Sunday 18 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXII): Jelondi

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26/9/2012

O Pamir é ao mesmo tempo fértil e estéril, ao mesmo tempo habitável e desolado, ao mesmo tempo sorridente e repulsivo, de acordo com o ponto de vista de onde ele é observado. Ele está entre os paradoxos intencionais da natureza.
- The Pamirs and the Source of the Oxus, George Curzon, 1896

A 4.200 metros de altitude, as montanhas, mesmo as mais distantes, parecem mais próximas. O ar vem sob o efeito da neve nos picos, às vezes dolorosamente gelado como os glaciares eternos nas alturas, às vezes apenas frio e tolerável, refletindo o degelo do verão.

O carro sacode em uma estrada mal marcada, praticamente inexistente. Nenhuma casa. Dos dois lados, tudo quase plano - um ligeiro declive do meu lado esquerdo. Vejo pela janela dezenas de ovelhas pastando. Além das ovelhas, além do declive, as montanhas nevadas, perto e longe. E mais além ainda, picos fabulosos. O motorista me fala que são os picos Karl Marx (6.723 metros) e Engels (6.507).

Paramos o carro para olhar ao redor. De repente, surgem entre as ovelhas três cachorros. Um deles, muito tímido e mais velho, quase não chegou perto. Outro chegou, mas ficou só olhando, desconfiado. O terceiro, um castanho, se jogou sobre nós, querendo cafunés.

Chega o pastor, o dono dos cães e das ovelhas. Cajado, olhos profundos, pele vermelha e negra, curtida até o limite pela secura imensa deste planalto, pelo frio imenso, pela altitude, pelo ar rarefeito. Quieto, com roupas ocidentais, jaqueta, boné, sujo, coberto de poeira, quiçá uma película protetora, uma armadura. Talvez 60 anos, o que parece, provavelmente pouco mais do que 40.

Sem sorrisos. Aproxima-se, saúda. Fala baixo, lento, russo com pouca fluência. Perguntamos e aponta o caminho para Jelondi. Agradecemos dando-lhe o que pede, cigarros, pelos quais também agradece. Calmamente, se afasta. Os cães o seguem. Afastam-se no meio do nada. Para onde? Nenhum lugar. Estamos no meio de lugar nenhum.

Tresmalha-se no nada com seus cachorros, suas ovelhas, seu mundo tão, tão distante de mim, dos meus companheiros, de qualquer fronteira, de qualquer país.

A 4.200 metros, algumas pessoas sentem rapidamente os efeitos da altitude. Entendo que isso varia de organismo para organismo - uns mais, uns menos, uns hoje, uns amanhã, uns nunca. Iker e Kim sentem um pouco de dor de cabeça, além do desconforto intestinal que já vinha de antes. Estou ótimo. Um pouco enjoado, mas sentar atrás em um carro em estradas-terremoto costuma ter esse efeito em mim, mesmo à beira do mar.

Seguimos explorando o chamado vale de Shokh Dara, um dos principais da região oeste do Planalto de Pamir. O caminho tem pedras, alguns riachos formados por degelo, vegetação rasteira que parece esponja de aço e vento. Nada mais que isso. Nosso guia/motorista jurou que conhecia bem as redondezas, mostramos a ele no mapa o que queríamos ver. Mas a estrada é tão pouco usada e tão tênue que logo achamos estar perdidos. Não... está confirmado. Estamos perdidos. Não tem como não estarmos perdidos.

O motorista parece tenso.

Paramos mais uma vez, em um trecho de suave declive. Baixamos um pouco, estamos a 3.800 metros. Apesar do Sol, a temperatura está em 8 graus, sem contar o efeito do vento. Aqui, nem ovelhas, nem cães, nem aves. Pedras, vegetação de altitude e, a uns 300 metros de nós, o que parece ser uma casa feita de pedras, mas sem telhado, com um muro na frente, quase desabando. Às vezes o vento para. Nesse caso, o silêncio só posso ser o mesmo do de um planeta rochoso sem formas de vida. Marte, Mercúrio.

Surgem então mais extraterrestres. Um velho e sua mulher. O velho com a barba branca curta e a mesma pele do pastor que encontramos antes, dolorosamente queimada, vermelha enegrecida, um couro com rugas profundas como vales. Parece quase sem forças, se aguentando de pé porque não há outra opção para sobreviver. A mulher, mais jovem, olhos puxados e pele menos castigada, com as roupas coloridas das mulheres centro-asiáticas. Um sorriso lindo o dela, sincero, mas também extremamente cansado, beirando a exaustão. Suas rugas me dão a impressão de que ela deve ter uns 50 anos. Se a idade que lhe dou é uma ilusão causada pelo meio ambiente hostil e pelo cansaço, talvez até seja filha do velho. Por perto, nada de gado, nem de plantações (nas montanhas do Pamir não há agricultura, não há planta que aguente este chão, este clima).

De onde vieram essas pessoas? O que fazem aqui? Como sobrevivem? Tudo me pareceu meio inconcebível, meio irreal. O velho, caso tenha gado perdido pelo altiplano, teria energia para ir correndo atrás de reses perdidas? Falam russo muito mal, pouco posso entender. Não me atrevo a fazer perguntas. O motorista fala com eles e depois me confirma que viviam mesmo do gado, o gado invisível.

O motorista pede a eles que nos indique o caminho correto para Jelondi, como fizera antes ao encontrar o outro extraterrestre. É naquela direção, só seguir (apesar de não haver estrada visível). Agradecemos. E, antes de partirmos, eles nos convidam para o chá, querem que entremos na casa feita de pedras e sem teto. Agradecemos efusivamente, mas recusamos. O velho e a mulher sorriem de novo. Essas pessoas, tão pobres, provavelmente passando fome, quiseram dividir conosco o pouco que têm.

As neves nunca chegam a descongelar completamente por aqui, nem no verão. O que seria então este lugar no auge do inverno? O carro segue e estamos agora contra o Sol. O Sol é uma explosão branca, a altitude lhe dá mais força.

Cruzamos com um par de iaques. Nunca havia visto iaques, essa estranha criatura, um bovino com chifres aterrorizantes e um pelo longo e em várias camadas, conhecido por ser uma das criaturas mais adaptadas a esta desolação. Alguns são maiores do que o maior touro. Os dois não ligam para nós, pastam, apenas pastam.

O caminho quase invisível nos conduz à beira de um rio, embaixo de um forte abandonado. No Pamir há vários fortes e fortalezas, ruínas perdidas cuja história nem mesmo os locais conhecem direito. Mas todos lembram do comunismo. O legado soviético é evidente por causa de um único detalhe - eletricidade. Por toda parte há torres de transmissão. Lembro da obsessão soviética com eletrificação rural. Poucas coisas têm tanto sentido de civilização quando a luz elétrica.

Aqui, a cor do terreno mudou. Tudo no chão é marrom-alaranjado, cor de terra, até mesmo os arbustos rasteiros. Realmente, lembra Marte. Em algum lugar deste planeta vermelho fica Jelondi. Vamos em frente.


* * *

Mais cedo, passamos pelo povoado de Roshtkhala, no fundo do vale de Shokh Dara, não muito distante de nosso ponto de partida em Khorog e antes de entrarmos na estrada perdida pelas altas montanhas do Pamir.

Em Roshtkhala encontramos a primeira fortaleza do dia, pequena, com passado obscuro, no alto de uma colina. Mal conservada, hoje é apenas palco de brincadeiras das crianças. Ela dá nome ao lugar (Roshtkhala significa "fortaleza vermelha").

Encontramos uma família morando ao pé da fortaleza em uma casinha bem humilde. Se para os que vivem mais para o alto a agricultura não é uma opção viável, aqui o solo não é tão pobre e permite um plantar alguma coisa. Acompanhamos um pouco da rotina da família. Irmã mais velha, irmã mais nova e irmão pequeno, respectivamente uns 17, 12 e 10 anos, vasculham o solo para colher batatas. O irmãozinho usa uma pá, cava, as meninas enfiam as mãos na terra e colocam as batatas que encontram num balde.

Ao lado, o pai, com uma vaca e um arado. A vaca puxa o arado, abrindo sulcos na terra. Numa estrada ao lado da família, pastores passam tocando suas ovelhas. Como o gado levanta muita poeira, os pastores cobrem o rosto com panos, deixando apenas os olhos de fora. Passam por nós, olhos expressivos, curiosos. Colocam a mão direita no peito para nos saudar, como é costume por aqui.

As duas meninas da família das batatas, lindíssimas, poderiam ser modelos em outro mundo. Todos juntos, o pai, o garotinho e elas, posam para nossas fotos. Sorriem.

Não acho que lamentam viver na pobreza. Provavelmente não conhecem outra existência. Parecem felizes e tranquilos. E encontrá-los nos fez todos mais felizes, mais tranquilos.


* * *

Em Jelondi, passamos a noite em um balneário, um hotel com piscinas aquecidas, chuveiros, um restaurante e camas para passar a noite. Um estabelecimento para relaxar muito comum na antiga União Soviética, chamado em russo de sanatorium.

Em um lugar remoto como este, é um paraíso. Depois de horas perdidos no altiplano, no anoitecer encontramos a rodovia do Pamir, o principal referencial da região. O sanatorium estava à beira da estrada. Estacionamos o carro e puxamos os capuzes das jaquetas para enfrentar o vento cortante até a entrada do lugar - do lado de fora, parecia apenas uma casa bem grande, com um só andar.

Entrar naquele ambiente quente e úmido foi um grande prazer. Quartos coletivos nos esperavam. Tudo muito simples - cama, cobertor, travesseiro, lençóis limpos, um prato de feijão com macarrão bem quente, chá preto para acompanhar. Algum conforto. Enquanto meu peito se aquece mais tarde sob as cobertas, penso no primeiro pastor que encontramos, aquele a quem demos cigarros. No casal que encontramos depois, o velhinho de barba branca e a mulher, sorridentes, mas exauridos. Penso na família das batatas, nas meninas lindas. Aparições no meio do nada. Como estarão passando a noite?

Jelondi, 26/9, 21h

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