Wednesday 21 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXIII): Garm Chasma

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior
Clique aqui para ver um mapa com o itinerário da viagem
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem

27/9/2012

Dia tumultuado. Fui acordado à meia-noite por nossos amigos. Iker já vinha sofrendo com problemas intestinais, mas agora estava passando muito mal. Disse que estava com uma dor de cabeça insuportável e muita diarreia. Pediu para voltar para Khorog, pensando que seus sintomas pudessem ser por causa da altitude (Jelondi está a cerca de 3.500 metros de altitude). Eu, como um zumbi de tanto sono, arrumei minha mochila e fui enfrentar com eles a rodovia do Pamir na mais completa escuridão. Obviamente ficamos preocupados com o motorista, coitado, que havia dormido pouquíssimo após 10 horas de volante e chacoalhadas nas montanhas (das 8h às 18h).

No caminho, o susto maior foi causado por um caminhão parado no meio da estrada, provocando uma forte freada. Por alguns segundos, vimos a morte. Mas, mesmo com o susto, não continuei alerta durante o resto de nossa jornada de volta a Khorog. Meus olhos se recusavam a abrir. Em uma hora, talvez mais, chegamos. Fomos conduzidos ao mesmo lugar que ficamos antes, a casa dos parentes de Rozik. Nossas camas ainda não tinham sido ocupadas por ninguém.

Acordamos umas sete horas depois e então saímos para caçar um médico para Iker. O espanhol, eu, Kim e o dono da casa onde pernoitamos, Fayz. Na clínica no centro da cidadezinha, encontramos uma médica falando excelente inglês (cortesia da universidade do Aga Khan em Khorog). E ela explicou a Iker o que me parecia óbvio - seu problema não tinha nada que ver com a altura e sim com micróbios em seu trato intestinal. Receitou alguns remédios. Psicologicamente, acho que ver a médica foi excelente para meu amigo. Tomar remédios é um sinal prático de que você está tentando vencer o seu problema de saúde, o que, no caso dele, estava fazendo da viagem um inferno. Como fez da minha, especialmente em Istaravshan e Dushanbe.


* * *

Minha passagem pelo pequeno mercado de Khorog. Me perco entre as pessoas levando vegetais de lá para cá e, em um canto, acho a barraca de um afegão. Acho que foi a primeira vez que vi um afegão em pessoa. Ele era como os homens nas reportagens sobre o Talibã - barba, chapéu pakol (uma espécie de boina de lã, plana como uma panqueca), nenhum sorriso. Olhos claros, amarelos, uma cor irreal. Também acho que foi a primeira pessoa que encontrei em toda a viagem que não falava sequer uma palavra de russo. Nas cidades cazaques de Taraz e Shymkent, onde também tive problemas para me fazer entender, os jovens, que já não aprendem russo na escola, pelo menos sabem algo da língua - afinal, o cazaque foi fortemente influenciado pelo russo, todos têm familiares que aprenderam russo na escola nos tempos da URSS, todos estão cercados de russos e descendentes que continuam vivendo no sul do Cazaquistão. No caso deste senhor, ele nunca teve um contato com o universo cultural e linguístico dos vizinhos do norte. O Afeganistão nunca fez parte do império russo nem nunca foi tomado pelos soviéticos - estes, bem que tentaram, mas amargaram uma traumática derrota sob os tiros dos mujahedins na guerra dos anos 1980 (1979-1989).

Para reforçar sua ligação com o Afeganistão, o senhor, ainda por cima, vendia pakols. Peguei um à venda e me dirigi a ele em russo. A resposta foi a expressão de incompreensão completa no rosto. Acreditei que ele falava a língua afegã dari, que é muito parecido com persa. Tentei algumas palavras, mas percebi logo que o pouco farsi que aprendi em minha viagem ao Irã já se perdera. Fomos tentando, por mímicas, até que comprei o lindo pakol por 50 somoni (cerca de US$ 6).

Partimos de novo de Khorog às 13h30. Desta vez, em vez de explorar o coração das altas montanhas do Pamir, seguiríamos pela estrada, paralelamente à fronteira afegã, paralelamente ao rio Panj, rumo ao Corredor de Wakhan, o estreito braço de território afegão (parecido com um cabo de panela) que separa um território anteriormente colonizado pelos britânicos, o Paquistão, do território que pertenceu ao Império Russo.

O Corredor é uma relíquia bizarra, e talvez a mais evidente, do "Grande Jogo" geopolítico travado na Ásia Central no século XIX - aquele que levou Stoddart e Conolly a serem executados pelo emir de Bukhara. Naquela época, o Império Russo e o Império Britânico se viram disputando influência na região - influência que, é claro, se traduziria em ganho financeiro, mercados (centro-asiáticos) para as exportações russas e britânicas e fontes (centro-asiáticas) de matéria-prima para as metrópoles. De fato, a disputa do terreno por pouco não se traduziu em uma guerra. Para os britânicos, o grande medo era que os russos chegassem à Índia. Em meio à tensão surgiram lendas: viajantes-espiões que cruzavam do lado dominado pelos russos ao lado dominado pelos britânicos e vice-versa. Assim, logo ficou claro que criar uma barreira entre os territórios dominados pelos britânicos e pelos russos era necessário.

Em um dos mais divertidos romances históricos já escritos sobre o tema, Peter Hopkirk explica o nascimento do Corredor:

Londres tinha concluído um acordo com São Petersburgo que finalmente estabeleceu a fronteira entre a Ásia Central russa e o Afeganistão ocidental. Além disso, o vão do Pamir, que por tanto tempo preocupou estrategistas britânicos, tinha sido fechado. Com a aprovação de Abdur Rahman (emir afegão entre 1880 e 1901) um estreito corredor de terra, anteriormente pertencente a ninguém e se prolongando até a fronteira chinesa, havia se tornado agora território soberano afegão. Embora não mais que 10 milhas (16 km) de largura em alguns trechos - o mais perto que a Grã-Bretanha e a Rússia haviam até então chegado de se encontrar na Ásia Central - este corredor garantiu que em nenhum lugar suas fronteiras de fato se tocassem. Reconhecidamente, ele deixou os russos com a posse da maior parte da região do Pamir. Mas os britânicos estavam cientes de que, se São Petersburgo decidisse anexar a área, eles seriam virtualmente incapazes de evitá-lo.
- The Great Game, The Struggle for Empire in Central Asia, Peter Hopkirk

Lhe falta a Hopkirk um pouco de precisão, contudo. O Corredor afegão, na verdade, chega a ter apenas 13 km entre os pontos mais próximos das fronteiras tajique e paquistanesa. De comprimento, tem 350 km, e só termina quando de fato encontra a China em uma divisa curta e sem nenhum posto de fronteira. Todo o Corredor está, sem a menor sombra de dúvida, entre os terrenos de mais difícil acesso em todo o mundo. Não só não há estradas de verdade, a não ser a pela qual viajamos do lado tajique da fronteira, como também o terreno é todo tomado por montanhas altíssimas e esparsamente povoado. Nos últimos anos, a fama de guardar extremistas do Talibã e plantações ilegais de papoula afastou ainda mais os visitantes. Entretanto, o local tem grande potencial turístico. Além de belíssimo, provavelmente teve importância histórica como parte da Rota da Seda, e há estudiosos que acreditam que foi por ele que Marco Polo fez a travessia para a China no século XI.

Seguindo para o corredor, voltamos a ter uma boa visão de vilarejos afegãos perdidos do outro lado do Panj, nosso companheiro constante à direita da estrada. As casinhas de barro simples, burros e altos montes de feno. À distância, os montes parecem pequenas pirâmides, anexos estranhos às casas, como torres de castelos.

Desta vez, a jornada foi curta. Às 15h, chegamos ao sanatorium de Garm Chasma, um complexo hoteleiro ao lado de uma fonte natural de água sulfurosa. Novamente, uma visão irreal. O carro se aproxima do complexo e logo se vê uma formação geológica multicolorida, na certa criada pelo acúmulo de minérios e enxofre expelidos pela fonte termal. Lembra uma grande colmeia, mas seu tamanho, com uns três metros da altura, não deixa que se acredite facilmente que se trata de um trabalho da natureza.

O forte cheiro de ovo podre toma o ar juntamente com a névoa quente, saindo da colmeia. Na entrada da fonte, uma placa estabelece horários alternados para que homens e mulheres possam se banhar. Percebemos que o último horário para o banho masculino já havia passado. Ficamos de provar o banho de ovo podre no dia seguinte, de manhãzinha.

Faço um passeio pelo vilarejo ao redor da fonte, um lugar muito pobre, com casinhas muito simples, todas as ruas de terra, todos os moradores, trabalhadores do campo. Passando por algumas casas, cheguei perto, finalmente, das pirâmides de feno que vi à distância no lado afegão. São alimentadas por mulheres com roupas coloridíssimas que cruzam as ruas de terra como formigas, carregando com velocidade imensos fardos de palha nas costas. Há muitas crianças brincando na rua, muitas cabras, poucos carros.

Na volta para o hotel, já escurecendo, temperatura baixando, jantar simples - um prato com arroz, uma espécie de hambúrguer e salada de tomate e pepino. Caiu muito bem. Na cama, dois edredons. Seguramente menos de dez graus durante a madrugada.

Garm Chasma, 28/9, 6h52

Clique aqui para ler o próximo capítulo





.

No comments:

Post a Comment