Wednesday 14 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXI): Khorog

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25/9/2012

Fim do verão. São 11 horas, o Sol está forte, mas o ar é fresco. Uma suave brisa passa entre as árvores em direção ao vale, com a cidade, lá embaixo. Estou em um pequeno mirante nesta terra estranha de montanhas peladas.

Aqui no alto, afastado do resto da Khorog, vivem cerca de 2 mil espécies diferentes de plantas. É o jardim botânico da cidade. Tudo está colorido, há flores de todas as formas, um aroma doce no ar. As árvores, carregadas de frutas. Encontro uma macieira cheia de suculentos vermelhos, tentadores vermelhos. Foram maçãs assim que geraram o pecado original. Sinto um desejo louco de afundar meus dentes nessas tentações, mas não quero correr o risco de ser expulso, caso seja proibido.

A associação com o Éden me leva rapidamente para outro lugar, na minha cabeça. Shangri-Lá, a cidade tibetana oculta do livro Horizonte Perdido, de James Hilton (1933). O lugar mais secreto dentre os locais secretos. O mais mágico. Uma cidade em um vale em que o isolamento traz harmonia, felicidade, imortalidade aos nativos.

E na Shangri-Lá Khorog, o jardim botânico é um tesouro. Um local tranquilo, quieto, colorido, perfumado. Perfeito para horas de contemplação. Me sento e ouço o farfalhar das folhagens. Em apenas uma árvore, adiantada, anuncia-se a nova estação se aproximando. Está toda amarela.

Eu e meus companheiros de viagem cortamos o barulho das folhagens e da brisa com risadas. Rimos tirando fotos, com os olhos semifechados por causa do clarão do Sol, mostrando o resultado dos cliques uns aos outros, fechando a jaqueta para conter a entrada do frescor. Nossa, quanta foto bonita. Impossível tirar uma só.

A vista também é muito bonita. Khorog (veja o vídeo abaixo), a uma altitude de 2.123 metros, fica protegida pelos paredões de pedra que foram se apresentando durante toda a odisseia que foi a jornada desde Dushanbe. E, serpenteando por ela, um rio esmeralda, como espinha dorsal, e álamos, esticados, como golpes de pincel em uma tela. Seu parque principal, lá embaixo, perto do meu hotel, é uma assembleia de álamos. Tantos juntos, não lembro de ter visto antes.



Nos despedimos do alto paraíso para voltar a Khorog. Pegamos uma carona que tivemos sorte de encontrar. Os locais são simpáticos conosco. Doces, atenciosos. Muitos falam inglês. No carro, conhecemos um jovem que diz trabalhar para uma empresa de telefonia e uma moça que trabalha com ele. Os dois estavam vestidos como muitas pessoas que trabalham se vestem no Brasil - o homem, de gravata e roupa social, a mulher, com saia e blusa com um decote discreto. Falavam inglês excelente e nos levaram exatamente onde queríamos ir, a avenida principal da cidade, perto do parque dos álamos. Sorrisos e uma sensação de que eles estavam felizes de nos ver - de que estavam felizes de ver novamente visitantes por aqui.

Penso como é surreal que, há meros três meses, pessoas morreram baleadas em um confronto armado pelas ruas de Khorog. Nestas mesmas ruas tranquilas, habitadas por gente calma e hospitaleira. Tudo está na mais completa paz. Paz até demais. Fico pensando se estamos apenas arranhando a superfície.

Depois fica claro que sim. Há algo sinistro, além das amenidades.

Na cidade, finalmente, encontramos o motorista particular que vai nos levar pelo resto do Pamir. Um sujeito jovem, baixinho, fala rápida. Converso com ele, ele diz que é quirguiz e que sua família é do norte, de Murghab, para onde vamos. Fluente em russo, quirguiz e tajique, mas não fala uma palavra de inglês e fica aliviado em saber que eu falo algo de russo. Ficamos no meio-fio, em frente ao mercado, perto do parque, na avenida principal. Eu, Iker, Kim e ele, combinando os próximos passos. Sairemos no dia seguinte, bem cedo. Tudo certo.

Eis que surge um amigo do motorista.

O amigo o cumprimenta. Pergunta a ele, sério, em russo, quem somos. Apesar de eu estar do lado do motorista, não me saúda. Ao descobrir que somos estrangeiros, reage de uma forma muito estranha. Ele fala para o motorista, dando risadinhas, algo que não consigo entender - não acho que era russo. Em seguida, aparentemente em uma piada para o amigo, com a mão esquerda fazendo um gesto imitando um revólver, encosta o indicador na minha testa. Flexiona o polegar. Fala "bang". Dá uma risadinha final, olhando para o motorista, fala mais algo que não entendo. O motorista só olha e não fala nada. O observamos atravessar a rua e se afastar, em silêncio. Surgiu e desapareceu como se nunca tivesse existido, sem ter me dirigido a palavra.

O motorista não conseguiu explicar o que aquilo significava, ou eu não consegui entender a explicação dele. Mas parecia evidente que o homem havia dito que estávamos em risco. Onde? Por quê? Pura piada do homem? Muitas teorias, muitas respostas possíveis.

De noite, no hotel, eu, Kim e Iker voltamos a analisar os moradores de Khorog.

Kim havia voltado de comprar cigarros. "A atmosfera está pesada", disse. No mercado, encontrou olhares desconfiados em sua direção, risadas pelo canto das bocas. Desconhecidos, na rua, lhe pediram cigarros. Estavam bêbados. Perambulavam sem destino, cambaleantes, falando alto. Kim voltou o mais rápido que conseguiu para o hotel.

"Este lugar, tem algo muito errado por aqui. A tensão ainda não acabou", disse o singapurense, veterano de viagens por lugares machucados da Ásia.

Detalhes, impressões, sensações. Coisas para coçar a cabeça.


* * *

Este lugar deve muito ao Aga Khan. Trata-se de uma peculiaridade do Pamir.

No Brasil, poucos sequer ouviram falar no Aga Khan. Trata-se do líder de um dos inúmeros braços da religião muçulmana, o ismailismo Nizari. Trata-se de uma corrente do Islã xiita - ou seja, eles acreditam numa cadeia de sucessores místicos de Maomé, entre os quais o genro e primo do Profeta, Ali - para eles, o primeiro Imã (sucessor de Maomé). No entanto, diferentemente daqueles que compartilham da visão majoritária entre os xiitas, de que existem 12 imãs, os ismailitas nizari discordaram sobre quem deveria ser o sétimo Imã e, a partir daí, seguiram uma corrente separada de líderes espirituais. Dentro do ismailismo, existem por sua vez outras correntes. Os nizaris têm como líder o Aga Khan IV, o príncipe Shah Karim Al-Hussaini, o 49º da linha sucessória de Imãs dos ismailitas. Nascido na Suíça em 1936, milionário, ele é um empresário que se dedica a causas beneficentes e ao fortalecimento das instituições ismailitas em todo o mundo, para benefício dos seus estimados 15 milhões de seguidores.

Como o ismailismo passou a ser a religião predominante no Pamir é uma história interessante. Na Ásia Central inteira, a maioria dos muçulmanos segue a corrente sunita do Islã. Mas não aqui.

Durante a história da religião muçulmana, visões dominantes da fé foram empurrando outras para longe por meio de matanças e perseguições, da mesma forma que empurravam outras religiões. Os zoroastristas, por exemplo, que têm seu berço espiritual na Pérsia e no Afeganistão, foram praticamente eliminados nessas regiões (ainda restam muitos no Irã, mas nada comparado com o que eram no passado) e acabaram se fixando na Índia, onde encontraram um berço de tolerância e proliferaram (lá, são chamados de parsis). No caso dos ismailitas, missionários se tornaram especialmente influentes durante a dinastia persa samânida (a de Ismail Samani, nos séculos IX-X) a ponto de um dos emires ter, acredita-se, chegado a se converter. Há estudiosos inclusive que dizem que algumas das grandes mentes daquele tempo, como Avicena (980-1037) e Al-Biruni (973-1048), teriam sido ou ismailitas ou influenciados pelo ismailismo.

Posteriormente, a queda dos samânidas foi sucedida por impérios com o fanatismo sunita, como o dos gaznévidas (962-1189) e o dos seljúcidas (1034-1300), que perseguiram os ismailitas, forçando-os a se estabelecerem nos confins do império, em regiões isoladas, como o Pamir. Nessa época, um dos mais importantes intelectuais ismailitas, Nazir Khusraw (1004-1088), autor de um importante livro de viagens pelo mundo islâmico chamado Safarnama, se estabeleceu por aqui. Um líder local, que havia se convertido, ajudou em seus esforços proselitistas e firmou as montanhas como um bastião e um refúgio para os seguidores da vertente xiita. O fato de eles terem sobrevivido aos séculos com certeza se deve ao isolamento, mesmo durante os anos soviéticos.

O Aga Khan investiu milhões de dólares em projetos para beneficiar seus fiéis centro-asiáticos por meio de sua ONG, a Rede de Desenvolvimento Aga Khan (Aga Khan Development Network). Uma universidade e o parque do centro de Khorog, por exemplo, são atribuídos a ele. Não é de se estranhar que o Khan e o presidente tajique travem uma guerra silenciosa pelo poder em Gorno-Badakhstan. Mas, enquanto Rakhmon é quase esquecido em Khorog, o Aga Khan está em cada canto, nas conversas, com as pessoas mostrando gratidão pelos investimentos e carinho pelo líder toda vez que o mencionam.

Por outro lado, a presença do poder "oficial" de Dushanbe se dá principalmente pelos antipáticos soldados nas ruas e pelos igualmente antipáticos cartazes com a face do presidente, ainda assim menos numerosos do que vi no norte do país ou na capital. Algo imposto. Algo que os locais parecem querer esquecer.


* * *

De pijama, escovando os dentes, troco lamentos com Kim e Iker, todos falando sobre nossos probleminhas de saúde. Os dois enfrentam uma diarreia, especialmente o espanhol. Eu, por outro lado, finalmente me libertei de minha prisão de ventre, depois de tomar um laxativo. Parece ser impossível ter uma longa viagem com mochila e pouco dinheiro pela Ásia sem enfrentar, em algum momento, algum mal digestivo. Mas estou bem, tranquilo, empolgado, respirando o ar puro do paraíso, a caminho de outros paraísos no teto do mundo.

Khorog, 25/9, 22h17

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