Sunday 26 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (X)

O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
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Este post faz descrições da região do Vale de Fergana (leste do Uzbequistão) em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Vale de Fergana, 12/06/2003

Durante o dia me veio à cabeça que foi Dia dos Namorados no Brasil. Que estamos na época das Festas Juninas, e lembrei de como era gostoso tomar um quentão no frio, à beira de uma fogueira. Mas isso tudo é a oito horas de fuso horário, milhares e milhares de quilômetros daqui, do outro lado do planeta. Meu passado está a uma distância inalcançável deste mundo chamado Vale de Fergana.

Peguei um ônibus de Samarkand, passei a noite em Tashkent e hoje, às sete da manhã, estava degustando um saco de cerejas docinhas em um movimentado bazar em algum ponto da capital uzbeque. É o local, o único, de onde partem táxis compartilhados e lotações para o Vale, lar de um terço da população de todo o Uzbequistão. Como, em nome de Alá, não existe nenhuma linha de ônibus regular para as cidades do Vale? Cansado após dias digladiando com palavras russas espalhadas na cabeça, divaguei longamente em bom português de São Paulo, enquanto esperava que o motorista do táxi, usando seu dom de lábia, convencesse outros passageiros a embarcar no nosso carro para Margilan, cidadezinha a sete mil sums (cerca de US$ 7), e quatro horas de volante a leste de Tashkent. Táxi compartilhado é assim, tem que esperar até que tenha o suficiente de pessoas para que valha a pena para o motorista iniciar a jornada.

No caminho, as cerejas e as curvas infinitas de uma estrada que galgava sem parar uma das beiradas do Planalto de Pamir me fizeram muito, muito mal. Não sei quanto subimos, suponho que uns três mil metros, antes do carro começar a ziguezaguear em declive e eu, desesperadamente, me lançar à procurada da palavra "enjoado" e do pedido "pare o carro" no meu dicionário de bolso. Quando finalmente me fiz entender, uns 20 minutos depois, peguei um resto de água de uma garrafa que tinha e, encostado do lado de fora do carro, o joguei na cabeça. Após me recuperar da náusea, vi ao meu redor uma imensa planície fértil, plana, verdejante e fresca. Um lugar lindo. À minha frente, até perder de vista, apenas o céu azul e o pasto verde, meio pálido. À esquerda, montanhas distantes. À direita, parte do maciço que o carro havia acabado de transpor. À esquerda o norte, a fronteira com o Quirguistão. À direita, o sul, o distante Pamir e meus amigos franceses no Tajiquistão.

O Vale é tradicionalmente, há séculos e séculos, habitado pelos uzbeques, que desfrutam das águas do rio Syr Darya e transformaram a região em um centro de produção de verduras, legumes, o inevitável algodão soviético e frutas, muitas frutas. Também por ser o coração pulsante da nação uzbeque, ao contrário de em outras partes do país onde estive, o Vale não sofre de esquizofrenias: os locais (ao menos no lado uzbeque do Vale) não falam quase nada de tadjique ou quirguiz ou mesmo russo, apesar dos 70 anos de dominação soviética. As pessoas nas ruas falam uzbeque, o mais puro uzbeque. Também, diferentemente de em outras partes do país, o Islã é mais forte. E o governo secular não gosta disso. Eis, me dizem, o motivo do isolamento, de não existirem rotas de ônibus para as populosas cidades do Vale: tudo uma questão de segurança.

Ainda na estrada, melhorando do meu enjoo, nos deparamos com um grande bloqueio militar. O motorista desce do carro, leva um longo papo com um soldado. O militar pega depois meu passaporte brasileiro, olha, olha de novo e o leva para uma salinha escondida, depois volta em três minutos e diz que está tudo bem. Só depois disso, após essa agonia, somos liberados para prosseguir viagem. Depois, o motorista me diria que faz a viagem todo dia e todo dia é a mesma história, ele tem que descer para dar um "oi" a seu "amigo" militar. Não fala nada, mas subentendo que nesses encontros "presentinhos" são oferecidos aos sujeitos armados.

Em Margilan, sol forte. Desço do carro e me despeço do motorista para, ainda meio tonto da viagem, me sentar na calçada e olhar em volta, em busca de alguma placa que diga "Coca-Cola". Estou suando, tenho vontade de tirar a camisa. É quase meio-dia. Mulheres passam por mim rumo a um mercado, logo ao lado. Estão completamente cobertas, com exceção do rosto. Usam vestidos multicoloridos de seda brilhante, púrpuras, com detalhes em amarelo, vermelho, branco. Outros têm outras combinações de cores. O sol se reflete na seda e, por milissegundos, me ofusca. Um sujeito acha estranho um branquelo como eu estar sentado na calçada. Parece amistoso e me diz que sabe onde vendem Coca-Cola. "Vamos para o bazar", diz. Tem cheiro de quem bebeu e não para um segundo de falar. Eu não entendo o que ele fala, mas não preciso, é completamente irrelevante, papo de bêbado. Pelos minutos seguintes, ganho um guarda-costas bem incômodo.

Dos mercados do Uzbequistão, talvez o de Margilan, a capital nacional de produção de seda no país, seja um dos menos acostumado a ver forasteiros. Muitas pessoas, especialmente mulheres, passam me olhando com curiosidade. Todas com seus vestidos de seda. Umas, inclusive, cobrem o rosto também com suas sedas ou com a mão, deixando só à mostra os olhos. E são os olhos a parte do corpo que mais importa para elas. Quando me desvencilho de meu amigo bêbado, venço o receio e tento fotografar algumas.

No Ocidente, as mulheres delineiam as sobrancelhas com lápis, penteiam os cílios, aplicam batom, blush, e ficam lindas. No Vale de Fergana, obviamente, os padrões de beleza são um pouco diferentes. Não vejo quase mulher alguma com batom, nem com blush, nem com as unhas pintadas. Em compensação, elas gastam muito mais com seus lápis para as sobrancelhas. Parece que quanto mais grossas e escuras elas são, mais bonitas suas donas são consideradas. Muitas vão além, e literalmente pintam com lápis uma ponte entre as duas sobrancelhas, entre os olhos. Criam a "sobrancelha única" que é tão abominada pelas mulheres ocidentais. Quando percebi isso, finalmente entendi a forma como meu motorista me perguntou, me trazendo ao Vale, se eu tinha uma esposa. Ele me fez a pergunta ao mesmo tempo em que passava o dedo indicador pela sobrancelha. Ou seja: estava perguntando se eu tinha uma esposa bonita, com bonitas sobrancelhas.


* * *

Uma pilha de casulos brancos. Vapor. O casulo se desfaz. Os fios são tratados com corantes e recolhidos em uma máquina manual, de madeira, que tem uma manivela que enrola tudo. O novelo é enviado às artesãs. Elas gastam seis meses para fazer um tapete, ou duas semanas, aproximadamente, para fazer um pano de 1,5 metro de comprimento por 0,5 metro de largura. Ficam em salas quentes, desconfortáveis, mas parecem felizes. Fazem o que suas mães e avós faziam. Se encontram com suas amigas. Conversam e tomam chá.

Eu ainda digeria o grosso pão nan do almoço no mercado quando cheguei à fábrica, onde vi como a famosa seda de Margilan é produzida. Nos tempos soviéticos, os governantes trouxeram para o Uzbequistão suas técnicas perfeitas, cientificamente calculadas, para produzir o máximo de tudo - especialmente algodão. Em troca, o preço foi sacrificar o meio ambiente com produtos químicos, desviando rios e devastando a fauna e a flora. No Vale de Fergana, a produção de seda também foi modificada pelo progresso da grande pátria, mas a fábrica Yodgorlik ("suvenir", em uzbeque) permaneceu para contar a história sobre como era antigamente.

Fui recebido por um jovem que, quando eu disse que vinha do Brasil, abriu um imenso sorriso. Tinha os olhos meio puxados, como um chinês, mas com a pele mais escura. Profundamente enraizado em Margilan, ele falava um inglês melhor que o meu. Disse que recebia turistas frequentemente e os levava para conhecer a fábrica, onde trabalhava. Pouco mais de dez anos após o fim do comunismo, sua mentalidade era milimetricamente capitalista. "Precisamos conversar", disse ele. "Tenho pensado em formas de ampliar nossos negócios. Você sabe dizer se a seda é popular no Brasil? É bastante usada? Em que tipos de vestidos?", perguntou empolgado, enquanto me levava de sala em sala na fábrica. Lhe respondi que não tinha muito conhecimento do mercado de seda do Brasil, mas que sabia que muitas noivas usavam o tecido em seus vestidos. Ele me respondeu que estava recebendo "muitos pedidos da China, mas que estava difícil exportar para o Ocidente", porque ele não tinha "canais". Mas disse que estava otimista, que seu produto era o de melhor qualidade na região, e me levou para uma pequena sala, onde as sedas eram vendidas a peso de dólar. Uma em particular era hipnotizante: um pano longo trançado com fios de duas cores diferentes, verde e vermelha - os verdes no sentido vertical e os vermelhos, na horizontal. O resultado disso era que, dependendo da direção em que se olhava para o pano, ele parecia ser ou vermelho ou verde. Foram-se dólares e o coloquei na minha mochila. Fique pensando sobre a força dos empreendedores, os desafios do comércio internacional e, principalmente, a ironia de ter encontrado possivelmente o mais ambicioso capitalista de todas as ex-repúblicas soviéticas em uma cidadezinha no local mais distante dos Estados Unidos no Uzbequistão.

Vista a fábrica, não havia mais nada para fazer na pequena Margilan. Percebendo que ninguém falava russo, pedi a meu novo amigo capitalista que me ajudasse a encontrar transporte para Namangan. Uma hora depois, eu havia chegado a uma grande cidade do Vale de Fergana e, pela primeira vez na minha viagem, estava visitando um local por puro interesse jornalístico.


* * *

Em fevereiro de 1998, uma série de bombas explodiu na capital do Uzbequistão. O governo do país, que havia adotado em sua constituição a separação entre o Estado e a religião, culpou um grupo islâmico, o Hezb-i-Tahrir, pelos atentados. O governo já vinha desestimulando progressivamente, desde 1991, as pessoas de andar nas ruas com trajes muçulmanos, ou de falarem do Islã publicamente, fora das mesquitas. Mas os atentados foram a gota d'água para ampliar de vez a repressão, especialmente no local onde o grupo, e a maior parte dos extremistas islâmicos do Uzbequistão, teriam suas bases: o Vale de Fergana. A presença militar foi então reforçada, e muitas pessoas foram presas simplesmente porque eram suspeitas de ser ativistas islâmicos. Esse hábito do presidente Islam Karimov provocou grande revolta na população e manifestações de parentes dos presos, violentamente reprimidas. A Anistia Internacional, todos os anos, repete a ladainha de que as prisões do Uzbequistão são um paraíso para os torturadores. O país, em si, está calmo. Mas quanto tempo isso vai durar? O que vai acontecer quando o presidente Karimov morrer?

Namangan é (ou era) o lar de Juma Namangani, um ativista considerado pelo governo uzbeque um dos líderes do Hezb-i-Tahrir e que teria morrido em 2001, na cidade de Mazar-i-Sharif, no Afeganistão. Embora se tenha dito que Namangani morreu, ninguém sabe ao certo se isso é verdade, e provavelmente nunca saberá. E se o governo precisava de uma desculpa para manter a rédea curta para os ativistas em Namangan, aí está ela. Juma pode estar planejando, neste momento, seus novos atentados.

No centro da cidade, em uma grande área verde que abriga diversas faculdades, me sentei com uns estudantes de direito para perguntar a respeito de Namangan. Eu não tinha a mínima ideia do que fazer em Namangan, meu livro-guia não trazia referências, e eu não tinha nem sequer um mapa. Perguntei se eles sabiam onde podia comprar um mapa, e eles disseram que não sabiam. Puxei papo perguntando sobre obras arquitetônicas e mesquitas de Namangan. Me falaram de uma mesquita no centro, e perguntei a eles se iam lá com freqüência. Um deles respondeu que não, e eu perguntei por quê. Ele não soube responder. Perguntei se muitos jovens lá eram como ele: se vestiam com roupas ocidentais, não usavam o chapéu uzbeque e não iam à mesquita. Fez que sim com a cabeça. Era claríssimo que ele não queria falar sobre isso. Nem uma palavra mais. Senti desconfiança. Seria eu um agente do governo?

No caminho para a mesquita, ainda na área arborizada, vi dezenas, centenas de jovens na porta de duas ou três faculdades. Me senti visitando a Universidade de São Paulo. Alguns com livros e cadernos na mão, os homens olhando para as mulheres, as mulheres ajeitando a roupa. Todos vestidos como ocidentais. A uma quadra de lá, vi uns cartazes em uma janela do que aparentava ser um restaurante abandonado. Eram cartazes velhos, com o preto das letras e fotos desaparecendo. Tinham fotos de uns 20 cidadãos acusados de "atividades extremistas".

Sai andando, sem olhar para trás. Senti uma sensação estranha. Umas crianças que estavam na rua, brincando meio longe de mim, ficaram quietas e se aproximaram um pouco ao me ver. Olhei para elas e elas me fitavam, sérias. Certamente, ninguém por lá fazia o que eu estava fazendo, olhar ao redor.

A impressão de que, no centro de Namangan, ninguém quer ver que há problemas (e ser visto como um problema) ficou mais evidente ao me aproximar da mesquita. Os fiéis que vi chegarem entravam rapidamente no salão para suas orações. Fui entrando para ver um pátio perto da construção e, surpresa, ninguém quis conversar comigo. Ninguém teve curiosidade e, espontaneamente, foi me perguntar de onde eu vinha. Me olhavam de longe. Era diferente do que eu vivi em outras partes do Uzbequistão.

Senti uma certa tristeza, o que foi uma ironia. Por semanas, me cansei de ser abordado pelas pessoas e ter que explicar o que um brasileiro estava fazendo tão distante de seu país. Agora, estava sentindo falta do calor e do carinho daquele povo. Fui para um hotel.

Amanhã, volto a Tashkent e embarco de volta a Londres. Ao anoitecer, olhei pela janela do hotel e vi uma quadra poliesportiva. Jovens estavam jogando futebol. Desci e fui assisti-los mais de perto. Eles me ignoravam enquanto lutavam pela bola, se lançavam em carrinhos, cobravam seus escanteios e davam risadas. Jogavam muito mal todos aqueles jovens, alguns de shorts, outros sem camiseta. Era como meus amigos e eu jogávamos, no Brasil, na infância.

De repente, refleti. Os problemas mudam, os lugares mudam, mas meus olhos continuam os mesmos. E que o que eu vi foi totalmente parcial. Uma outra pessoa teria prestado atenção em outras coisas. Mas eu prestei atenção no futebol ruim, na falta ou no excesso de sorrisos e curiosidade, na arquitetura diferente, na herança do comunismo, nas sobrancelhas grossas e nos chapéus pretos. Coisas que, no meu país, não existem. Que só um brasileiro no Uzbequistão poderia ver e contar.

E o que eu contei não foi metade do que eu vi.











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