinza, e tudo estava nublado, com ventania. Tudo parecia inteiramente cinza, com tons infinitos da mesma cor.

A caminhada rumo ao forte foi com o vento contrário a mim. A poeira castigava meu rosto, chicoteando, dava para sentir cada grão arranhando minha pele em minha testa, em meus lábios, em meu nariz. Puxei o cachecol para proteger o rosto. Puxei junto um pouco da camisa e deixei descoberta parte da minha barriga. Um arrepio. Sentia a poeira entrando em mim, tomando os meus pulmões. Um sofrimento a cada passo e a ruína nunca parecia se aproximar. 20 minutos, meia hora de cinza. Tropeços no cascalho do caminho (veja o vídeo abaixo).



Por fim, chego. A fortificação tinha uma localização perfeita. Em um penhasco altíssimo, com uma vista de tirar o fôlego das montanhas do lado afegão. Chama-se fortaleza de Yamshun. Nenhuma ideia de quão velha, certamente de séculos e século, dado o seu atual estado. Sentei-me à beira da estrada para esperar a meus amigos, os quais já conseguia ver, ziguezagueando por entre os muros deformados pelos elementos, com suas câmeras frenéticas. Sentado, senti mais que a poeira. Senti a altitude. É a sensação de respirar, respirar de novo, respirar fundo e seguidamente, e não sentir que se está respirando o suficiente.

Pouco depois, Iker e Kim voltaram, sorrindo, felizes de me ver, felizes pelo prêmio da fortificação, da exploração, do isolamento do Pamir. A volta ao hotel foi muito mais fácil. Eu ainda estava me sentido mal. Mas o vento estava a favor.

Mais tarde, meus colegas de viagem me convenceram a tomar um banho na fonte termal de Bibi Fatima, a uma distância curta pela estrada. A fonte é conhecida em toda a região pela lenda associada a ela. Fica dentro de uma caverna, e se toma banho em um poço natural em uma pequena sala criada pelos caprichos da natureza. É um útero natural, dizem. E por isso a fonte atrai mulheres interessadas em ter filhos. Acreditam que, ao se banharem na câmara, serão abençoadas pela fertilidade.

A impressão que se tem ao entrar na caverna é de mistério. Demora para se ver a água. Há uma escada descendo entre as pedras, no topo da qual encontramos um senhor coletando o dinheiro da entrada. A escada nos conduz a uma casinha construída lá dentro da própria caverna, com uma sala onde os visitantes podem se trocar. Então já é possível ouvir o barulho de cachoeira. Logo se desce mais um pouco e, finalmente, na penumbra, se encontra o tal útero natural: água quente caindo e embaixo, dentro da água, espaço para umas 15 pessoas ao mesmo tempo.

A água tem uma temperatura de uns 35 graus, extremamente agradável, bem diferente de Garm Chasma, que era quente demais. Entrar naquela banheira foi um prazer incrível. Imediatamente, como que por milagre, me senti totalmente recuperado. Pena que não pudemos ficar mais que dez minutos, pois a fonte estava fechando para a noite.

Na volta para o hotel, minha letargia foi voltando aos poucos. Dormi das 20h às 5h. Das 5h às 7h, fiquei me revirando na cama com uma dor de cabeça insuportável.

Água quente e pão no café da manhã. Minha barriga parou de doer, porém a dor de cabeça continuava. Tomei meu antibiótico para a infecção renal, o que o médico me receitou em Dushanbe, e um paracetamol. Eram 8h30 quando entramos no carro e começamos a descer a montanha, gradualmente saindo das nuvens e entrando no ensolarado vale do Panj.


* * *

Neste trecho, o rio passa por mudanças. Em vez de único, volumoso, com ilhotas e correntezas, ele cria curvas e vai serpenteando por uma planície de terra. Se abre em vários canais rasos que se separam e se unem. Com sua nova personalidade, o rio colabora para aumentar a poeira do ar. O pó de suas margens cobre todo o carro.

No vilarejo de Yamg encontramos um numeroso grupo de turistas. Eram espanhóis, todos aposentados. Seguiam com uma guia de uns 40 anos, quirguiz com espanhol fluente, ao mesmo tempo testemunha de um bom legado soviético (o bom acesso à educação que lhe permitiu aprender o espanhol) e das oportunidades do capitalismo. Claramente orgulhosa do que se tornou, Sofia me disse ter aprendido espanhol ainda na adolescência quando fez um período de intercâmbio em Cuba. Hoje, ela tem uma empresa de turismo em Bishkek, trabalha como guia para turistas endinheirados do mundo hispânico.

Encontramos a excursão espanhola em um lindo pequeno museu, uma pérola, mantido em memória a um iluminado mestre sufi ismailita que morou no século XIX neste canto remoto, Mubarak-i-Wakhani (1843-1903).

O sábio se tornou conhecido principalmente por seus poemas. Escrevia em língua persa como os grandes Saadi ou Hafez, assim mantendo uma longa tradição e trazendo-a para as margens do Panj. Não obstante, não era apenas um poeta. Wakhani era uma espécie de gênio no estilo dos gênios renascentistas, uma espécie de Leonardo da Vinci, um autêntico polímata. É celebrado também por ter criado um tipo de papel, por construir instrumentos musicais e por desenvolver uma espécie de calendário solar usando pedras colocadas em uma montanha próxima, as quais ele observava à distância a partir de outra colocada perto de sua casa, onde fica o museu.

O lugar, claramente reconstruído e redecorado, é, primeiramente, uma celebração da arquitetura pamir. Uma casa com um pórtico de madeira com colunas trabalhadas, esculpidas com doçura. Pinturas coloridas e abstratas decoram a fachada em azul e amarelo. O interior do museu tem a claraboia familiar, com seus quadrados concêntricos, deixando entrar a luz perfeita, e seus pilares e palcos. Tudo decorado com capricho, cores, padrões geométricos e madeiras com caracteres árabes e outros motivos. Do lado de fora, sobre o muro que cerca a casa, chifres - novamente o misterioso símbolo que vimos no "templo do bode" perto de Ishkashim.

Os instrumentos musicais estão em uma sala e eram usados por Wakhani para mostrar sua devoção e adorar a Deus, se aproximando do divino, como buscam todos os sufis. O administrador do hotel - um senhor de uns 50 anos, tataraneto de Wakhani - tocou dois dos instrumentos, um deles lembrando um alaúde de dois braços e muitas cordas. Trata-se de uma variação do rubab, considerado o instrumento nacional do Afeganistão, mas sem dúvida os dois braços o tornam especialmente exótico. Produz um som enigmático, grave, que evoca solene reflexão.

O mesmo sentido sufi aparece nos poemas de Wakhani: veneração, a busca pela aproximação ao divino. Wakhani teria escrito durante sua vida cerca de 60 mil versos. Eles reforçam os conceitos do ismailismo e enfatizam a tolerância com os outros. Talvez seja essa postura que o tenha tornado tão celebrado, enaltecendo uma postura que pode ter ajudado a salvar todos os ismailitas pamiris das sucessivas ondas de invasões de muçulmanos de outros ramos do Islã que os enxergavam como hereges: buscando não rechaçá-los com violência, mas apresentando a eles uma mensagem de bondade e sabedoria que deve estar no coração de todo muçulmano. Como diz Wakhani em um de seus manuscritos:

O significado da infidelidade e do Islã é este:
Um é escuridão, o outro, iluminação.
Tens o dom da visão para enxergar as falhas dos outros,
Mas o olho de seu coração é cego a tuas próprias falhas.
Você não deve, ó Mubarak, fazer o mal aos outros,
Mas ser capaz de matar seu próprio mal primeiro!

- Tarjamat al-Bayan ("Clareza de Sentido") em The Ismaili-Sufi Sage of Pamir, Mubarak-i-Wakhani, and the Exoteric Tradition of the Pamiri Muslims, Abdulmamad Iloliev


* * *

Adeus ao Panj - perto de mais um vilarejo, Zong, chegamos ao nascimento do rio, quando ele surge da junção de dois menores, o Wakhan (que segue pelo meio do Corredor de Wakhan, dentro do Afeganistão) e o Pamir, que a partir daqui marca a fronteira tajique-afegã. Estamos agora entrando no "Teto do Mundo", o planalto do leste do Pamir, onde o cenário é dominado por uma vasta área plana com mais de 3.500 metros, cercadas de montanhas ainda mais altas e lagos belíssimos.

Seguimos pela estrada à beira do rio Pamir, até que ela faz uma curva e finalmente se afasta do rio e da fronteira, rumo ao Planalto. Nessa transição, conheceremos a divisão étnica do Pamir, abandonando os povos ismailitas das margens do Panj e do Corredor de Wakhan e encontrando as comunidades de quirguizes que há séculos ocupam as terras altas, mais para o norte. Não seguiremos até a ponta do Corredor de Wakhan tajique - embora pudéssemos continuar mais um pouco por regiões ainda mais remotas e inacessíveis, ainda mais mágicas, até o fim da estrada. E então, ou caminhando, ou com cavalos ou iaques, seguir pelo nada até a fronteira chinesa.

Um dia, quem sabe. Por ora, seguimos para o norte.

Um dos maiores lagos da região do planalto é o Bulunkul. Após nos despedirmos do rio Pamir, a estrada sinuosa de terra nos levou a ele. E ao chegar, tive a impressão de que o tempo parou.

O azul escuro do corpo d'água acompanha o horizonte e as montanhas por 180 graus. O Sol das quatro e meia da tarde se choca contra ele, mas os raios de luz são completamente absorvidos, não há nenhum reflexo. Nem sequer vejo irregularidades na superfície da água que pudessem denunciar o vento, lento, fraco, ameaçando desaparecer.

Paramos o carro e decidimos ver o Bulunkul de perto. Iker e Kim somem atrás de uma colina à beira do lago e, de repente, no meu campo de visão não há uma alma viva. Nenhuma casa, nenhuma iurta, nenhum inseto, nenhum pássaro, nenhum iaque, nenhum camelo, nenhum carro. Tanto, tanto espaço. Um ar que não traz absolutamente nenhum som, tudo está absolutamente parado. Tanto, tanto espaço aqui e, nas grandes cidades que se tornam cada vez maiores e mais comuns, cada vez menos. Lembro-me brevemente de São Paulo na hora do rush, sete da noite no congestionamento infinito e o barulho dos motoboys na janela. Dou uma breve risada para abandonar esses pensamentos. Em um piscar de olhos, abandono qualquer pensamento. E também paro, e me torno vazio.

Após anoitecer no lago, encontramos um vilarejo não muito longe. É onde tentamos achar um restaurante e uma hospedagem.

Eis a vila de Alichur: um conjunto de casas simples, feitas de concreto, longamente separadas uma das outras pela poeira do planalto, circundada por colinas baixas. Um clima de velho oeste americano, de estar em uma região em que os habitantes são todos corajosos pioneiros, teimosos colonos em uma terra absolutamente inóspita. A desolação aumentou ao encontrarmos o vilarejo sem luz elétrica, enfrentando um apagão.

Passamos por três estabelecimentos que serviam comida (chamá-los de restaurante talvez seja muito - eram mais casas de família que tinham refeições). Apenas o terceiro estava aberto. Um frio incômodo, com um vento a soprar e parar constantemente, sensação próxima de zero grau. E estamos no fim do verão.

Ao entrarmos no "restaurante", apenas a luz do pós-anoitecer distante entra pela porta. Logo um gerador é ligado e algumas lâmpadas passam a iluminar nossos rostos. Quase congelado, peço simplesmente um copo de água quente (chá provavelmente me tiraria o sono depois). Em seguida, me trazem um espantosamente bom laghman, o talharim rústico comum em toda a Ásia Central. A massa esquentou minha alma.

Depois os donos do lugar nos conduziram a um quarto logo ao lado do salão onde comemos. Algo simples: tapetes no chão, edredons empilhados num canto, sem camas. Um forno-bujão a lenha já queimando, logo ao lado da porta, esquentando todo o ambiente.

Quase tudo ótimo. O lado ruim, é claro, era o banheiro. Como em quase todos os lugares em que ficamos no Pamir, ele ficava do lado de fora. Para chegar a ele, neste caso tínhamos que sair do quarto (e do calor), dar cinco passos em um corredor escuro e abrir a porta para o lado de fora, frio, gelado, congelante. E à vista, a uns 15 metros de distância, no meio do terreno do vento, iluminada só pela Lua, uma pequena cabine de madeira velha, com uma portinhola sem tranca. Dentro dela, sem teto, um buraco no chão.

Na verdade, a Lua dava à cabine um quê de poético ou mágico - algo como a sensação de que entrar nela conduziria a uma realidade paralela, completamente diferente à depressão de Alichur. Como se a cabine fosse um portal para outro lugar, mais aprazível.

Contudo, foi difícil me ater à poesia enfrentando os quilômetros entre meus edredons e o buraco no chão às duas da manhã, de pijama, ainda convalescente de uma infecção renal e do misterioso sobressalto digestivo de Ishkashim.

Murghab, 2/10, 10h31

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