Clique aqui para ler o capítulo anterior
Clique aqui para ver um mapa com o itinerário da viagem
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Clique aqui para relembrar o Diário de Almaty (2013), sobre o período em que vivi na cidade
1/9/2012
As montanhas me cercam. Estão cobertas por uma mistura de altos pinheiros, alguma vegetação rasteira meio marrom e, nas alturas, gelo. O ar é fresco, raspa um pouco as narinas ao entrar no meu corpo. O céu é completamente azul, um azul celeste escuro, sequer uma nuvem à vista. O Sol das 8h50 da manhã embala a subida pela estrada sinuosa, curva após curva, primeiro de táxi, depois, agora, ofegante, a pé.
Meu plano era pagar 5000 tenge (aproximadamente US$ 15) para que um taxista me levasse do hotel ao local mais próximo possível do chamado Grande Lago de Almaty, o centro de um cenário alpino de rara beleza no sul da cidade. Há muito queria conhecer o lago - em abril, com meus colegas de faculdade a meu lado, esbocei me rebelar em uma manhã, jogar para o alto os trabalhos na dissertação de mestrado, e vir para cá. Mas sabia que voltaria à cidade, que haveria uma nova oportunidade. Segundo o guia que levo na mochila, o táxi poderia chegar a até uns sete quilômetros do lago. Eu faria o resto do trajeto a pé e, na volta, faria caminhando todos os 15 quilômetros até o ponto de ônibus mais próximo, o que me permitira voltar ao centro de Almaty e, assim, embarcar no trem noturno para o oeste.
Levantei-me bem cedo (de novo, após uma noite atormentado por mosquitos). O relógio tocou às 6h30, e às 7h40 eu estava na rua. Em uma esquina menos movimentada, comecei a acenar para todos os carros que passavam - na Ásia Central, qualquer carro é um potencial táxi, basta negociar com quem se interessar em parar. O primeiro que abaixou a janela disse que não conhecia o lago ou simplesmente não quis se esforçar para entender meu sotaque. O segundo, um jovem simpático, com um carro compacto branco, disse logo que também não sabia onde o tal lago ficava, mas ficou curioso com meu pedido - senti que ele ficou na verdade inconformado com o fato de morar na cidade e não conhecer um lugar turístico. Contei a ele tudo o que eu sabia, até mostrei o mapa que tinha em inglês. Finalmente, ficou convencido e topou a viagem por 3000 tenge. Achei uma pechincha! Teria 2000 de lucro em cima do que eu previa e comemorei silenciosamente. Porém, eu estava inseguro - me perguntava se o sujeito realmente ia conseguir achar o caminho e chegar lá.
Passando por uma grande avenida, ele falou com vários amigos por um rádio comunicador do carro e com o irmão dele, pelo celular. Fomos conversando sobre futebol e sobre falar línguas estrangeiras. Me distraí e, quando percebi, estávamos em uma área com verde dos dois lados, com as montanhas altas se aproximando rapidamente à minha frente. Nem vi a transição entre urbano e rural, de tão entretido com a conversa. Reconheci a bifurcação descrita em meu guia, pegamos à esquerda. Abaixei o para-sol para proteger meus olhos da luz. O carro foi seguindo paralelo a um rio raso, subindo em direção às montanhas nevadas.
Meu guia estava desatualizado, e isso ficou claro logo. Em vez do que ele descrevia que viria a seguir, uma estrada que acabava e virava uma trilha, encontramos asfalto o caminho inteiro, praticamente até o lago, lá no alto. Foram curvas e curvas com os pinheiros ao redor, o ar ficando mais frio, aos poucos mais agradável do que no bafo do centro da cidade, e, depois, progressivamente cortante como gelo. Chegou um ponto em que as curvas nos conduziram até uma cancela que impediam o carro de prosseguir. Foi um longo caminho, talvez uma hora; estávamos bem no alto. Eu acabei me afeiçoando do motorista, uma pessoa extremamente simpática, não só um taxista, mas um companheiro de viagem instantâneo. Lhe dei afinal 1000 tenge (US$ 3) a mais do que o combinado. Ele pareceu genuinamente feliz de ter conhecido um lugar tão lindo, com as árvores e a vista da estrada descendo pelas montanhas. Até pediu para que eu tirasse uma foto dele com esse panorama - prontamente eu a enviei a ele por bluetooth, conectando nossos celulares.
A pequena, mas cansativa caminhada a seguir foi perfeita para criar mais expectativas. Não cruzei com nenhum outro humano. O tempo estava perfeito. O vento parou, e eu só ouvia meus passos no asfalto e a minha respiração. A mais alta montanha nevada, ainda distante, se aproximava, lá em cima. Fui vencendo o aclive, às vezes suave, às vezes mais forte.
Após uma hora, eis. O lago, no alto, a 2500 metros de altitude, com uma área, calculo, de cerca de um quilômetro quadrado. O corpo d'água não era transparente como me falaram. Era verde, mas um verde esbranquiçado, leitoso. Não consegui entender ao certo o porquê do branco - o local parecia limpíssimo, apenas árvores e montanhas altas ao redor. Fui recebido por uma família de picos ao redor - pico Turist (3954 metros), pico Sovetov (4317 metros) e outros, arranhando o azul. Um deles, bem à minha frente, com o topo nevado gerando um ruidoso regato de degelo, alimentando o lago. A água era tão gelada que não consegui manter minha mão dentro dela por mais de 30 segundos.
Circundei o lago e fui até o lado oposto ao que tinha chegado, até o ponto mais próximo do pico à minha frente, que imaginei se tratar to pico Turist. Cheguei a um ponto além do qual uma placa informava que era proibido acampar: trata-se de zona de fronteira. Um pouco mais além, aproximadamente uns cinco quilômetros, o Quirguistão, e seguindo nessa direção, o lago Issyk-Kul. Mapas mostram uma estrada atravessando as montanhas, cruzando a fronteira internacional. Por aqui se fazia antigamente a hoje proibida caminhada até as bandas de Cholpon-Ata. Deveria ser sensacional.
Cochilei, caminhei ao redor, fiz piquenique, admirei um local inteiramente para mim. Os vestígios humanos que encontrei foram algumas poucas casas e uma carcaça de carro, estranhamente deixada à beira do lago, enferrujando. Lembrei-me do filme Na Natureza Selvagem (2007) e do veículo abandonado onde o protagonista acabou indo morar e morreu. Me imaginei morando aqui, caçando alguma fauna local e pescando o que for possível pescar no degelo esbranquiçado. Nada mal viver isolado por aqui, nada mal esquecer as agruras do mundo com o Sol como companheiro. Eternos desvarios do viajante, que sabe que no fundo não pode se desvencilhar da civilização porque, em última análise, é ele, o viajante, a civilização. O lago e as montanhas poderão viver muito felizes sozinhos. Provavelmente mais felizes do que em qualquer companhia.
Duas horas depois, estava voltando. O caminho do lago até a parada de ônibus parecia ser ainda mais longo do que eu calculara, "apenas 15 quilômetros." Ou simplesmente eu não havia imaginado o que seria caminhar "apenas" essa distância, a preguiça que tomaria conta de mim. Lá pelo terceiro quilômetro, ainda descendo pela estrada rodeada de pinheiros, já decidi arriscar com meu polegar.
Dei sorte. Tive que esperar apenas três carros passarem até que um parasse. Não negociei o preço, já calculei que 1000 tengue (aproximadamente US$ 3) até o ponto fosse justo. Mas, quando desci do carro, o motorista nem quis saber de receber o dinheiro e foi embora! Uma jornada gratuita que, contando a curta espera pelo ônibus, me trouxe de volta a Almaty pontualmente à uma da tarde.
Eu planejava pegar dois ônibus na sequência para voltar ao centro. Mas quando desci do primeiro, vi um parque. Um parque diferente. Sua entrada era um portal grandioso, triunfal, com colunas altas e a inscrição, no alto: "Parque do Primeiro Presidente do Cazaquistão". Referência, claro, a Nursultan Nazarbayev, o atual presidente. Imaginei o que fosse ver lá dentro.
Evidentemente, o parque é lindo - uma excelente propaganda. Logo na entrada, uma grande fonte, em manutenção e portanto vazia, só com o concreto de suas paredes tripudiando dos visitantes - o calor e o Sol estavam de rachar. Mais à frente, uma estátua do grande líder, com dizeres imortalizados em granito. Desde abril eu coçava a cabeça, sem entender por que não havia estátuas do reverenciado Nazarbayev por toda parte. Até no monumento do centro de Almaty onde as pessoas fazem fila para tocar um molde feito no formato da mão do presidente, o que se vê é um baixo-relevo com a imagem dele, e só. Por outro lado, são abundantes cartazes com fotos e frases do grande líder. Mas finalmente encontrei uma estátua, a primeira e única que já vi de Narabayev. Quando ele morrer, fico pensando em que tipo de homenagem vão lhe fazer. Mais estátuas como esta? Quem sabe uma de 20 metros de altura em Astana, a capital do país?
Voltei em seguida ao hotel para mais um lance de sorte, além do parque, do taxista simpático, da carona na volta. Eu havia esquecido no quarto um colar que uso faz quase 20 anos. Mesmo acreditando que a camareira já houvesse se apossado dele, voltei para ver se por acaso eu estava errado. Estava. Ela o guardou e me entregou de volta. Fiquei tão feliz que, sem pensar, abracei a camareira. Coitada, primeiramente ficou tão sem jeito que me senti mal - um sorriso constrangido, tímido, seu olhar no chão. Mas logo, logo se contagiou comigo. O sorriso se tornou largo, bonito. Eis as pequenas coisas que fazem a alegria do viajante.
* * *
Já era quase noite quando chegou a hora de dizer adeus a Almaty e à minha sorte. Como que por vingança pela minha partida, a cidade quase me matou do coração.
Minha noite seria passada num trem, em um leito, a caminho de Taraz, onde eu chegaria às 6h30. Nunca havia viajado de trem na antiga União Soviética, então achei que essa era uma boa oportunidade. Comprei tudo com antecedência, quando ainda estava na Inglaterra, pela internet. Tudo parecia ter corrido bem no meu computador na distante Europa, mas eu imaginava que os burocratas neosoviéticos pudessem me causar problemas. Por isso procurei chegar cedo à estação - cheguei às 18h50, e o trem sairia às 19h37. Tentei me precaver como pude - fiz fotocópias de todos os meus documentos, visto, passaporte. O que poderia dar errado? Tratava-se de uma simples viagem doméstica, algo como ir de São Paulo para o Rio.
O problema foi que minha passagem, o papel que eu tinha, não era uma passagem, era um comprovante de compra que teoricamente viria com um número que eu teria que digitar em uma máquina dentro da estação para que, aí sim, a máquina imprimisse minha passagem. Até ai, tudo bem (demorei um pouco para descobrir o que estava acontecendo, me surpreendi, mas não fiquei nervoso, pensei que simplesmente bastava digitar na máquina e tirar minha passagem). Mas o número havia saído incompleto na impressão que eu tinha, provavelmente por causa de algum problema na impressora.
Pedi ajuda a uma funcionária da estação. "Esse problema é seu", disse ela, "tentando" ajudar. Faltando 30 minutos para o trem sair, saí à caça de um internet-café por perto para tentar descobrir o número online. Achei um que estava fechando (o dono quase não me deixou entrar). Na internet, descobri que só entrando no site da companhia de trens eu poderia recuperar o número. Mas o site exigia uma senha que eles haviam me dado e que, é claro, eu havia esquecido, julgando que não precisaria mais entrar no site. No calor do início da noite, ainda uns 28 graus, eu suava horrorosamente naquele internet-café, sozinho, com a pressão do dono para eu acabar logo minha navegação e a pressão do trem prestes a sair. Tentei lembrar da senha. Tentei uma vez. Duas. Três.
Na terceira, que alívio. Acertei a senha, consegui o número da passagem. Voltei correndo para a estação, imprimi o bilhete. Estava quase desmaiando de sede e fui comprar uma garrafa d'água para a viagem - fui expulso de um supermercado porque não podia entrar com minha mochila, depois achei um vendedor do lado de fora da estação e nem pensei no troco ao agarrar a garrafa e dar o dinheiro a ele. Aí, fui procurar a plataforma. Qual plataforma? Uma tremenda confusão nos letreiros. Fui direto para as plataformas perguntar aos fiscais qual era meu trem. Descobri. E qual o vagão? Não conseguia pensar muito bem, ainda menos em cirílico. Os fiscais conversam calmamente entre si - "Ele vai neste vagão? Olha na passagem dele. Não, vai naquele vagão!". Me conduzem ao certo. Ah! Finalmente...
E quando coloco o pé na escada do vagão, prestes a soltar o derradeiro suspiro de alívio, um outro fiscal me para. Pede o passaporte. Dou a ele a cópia xerox do passaporte e do visto, os papéis que sempre carrego no bolso. Sempre é suficiente. Não, não, neste caso o fiscal quer e exige o passaporte original (mesmo para uma viagem doméstica). O documento está num cinto com um bolso que carrego entre a cueca e a calça, juntamente com o grosso do meu dinheiro. Abaixo a calça, fico seminu na frente dele, acabo sem querer mostrando a ele todo o dinheiro que tenho para a viagem, torço para o burocrata não beliscar meus dólares. Ele me devolve o passaporte. Entro. Estou ofegante e suado, inteiramente molhado, gotejando, dos pés a cabeça.
Encontro minha cama. A de baixo à esquerda em um quarto com duas beliches. Lá fora, está quase escuro. Almaty realmente não queria que eu fosse embora.
* * *
Estranho e interessante passar a noite em um trem. Só havia feito isso duas vezes. Uma aos 13 anos, com meu pai, em um trem em algum ponto do Pantanal sul-mato-grossense. Depois, lá pelos meus 22 anos, entre Copenhague e Amsterdã, quando eu era um estudante cruzando a Europa tão sem dinheiro que precisei economizar a acomodação passando uma noite em trânsito. Mas, nos dois casos, eu dormi em uma poltrona, nunca em um leito.
Dividi o quarto com outros três cazaques. Nenhum falava uma palavra de inglês. Meu medo de que eles pudessem ser um risco à minha segurança se dissipou rapidamente logo quando conversei com um deles. Muito simpáticos, os três eram do oeste - dois deles de Aktau, o outro de uma cidade próxima. Como tantas vezes já me aconteceu na Ásia Central, acharam estranhíssimo o fato de eu não ser casado com mais de 30 anos, e uns bons 15 minutos de conversa foram dedicados ao assunto "esposas". Dois deles disseram ter mais de uma esposa (um deles, duas, o outro, três, tudo permitido para muçulmanos como eles). O terceiro, mais jovem, tinha "namoradas" - uma em Almaty e outra em sua cidade. Com naturalidade, argumentavam que a mulher não deveria trabalhar fora, o homem, sim. O homem muçulmano, disseram, tem a função de sustentar as esposas. Em troca, tem que ser paparicado em casa - "ser tratado como um leão macho, enquanto as leoas lhe trazem alimentos".
O trem, em si, foi uma alegria para mim por ser vintage. Certamente construído na era soviética, pelo que pude ver no interior. Me lembrou os vagões do metrô de Moscou. Calculei que aquele onde eu estava tinha entre 30 e 40 anos. As paredes internas eram revestidas de fórmica, copiando madeira. As maçanetas e seguradores, todos metálicos, foscos, gastos. Janelas fechadas. Tudo parecendo velho, mas bem preservado e consertado várias vezes durante as décadas.
Dormir foi desconfortável, principalmente porque meus companheiros de compartimento em nenhum momento pararam de falar, e rir, e bem alto, conversando entre eles ou no celular, provavelmente com as muitas esposas. Não achei boa ideia estragar o alto astral com meus pedidos de silêncio. E, na verdade, eu estava tão arrebentado que acabei dormindo mesmo com o barulho.
Acordei 6h30 com um dos companheiros batendo na madeira ao lado do meu rosto. Próxima parada: Taraz.
Taraz, 2/9, 9h15
Clique aqui para ler o próximo capítulo
.
que aventura esse trem!
ReplyDeleteviajar é mesmo uma caixa vazia a ser completada...