Sunday 25 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXIV): Ishkashim

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28/9/2012

Deitamos à sombra numa cama de madeira, ao ar livre, eu, meus companheiros de viagem e nosso motorista. Ao nosso redor, um pequeno paraíso. Mais um, como o de Lutfollah em Shakhrisabz, como tantos outros. A Ásia Central é uma sucessão de pequenos paraísos secretos.

A sombra é de macieiras completamente carregadas, com frutos tão vermelhos que pareciam ter sidos pintados à mão. Nosso anfitrião preparou bem o nosso cantinho. Cobriu a cama com cobertores e edredons macios, encomendou o horizonte aberto, o Sol amistoso, a vista para um pico nevado quilômetros à frente, além do vale e da plantação de batatas. Na plantação, logo embaixo de onde deitamos, uma mulher com seu lenço colorido na cabeça labuta, sua profusamente, cava com força o chão duro. Mais perto de nossa cama, vejo vários sacos de pano surrados com pelo menos dez quilos de batatas.

"Temos que nos preparar agora para o inverno", diz nosso anfitrião, um policial que trabalha em Dushanbe e está de folga, visitando familiares. Em seu olhar, algo de culpa, culpa talvez de ter que ser tão duro em seu trabalho no dia a dia, duro com os servos do ditador na capital. E, ao mesmo tempo, algo de doçura, a doçura que aflora com naturalidade ao reencontrar este paraíso, o sítio que agora compartilha conosco.

Bigode bonachão, sorriso permanente. Disse que só visitava sua família no Pamir uma vez por ano. Tivemos muita sorte de encontrá-lo na saída de Garm Chasma, pedindo carona. Nós aceitamos fazer um pequeno desvio e levá-lo de lá até o sítio, onde mora de forma permanente um de seus irmão. A propriedade fica perto da estrada principal, a que segue à beira do rio Panj, já quase chegando ao nosso destino de hoje, Ishkashim. Como é tradição por aqui, como pagamento pela carona, ele ofereceu sua hospitalidade. Aceitamos, curiosos.

A hospitalidade no Pamir é lendária.

Antes que a comida chegasse à cama - ele insistiu que almoçássemos com ele -, o policial bonachão nos levou para conhecer a propriedade. Reforçou que o paraíso era igualmente dele e de seu irmão. Falador, detalhou seu planos para o futuro. "Aqui, nesta área do terreno, quero construir mais uma casa, mas essa nova, só para relaxar." Contudo, ressaltou que não tem planos de voltar de vez para o Pamir. "Minha mulher, meus filhos estão todos em Dushanbe. Minha vida é lá." Nisso, sorri com nostalgia. "Mas, quando me aposentar, em dois anos, vou vir mais vezes para cá." Senti seu coração dividido. Se tivesse a liberdade da juventude, poderia seguir seu coração.

Nos levou para o interior das casas da propriedade, onde moram, além do irmão, os filhos do irmão e suas esposas, a extensa família toda dividindo o mesmo vasto terreno. Em uma das casas, na parte alta, encontramos uma sala coberta com edredons coloridos com cores absolutamente berrantes, lindas, com muito vermelho vivo, exalando um calor que deve ser um consolo nos meses de frio. Que vontade de deitar e rolar nesse macio colorido e fazer bagunça, como um filhotinho de cachorro.

Na casa principal, numa parte inferior do terreno, um exemplo da arquitetura interna típica pamir. A sala tem um palco, ou seja, dois níveis. O mais baixo, quadrado e com uma ligação com a cozinha, guarda um sofá. Ao redor desse quadrado, um segundo nível, mais alto, tem carpetes onde as pessoas se sentam para comer. No centro da sala, logo acima do sofá, a fonte de luz natural: uma claraboia singular. Toda casa por aqui parece ter uma claraboia assim. São quatro quadrados concêntricos - um grande, dentro um menor, dentro outro menor e por fim um último, que dá acesso à luz exterior. Os quadrados se interpõe com os seus vértices coincidindo com o ponto médio de cada lado do quadrado maior anterior, criando assim uma mandala de triângulos retos. Explicam-me que os quatro quadrados representam os elementos - terra, água, ar e fogo.

Nas paredes, um grande calendário islâmico, fotos da família, uma foto do Aga Khan e sua esposa. Na estante, o detalhe mais interessante - um pequeno busto de Lênin. Perguntei ao bonachão por que ainda tinha aquilo, 20 anos depois do fim do sonho. Abriu um sorriso largo. "Lênin é nosso amigo", afirmou. "Lênin, Stálin, Marx e Engels são como quatro irmãos para nós." Perguntei se ele achava que nos tempos da URSS ele e sua família viviam melhor que agora. "Eram tempos diferentes. Era bom, como agora também é bom. Agora podemos viajar, conhecer outros países, mas trabalhamos muito também."

O irmão, morador da casa principal, logo apareceu para tomar vodka conosco. Me falou com grande orgulho do que, disse, foi um dos maiores momentos de sua vida. "Sou professor de russo. E, em 1980, o governo me deu uma passagem para ir a Moscou, ver a Olimpíada. Naquela época, os trabalhadores mais esforçados recebiam recompensas. Fui a Moscou só para passear."

A conversa é interrompida pelo bonachão, que nos chama para testemunhar um ritual de milênios - a degola da cabra que será usada para fazer nosso almoço. Um sacrifício especialmente para a ocasião, para alimentar os visitantes. Me desculpei por preferir não assistir o espetáculo de sangue. Optei por ficar na sala, conversando, tirando fotos da decoração.

Hora depois, estamos de volta à cama no jardim, agora tomada por todo tipo de delícia - maçãs, frutas secas, salgadinhos industrializados, suco, vinho, vodka, cerveja, refrigerante, kumiz, geleia, manteiga, queijo, pão (muito, muito pão), enfim, tudo o que eles tinham em casa. Não demora muito e chega o prato principal - batatas e cebolas, cebolinha e carne em cubos, tudo junto, cozido, um grande ensopado. A carne é a mesma que estava pouco antes berrando no terreno. Nunca antes isso ficara na minha cabeça, mas desta vez, não saía. Mesmo enquanto mordia com fome a carne, dura, mas muito saborosa.

Mais uma hora se passou e começamos a insistir que precisávamos seguir viagem. Após pelo menos dez tentativas de partir - às quais o anfitrião respondia sempre com pedidos de mais brindes com chá, kumiz, cerveja e vodka -, finalmente conseguimos convencê-lo a nos deixar ir. Mas, antes, as últimas fotos: desta vez, reunimos a numerosa família do bonachão na sala de estar, sob o olhar do pequeno amigo Lênin. Todos, incluindo até as sapecas crianças, que surgiram sei lá de onde, estavam escondidas até então.

Mais fotos de nós com os irmãos e as macieiras carregadas. Fotos de mim juntamente com o bonachão e Iker.

Sem foto, agarro uma maçã para a viagem.

Na despedida derradeira e definitiva, quase beijei o rosto do meu anfitrião. Deveria ter beijado.


* * *

Nos arredores de Ishkashim há um pequeno e misterioso santuário.

Perguntamos a agricultores locais que passavam pela estrada onde ele ficava (estava indicado em nosso livro-guia) e um deles apontou o lugar, mais adiante. Paramos o carro e fomos a pé. Em um muro à beira do caminho, protegido por árvores, encontramos uma porta de madeira. Logo acima dela, alguém havia colocado vários chifres de bodes selvagens ou carneiros-de-Marco-Polo. Os chifres, como uma coroa. O que significa isto?

A porta estava aberta. Entramos.

Atrás da porta, encontramos um pátio e uma pequena edificação, uma casinha, com um portal. Um portal de madeira, com colunas sustentando o teto avançado do pequeno templo, colunas todas esculpidas em madeira.

Nenhuma inscrição, nenhuma placa. Em cima do portal, uma cabeça inteira de carneiro-de-Marco-Polo, uma cabeça escurecida, parecia mumificada.

Sua superfície escura, os olhos brancos, provavelmente pedras, lhe davam um ar soturno e sugeriam perigo a quem se atrevesse a atravessar o portal. Algo como o Egito antigo. A imagem de um deus-bode protegendo a tumba do faraó. Eu, Howard Carter.

Atravessando o portal do "templo do bode", por fim, encontrei uma segunda porta de madeira. Logo acima da porta, o retrato de um homem barbado. Novamente a porta estava aberta, apenas encostada. Entrei.

Encontro uma câmara pequena, talvez três metros quadrados de área. No teto de madeira, a claraboia típica do Pamir, os quadrados, um dentro do outro. Uma janela em uma parede. No chão, um estranho cubo de concreto, branco, com altura até cerca de minha cintura. Em cima dele, meias-esferas de pedra enterradas nos quatro vértices do cubo, duas grossas fendas na pedra para colocar velas ou incenso e, no meio, mais chifres de bode, empilhados de forma desordenada.

Apesar da associação ocidental imediata de chifres com Satã, não há nenhum demônio associado a este pequeno santuário. Reza a tradição que, neste local, neste cubo, estaria sepultado o primeiro Imã dos xiitas, Ali. Trata-se de uma lenda pouco conhecida entre as inúmeras lendas sobre o local de enterro do Imã. A mais conhecida diz que seu corpo está em Najaf, no Iraque. Há os que digam que está em Mazar-i-Sharif, no Afeganistão, perto da fronteira uzbeque, não muito longe daqui.

Mas poderia Ali estar, na verdade, sepultado na longínqua Ishkashim? Estariam os milhares de xiitas que fazem peregrinações a Najaf sendo enganados? Difícil vê-los fazendo a mesma peregrinação, que fazem hoje ao Iraque, a este canto do isolado Pamir, para expressar sua dor.

O local, em realidade, não parece em nada islâmico. Não há inscrições, por exemplo. O único sinal de Ali é o seu retrato (o do homem barbado, que vi em cima da segunda porta). Tudo é muito simples. Mas talvez fosse justamente isso, e não a reverência em Najaf, que um homem santo como Ali iria preferir.

O uso da cabeça de bode e dos chifres liga este pequeno santuário a ancestrais tradições da cultura local, muito anteriores à chegada do Islã. Fés que envolvem a adoração da natureza. Há os que digam que os chifres são para a proteção contra o mal, como carrancas. Outros, que é para atrair saúde (dado o vigor do animal). Associar estes símbolos a Ali é a manifestação clara do sincretismo centro-asiático, de como o Islã, ao chegar tarde a esta região, encontrou já desenvolvido todo um simbolismo e se adaptou a ele.

E, ainda assim, este santuário é sim islâmico, um representante de um Islã natural, o que se vê refletido nas tradições e na cultura dos fieis. Lembro de minha visita aos mazars de Sayram, no Cazaquistão, e as conversas com Rustem.

Com medo de perturbar o sono dos carneiros decapitados, tiramos nossas fotos em silêncio. Fizemos questão de verificar se as portas estavam bem fechadas ao sair. Não trancadas. Esperando o próximo visitante com seu mistério acolhedor.


* * *

Ao lado do rio Panj e sob a guarda dos picos nevados e imponentes, uma fortaleza com 24 séculos de idade ainda resiste.

A fortaleza de Khaakha data dos tempos do império kuchano - o mesmo responsável pelo Buda deitado do museu em Dushanbe -, do século 3 depois de Cristo. Construída sobre uma elevação natural, ainda apresenta torres e muralhas impressionantemente preservadas em se tratando de algo tão velho. Evidente que devem ter sido reconstruídas e reformadas posteriormente.

Historiadores acreditam que a fortaleza certa vez foi ocupada por um obscuro grupo de guerreiros zoroastristas conhecido por se vestir inteiramente de negro e que atuavam a serviço de um líder local.

Lindo e imenso. Perdi-me no labirinto de pedras sem nenhuma inscrição, nenhum guarda ou supervisor, como em Sauran. Fiz uma longa caminhada nos altos e baixos da construção, altos e baixos ausentes nas cidades perdidas da Rota da Seda que visitei no deserto cazaque. Em cada parada para recuperar o fôlego, o ar frio castigava meu nariz e minha a boca. Na minha frente, o rio Panj, cinzento, no seu caminho para as montanhas nevadas no horizonte (veja o vídeo abaixo).



Seguindo uma trilha mal marcada nas pedras e na argila, cheguei finalmente à água do rio. Molhei minha mão e meu pé. Puro degelo marcando a fronteira tajique-afegã. Na outra margem, tão perto, quiçá 30 metros, só algumas braçadas, o país proibido, o país do perigo constante. Parei mais uma vez para olhá-lo. Sem vida, sem homens ou animais. Só vejo o movimento das corredeiras na sua fronteira, depois, morte. Um dia irei visitá-lo, descobrir sua vida.

Por ora, com a mão molhada, saio para reencontrar meus amigos e fazer mais fotos. Já os vejo na estrada. Ao lado deles, passa um pastor com cabras. São seis da tarde, a luz é incrível, uma luz dourada, intensa. As cores da paisagem parecem todas mais fortes.

Saudamos o pastor com sua boina e seu cajado. Saudamos seu sorriso, seu convite para tomar chá em sua casinha. O Sol em seus olhos quase fechados pelo brilho. O Sol em suas rugas, em todo seu rosto.

Ishkashim, 28/9, 21h30

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