Saturday, 8 April 2023

Novas Fronteiras (XVIII) - Khiva, Uzbequistão



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19/8/2018

— Desculpe te incomodar, mas a gente tem uma pergunta que queremos te fazer.

A norueguesa me abordou completamente de surpresa. Estava na companhia de uma espanhola e de um português, todos mais ou menos nos 40 anos. A nórdica destoava muito dos outros. A pele destes era daquele típico tom mediterrâneo, um branco eternamente puxado para o bronzeado. O tom de pele da norueguesa era de um branco naquele momento muito mais vermelho que branco, violentado pelo sol, um rubro que nenhum bloqueador solar poderia evitar. Claro, claro, parei para escutar, fiz meu melhor sorriso, alimentado por grande curiosidade.

— Estamos indo para o Mar de Aral. Vamos dormir no deserto. Vamos alugar um carro com motorista, temos vaga para mais um. Você não quer vir?

Minha visita ao Mar de Aral estava se aproximando, e o lugar já estava me assombrando. Minha viagem de 2003 ao Uzbequistão continuava constantemente comigo, e uma não-lembrança que me atormentava era o Mar. Isso porque, nessa viagem, eu decidi não visitá-lo. Vários motivos: um pouco devido ao desânimo com o que eu imaginava ser um cenário de infinita tristeza; um pouco, pela falta de tempo; mais um pouco, pela falta de dinheiro, e muito devido à minha curiosidade maior em conhecer o Vale de Fergana, do outro lado do Uzbequistão, o que consumiria o tempo que me restava na viagem. Essa lacuna finalmente iria ser preenchida agora, eu iria acertar, de novo, as contas com o passado, como fiz ao visitar Penjikent.

— Quanto custaria para ir com vocês?
— US$ 100.

Era um bom preço. Meu passeio pela região do mar já estava reservado e pago, estava planejado há meses. Eu também iria dormir no deserto, também tinha arranjado transporte. Mas tudo tinha ficado mais de US$ 200. Teria economizado uma boa bagatela se não tivesse me adiantado e tivesse deixando a sorte me juntar ao simpático grupo. Mas o problema não era apenas o valor da viagem. Eles pretendiam ir direto ao Aral desde Khiva e depois voltar para Khiva. Minha viagem me levaria primeiro a duas noites em Nukus, a capital da república autônoma uzbeque do Caracalpaquistão, a cidade de médio porte mais próxima do moribundo mar. Havia reservado hotel e, na minha cabeça, era agradável a ideia de ir se aproximando devagar do maior desastre ambiental artificial da história. Além disso, eu tinha legítima curiosidade em conhecer Nukus. Por fim, o passeio pelo Aral seria com um guia experiente, incluía dormir pela primeira vez em uma iurta, a barraca típica dos povos nômades da Ásia Central. E sabe-se lá a companhia que eu teria nesse passeio que reservei, quiçá ainda melhor do que a daquele trio.

Não obstante, lamentei. Puxei a norueguesa, a espanhola e o português para um canto, para deixar passar a excursão de coreanos pela ruela ao lado do minarete mais alto de Ichon-Qala. Agradeci. Disse a eles que haviam me lembrado de uma lição valiosa, que eu já deveria ter aprendido — em viagens, planejar tudo com antecedência tem suas vantagens e desvantagens.

Circulei com eles pela cidade-museu. A beleza de Khiva permanecia estonteante, como em 2003. Os tijolos ocres, os azulejos azuis, a sensação de estar longe no espaço e no tempo. Mas a praga do excesso de turismo me empurrava constantemente para outros cantos de Ichon-Qala. Cansei de me esfregar na multidão e logo me despedi. Foi ótimo ouvir o adeus do português na minha língua.

Os labirintos de Ichon-Qala me levaram a encontrar os australianos com quem compartilhei o táxi de Bukhara até Khiva. Esperava que pudessem lançar um pouco de luz sobre o mistério do taxista que não me cobrou nada por uma jornada de 5h pelo deserto. Não ajudaram muito. "Como? O quê? Como assim você não pagou? O taxista não disse nada. Parecia apressado. Depois que você se separou da gente, ele nos levou para outro lugar, arranjou outro taxista para nos levar para Khiva e desapareceu. Não falou nada de você. Não parecia com raiva", disseram. Me senti aliviado. Tudo indicava que ele simplesmente havia esquecido mesmo de mim em meio a uma emergência. Minha culpa se dissipou um pouco, mas continuei com a doída impressão de que havia roubado o dinheiro da corrida.

Decidi caminhar um pouco com meus companheiros de viagem, como fizera antes com a norueguesa e seus amigos. O australiano, agora bem acordado, parecia empolgadíssimo com o tesouro ao seu redor. Falava bem mais que a mulher, que parecia estar mais preocupada em ajeitar seu chapéu para se proteger do sol. Conversamos um pouco sobre a história de Khiva, e o homem parecia conhecer tão bem a maldição deste lugar quanto eu.

A cidade tem uma pegada história relativamente humilde em relação às outras pérolas da Rota da Seda no Uzbequistão. Não que não seja antiga, mas sua importância, além de como um obscuro oásis à beira dos desertos da Corásmia (como se chama historicamente esta região do Uzbequistão), vem do século XVI apenas. A lenda de sua criação remonta aos tempos bíblicos: diz-se que Sem, filho de Noé, após perambular pelo deserto, fundou o assentamento. Pertenceu ao império dos Khoresmshahs, devastado por Gengis no século XIII. Na chegada do mongol, os khoresmshahs tinham sua capital em Konye Urgench, hoje um conjunto de ruínas que espero visitar em breve do outro lado da fronteira, no Turcomenistão. Uma vez que Konye Urgench foi destruída, Khiva ganhou projeção. A partir de 1511 se tornou a capital do khanato com o nome da própria cidade. Daí vieram as maravilhas arquitetônicas de Ichon-Qala, até hoje de pé para tirar o fôlego dos viajantes. Distante de tudo, Khiva se beneficiou do isolamento. As areias dos desertos ao redor ajudaram a preservá-la, embora boa parte de seus monumentos já tenha sido pesadamente restaurada.

Paramos no portão leste de Ichon-Qala, na saída diametralmente oposta à principal, monumental, usada por quase todos os turistas que chegam com os ônibus de excursão.

O portão é um túnel, na verdade, um túnel de uns 30 metros de comprimento; e, dentro dele, há abóbadas e nichos nas paredes. Isso já indica que ele tinha uma função comercial, como os pequenos mercados com abóbodas perto da Labi-Haus em Bukhara. Estranhamente, porém, neste caso os nichos não estavam ocupados por vendedores de bugigangas. Talvez por um sinal de respeito. Era aqui que, até o início do século XX, se realizada talvez o mais famoso mercado de escravos da Ásia Central, a face de uma atividade bastante lucrativa para os nômades do deserto, especialmente de tribos turcomenas, predadoras de quem se atrevesse a cruzar suas areias. Além de simplesmente ser difícil de se alcançar por causa dos desertos ao seu redor, Khiva teve por séculos e séculos a proteção involuntária desses caçadores de seres humanos que alimentavam um temor que ia muito além das fronteiras da Ásia Central e que, diz a história, foram a desculpa usada pelos russos para começar a cravar suas garras de urso sobre esta região, trazendo para o czar os domínios dos khanatos entre o Syr Darya e o Amu Darya.

Durante sua tumultuada história, o khanato de Khiva, que durou até 1920, sempre teve uma relação muito difícil com seus temíveis vizinhos mercadores de gente, que ocupavam não apenas os desertos (do Karakum, ao sul, do Kyzylkum, ao norte), mas também montavam acampamento às margens do Amu Darya e ocupavam os oásis. Periodicamente, o rei de Khiva conseguia trazer para si a lealdade deles. Exigindo pagamento de impostos por parte dos nômades, o monarca lhes oferecia proteção e garantia seus direitos. Mas os arranjos nunca duravam muito tempo, os nômades não aceitavam se submeter e acabavam atacando Khiva. Tendo em vista a ameaça que representavam, e também a rivalidade com o vizinho khanato e depois emirato de Bukhara, no século XVIII o monarca de Khiva teve a ideia de convidar o czar a adentrar a região, oferecendo submissão à coroa em São Petersburgo em troca de proteção.

A chegada dos russos se deu em agosto de 1717. A infame história é uma das primeiras do agora clássico livro The Great Game ("O Grande Jogo"), do britânico Peter Hopkirk, a obra que se propôs a ser o guia definitivo da disputa geopolítica pela Ásia Central até o fim do século XIX. Segundo conta Hopkirk no livro, Pedro, o Grande, recebeu o pedido do rei, mas demorou para responder, ocupado com outras coisas que julgava mais importantes (como, por exemplo, a construção de sua capital, São Petersburgo, fundada em 1703), mas, enfim atraído pela possibilidade de ter um posto avançado perto das riquezas da Índia, em uma região por si só com lendárias riquezas, despachou um grupamento de 4 mil homens para a extremamente perigosa viagem até o distante oásis. O grupo seria liderado por um nobre, Alexander Bekovich. Lá chegando, foi recebido pelo monarca do lado de fora das muralhas. O rei, mostrando-se simpático, disse a Bekovich que infelizmente não seria possível acomodar todos os russos dentro das muralhas de Ichon-Qala; pediu que os visitantes se dividissem em grupos menores para que pudessem ser acolhidos nas moradas dos locais ao redor da cidadela. Bekovich aceitou.

Então, veio a traição sanguinária, uma violência inimaginável e difícil de compreender:

Entre os primeiros a morrer esteve o próprio Bekovich. Ele foi detido, despido se seu uniforme e, sob o olhar do Khan, brutalmente golpeado até morrer. Finalmente, sua cabeça foi separada do corpo, preenchida com palha, e exibida (...) à multidão jubilante. Enquanto isso, as tropas russas, separadas de seus oficiais, estavam sendo sistematicamente chacinadas. (...)
- Peter Hopkirk, The Great Game (1994)

Aparentemente, a decisão de massacrar os russos se deu por uma mistura de ingenuidade em relação aos russos (considerados, talvez, fracos e inofensivos pelo rei) e de desejo do monarca de intimidar o rival khan de Bukhara. A cabeça de Bekovich foi enviada a Bukhara como um recado, uma prova de sua extrema violência. Entretanto, o emir fez questão de devolver ao inimigo o presente macabro. Não queria fazer parte de tal maldade, talvez já previsse a ira que recairia sobre o soberano de Khiva (quem sabe, conhecesse a história de Otyrar e da chegada de Gengis Khan à Ásia Central após emissários seus serem cruelmente assassinados). Devia saber que era questão de tempo até que os russos buscassem vingança.

Lembrando dessa história, o australiano tirou seus óculos escuros, afastou o chapéu de abas longas da testa e esfregou o suor. Então, foi para o lado do outro império do Grande Jogo. Iniciou uma interessante digressão sobre o papel dos britânicos na eliminação do comércio de escravos em Khiva. Em particular, lembrou de James Abbott e Richmond Shakespear, dois brilhantes atores do Grande Jogo com um legado que poderia, em primeira análise, ser considerado paradoxal. Representando os interesses da coroa em Londres, eles salvaram os russos que estavam acorrentados no mercado em Khiva. Ou seja, ajudaram o império rival.

Em 1840, a coroa havia enviado a Khiva o capitão Abbott com o intuito de estabelecer relações amistosas com o Khan e, assim, evitar que os russos pudessem criar no khanato justamente o que almejavam na fracassada missão de 1717, um protetorado. A ideia era simples — reiterar ao khan o perigo representado pelo vizinho do norte, revelar que ele preparava uma invasão e eliminar a principal desculpa que os russos teriam para a ofensiva, a existência de russos entre os escravos à venda no mercado em Khiva. Os britânicos se apresentariam como neutros, confiáveis, excelentes aliados frente ao perigo russo. Entretanto, como nenhuma notícia sobre Abbott havia chegado aos ouvidos dos seus oficiais meses após o início de sua aventura em Khiva (o que despertou o temor de um novo massacre como o de 1717), foi decidido que Shakespear (uma vogal a menos que o famoso bardo) seria enviado ao oásis também. Depois ficaria claro: Abbott estava vivo, mas havia fracassado em sua missão. O khan não aceitara liberar todos os escravos russos; em vez disso, oferecera a Abbott alguns e o enviou na longa jornada até São Petersburgo com uma carta endereçada ao czar para propor a libertação de escravos em troca da libertação de prisioneiros de Khiva nas mãos dos russos e da desistência dos russos de lançar qualquer ofensiva contra o khanato. Em uma jornada de grandes perigos, em que quase morreram nas mãos de ladrões cazaques e não conseguiram mandar notícias de seu paradeiro, Abbott finalmente alcançou a corte do czar, mas não conseguiu a paz e o compromisso de que os russos ficariam longe de Khiva.

Quem conseguiria seria finalmente Shakespear, um ambicioso adido político da embaixada britânica em Herat (Afeganistão). Enquanto Abbott estava seguindo para a Rússia, Shakespear chegava ao khanato. Não se sabe ao certo o que ele fez, mas ele conseguiu convencer o monarca a liberar todos os cativos russos — 416 no total. Certamente tinha uma lábia fantástica, mas talvez o khan tivesse então dado ouvidos à razão em vista dos insistentes alertas britânicos. Novamente, enfrentando grandes perigos, como Abbott, Shakespear liderou depois uma caravana para levar todos os ex-cativos para Fort Alexandrovsk, uma base do império russo na costa do Mar Cáspio. Avançaram pelo deserto em uma região pouquíssima conhecida por qualquer ocidental, confiando, e muito, na sorte e no poder de intimidação de suas armas para afastar os saqueadores das areias.

Muito do que diz Hopkirk é significativamente exagerado para reforçar a glória daqueles oficiais do império britânico, talvez os originais James Bonds; nunca saberemos ao certo a verdadeira dimensão de seus feitos. Mas, independentemente da fantasia e do entretenimento que proporcionam os relatos, foram com certeza esses oficiais, do lado britânico e do lado russo, que criaram as fronteiras entre o que foi a Ásia Central soviética, as cinco repúblicas atuais, e o resto da Ásia.

Eu e os australianos nos despedimos voltando para dentro das muralhas. Foi de comum acordo, queriam ficar sozinhos e eu também, eu queria liberdade para perder meus pés entre os cantos da cidadela. Mas... pela terceira vez seguida, não era o momento. ML apareceu de uma ruela no momento exato em que os australianos e eu nos separávamos. Eu ia seguir justamente pela via da qual ela vinha. Ela me acenou e sorriu, um sorriso calmo. Usava chapéu azul escuro, um vestido florido e a bolsa a tiracolo. Havia chegado no mesmo dia, saindo de Bukhara bem de manhã. Disse a ela, gracejando, que só estava esperando que ela aparecesse. "Aqui estou. Para onde vamos?", me respondeu.

ML está viajando realmente com muito pouco dinheiro, tão pouco que me espantei. Disse que, como eu, havia decidido não pagar a cara entrada para Khiva. Embora seja gratuito passear pelas ruas e respirar o ar dos monumentos, a maioria dos prédios históricos de Ichon-Qala tem entrada paga. É possível comprar um passe único para ver todos, 60 mil sums (cerca de US$ 6), ou entradas individuais, o que pode sair bem mais caro. Vale a pena pagar o ingresso geral e fiz isso em 2003, mas, no meu caso, decidi não pagar de novo para me dedicar mais a passear pelas ruas e encontrar o que não tinha visto da primeira vez. ML, porém, não tinha essa escolha. Seu dinheiro contado, disse, permitia que ela visitasse quem sabe um ou outro monumento individualmente, pagando só por eles. Me perguntou onde lhe recomendava ir. Não titubeei. Era de graça, ainda por cima, e estava perto.

Novamente, o mausoléu de Pakhlavon Makhmud me deixou com o queixo no chão. Sem dúvida, o local mais bonito de Ichon-Qala, a joia da coroa de Khiva, um locais mais maravilhosos do Uzbequistão. Entrar no mausoléu voltou a me acelerar o coração a ponto de simplesmente ignorar ML, levando-me a pisar no decoro e no cavalheirismo, passando em sua frente na entrada do complexo. Sem problemas. Olhei para trás, ela também olhava para as paredes e para o teto, cada milímetro deles coberto de mandalas de azulejos azuis. Ela também nem percebia minha existência.

Pakhlavon Makhmud, tido como o "santo padroeiro" de Khiva, foi uma figura muito interessante, multifacetada. Nascido perto de Khiva, viveu nos séculos XIII e XIV e em sua jornada se tornou um lutador de renome, mas também era um poeta e um sufi. Interessante que seus poemas são classificados por alguns como "antirreligiosos", o que torna uma ironia que a ele tenha sido dedicado um mausoléu visitado por centenas de fiéis diariamente para preces e pedidos de bênção. A beleza da estrutura é atribuída a um dos khans de Khiva, Mohammed Rahim, que no século XIX decidiu investir no embelezamento da tumba, até então humilde, e também transformá-la em um jazigo familiar. Sobre o local de descanso de Makhmud, foi erguida a única cúpula azul estilo timurida de Ichon-Qala. A tumba do khan Mohammed Rahim, com todos os preciosos azulejos cobrindo as paredes, é a primeira que pode ser vista ao se entrar no complexo. A de Pakhlavon Makhmud, de propósito ou não, parece ter sido escondida por ele; é preciso entrar por uma saída da sala inicial e procurar. Como era costume na época (tanto em Bukhara como em Khiva) o sufismo era uma fonte de prestígio e apoio para os monarcas. Pakhlavon Makhmud era seguidor de uma irmandade e seu mausoléu também atraia os seguidores da mesma, assim que o investimento do monarca lhe rendeu um precioso apoio político. Com o passar do tempo, khans descendentes de Mohammed Rahim foram sendo enterrados no complexo e, do lado de fora dele, outras tumbas, de pessoas ricas interessadas em ter seu descanso final abençoado pelo santo, também foram sendo construídas.

O complexo é uma demonstração de riqueza dos reis de Khiva. Um exercício de opulência. Nas paredes, a sutileza das linhas, o jogo entre tijolos azuis e brancos esmaltados, as misteriosas palavras em alfabeto árabe. O tabuleiro decorativo subindo pelas superfícies das tumbas. O frescor reconfortante, como se o ambiente inteiro, com seu teto alto, fosse uma grande piscina de água fresca no meio deste deserto.

Pensando bem, o local todo, passado o transe inicial de revê-lo nesta segunda vez, causou-me uma sensação contraditória. Uma beleza imensa, mas, ao mesmo tempo, uma manifestação imensa de ostentação. Não é algo que senti tanto em outros monumentos arquitetônicos do país. O mausoléu deve ter representado um gasto absurdo, talvez, sobretudo para ser mais um recado do khan de Khiva ao khan de Bukhara, como fizera o monarca de Ichon-Qala ao enviar ao vizinho cabeça do russo Bekovich. O luxo também pode ser interpretado como um recado aos inimigos mais distantes, no sul, o Irã. A Ásia Central foi, a partir do século XVIII, alvo de invasões dos persas safávidas, xiitas, mas resistiu como bastião isolado do sunismo. Nos relatos de viajantes, chegavam à Corásmia as descrições dos divinos monumentos em Isfahã ou Shiraz. Além disso, curiosamente a Pérsia também clama para si o local de descanso final de Pakhlavon Makhmud; na cidade iraniana de Khoy, há outro mausoléu. Os khans de Khiva reforçaram sua narrativa paralela e investiram para transformar seu mausoléu do lutador-poeta em uma joia sem par, tentando ofuscar qualquer tesouro dos rivais persas. Vieram os soviéticos, e estes pos sua vez se esforçaram para tirar do local qualquer conotação religiosa. Em 1959, o mausoléu seria oficialmente fechado aos peregrinos, sendo transformado em local onde os cidadãos podiam ouvir palestras contra a religião (em consonância, ironicamente, com a interpretação que alguns fazem dos poemas de Makhmud). Em 1979, passaria a abrigar o Museu de História Revolucionária da Corásmia. Após a independência, com o renascimento do interesse pela religião em toda a Ásia Central, voltaria a sua função original, talvez mais forte do que nunca, recebendo quase tantos fiéis quanto turistas — algo raro no centro histórico de Khiva.

Perdi-me brevemente de ML quando me sentei para ouvir uma prece de um mulá do mausoléu, com sua voz ecoando pelo teto. A reencontrei do lado de fora. Ela apenas sorria. Nem lhe perguntei o que tinha achado.

Seguimos pelas ruelas. A alemã continuava com seu jeito tranquilo, como se a vida fosse cuidar de todos os detalhes de sua jornada pelo Turquestão. Paramos e sentamos num degrau ao lado de uma madrassa, em uma sombra, para tomar água. Tirou o chapéu azul suado, retirou uma garrafa plástica da bolsa e, embora estivesse "morrendo de sede", tomou apenas um gole e me ofereceu.

— Como você vai para o Aral? — perguntei.
— Não sei direito.
— Eu vou para Nukus primeiro.
— Eu também, é no caminho.
— Onde vai ficar?
— Sei lá, conhece um albergue?
— Não, vou ficar em um hotel... chamado Rota da Seda, se não me engano.
— Eu li sobre esse hotel. Caro demais. Deve ter alguma opção. Chegando lá eu vejo.
— E o Aral?
— Ah, isso eu já sei. Vou pegar um ônibus ou lotação. Para Moynaq.

Moynaq é a capital informal da região do Mar de Aral no Uzbequistão. Era o principal porto quando o mar ainda não tinha começado a encolher, mas é um lugar pequeno. Sugeri a ML que considerasse alguma outra forma de visitar a região para ver o que restava do Mar de Aral. Falei sobre os turistas que havia encontrado antes dos australianos e a proposta de viajar com eles.

— Isso seria o ideal para você... dividir a viagem com eles. Vamos ver se encontramos eles de novo.
— Mas quanto eles queriam? — perguntou, afastando a franja ruiva da testa com um movimento rápido da cabeça para a esquerda, para o lado oposto de onde eu estava sentado.
— Falaram de US$ 100.
— US$ 100? Eu não tenho US$ 100...

Não uma resposta em tom indignado pelo preço, mas, sim em tom de resignação. Lhe falei do meu passeio, reservado, a partir de Nukus. Mais, bem mais de US$ 100. Prometi a ela que iria conversar com os organizadores e tentar oferecer a ela um bom desconto se estivesse interessada. Seu sinal de obrigada com a cabeça, um obrigado em voz baixa, mas firme, seu olhar desviado para a esquerda, por fim me indicou tudo. Não era, afinal, o dinheiro o problema. Nem mesmo o problema era seu desejo de não ter minha companhia. Não, parecia não ter nenhum desprazer de passear comigo. Mas estava fazendo aquela viagem, sob aquelas condições espartanas, com um outro objetivo muito maior do que explorar a região ou fazer amigos. Para provar algo a si mesma. Provar que poderia viver cada dia, resolver os problemas sozinha, e viajar com o mínimo possível.

Secamos a garrafa com a ajuda de um vento forte e quente que soprava em rajadas empoeiradas a intervalos de dois ou três minutos. Impossível viver sem óculos escuros, para se proteger da luz e também da poeira. Vinham se acumulando algumas nuvens no alto, mas, com o sol ainda forte, decidimos caminhar para outro canto de Ichon-Qala.

Disse a ML sobre uma dívida que tinha desde a primeira visita a Khiva — eu queria subir o minarete mais alto do Uzbequistão, o Islom Khodja, com 57 metros, uma linda torre com um formato levemente cônico e sucessivas linhas de azulejos entremeadas com o tijolo aparente. Eu não tinha ideia, mas também era necessário pagar, e, no caso, o que me pareceu uma fortuna apenas para escalar as íngremes escadas internas e apreciar a vista na estreita câmara no alto. Certamente o preço teria sido o motivo que eu decidi não subir em 2003 (a visita ao minarete, pelo jeito, não estava incluída no ingresso geral de Ichon-Qala), mas, nesta vez, eu não deixaria a oportunidade passar. Convidei ML, argumentando que, apesar do preço, a ponta da torre era visível de toda Ichon-Qala e deveria ter uma vista linda. Ela não pareceu convencida. Me disse que subisse, que me esperaria e que, quando eu voltasse, se valesse realmente a pena, ela poderia mudar de ideia. A deixei acenando ao lado da guardiã do minarete, a senhora encarregada de vender as entradas.

A subida tradicionalmente claustrofóbica dos minaretes antigos. E, em cima, uma vista que não decepcionou, permitindo ver bem os limites de Ichon-Qala e da Khiva moderna. A vista mostrou claramente quão perto a cidade é do deserto ao redor. Em um dos lados, via-se só deserto, era o território onde um dia os nômades caçadores de escravos eram os senhores absolutos. Mas, naquele momento, nem parecia que eu estava num deserto. As nuvens no alto continuavam se acumulando, trazendo vento cada vez mais forte. As rajadas tinham uma textura que me lembravam as dos ventos de beira-mar no Brasil, chicoteando repentinamente. Refrescante. Era como se o deserto ao redor fosse o mar, Khiva, uma ilha, e o minarete, um farol. No mar, o vento causava ondas assustadoras. Perto da muralha de Ichon-Qala, surgiam redemoinhos, línguas de poeira, vórtices que desapareciam tão repentinamente quanto surgiam. Levantava-se a areia no ar, um efeito cegante. Khiva deve enfrentar frequentemente o flagelo das tempestades de areia que espalham o sal trazido do leito seco do mar de Aral, tornando a terra infértil, castigando a pele, tornando os jovens, velhos, e os velhos, zumbis.

Quando desço, ML tinha desaparecido.

Sozinho de novo, por fim, aproveitei que a chuva ainda não era certa para caminhar nas muralhas de Ichon-Qala, lindas de se ver, reconstruídas e reformadas, mas geralmente negligenciadas pelos turistas com tempo restrito no oásis. Foram construídas a partir do século XVII, sendo reparadas e refeitas várias vezes desde então. Pensei que seria fácil subir e fazer a caminhada de todo o perímetro de Ichon-Qala por ela, mas logo percebi que não. Havia pontos de entrada, mas a muralha estava longe de permitir uma volta completa. Além disso, era imperfeita — havia trechos com buracos, vãos, momentos em que é estreita demais. E trechos onde simplesmente não era possível continuar.

Indo pelo alto da muralha, encontrei um dos vértices da velha Khiva. Neste ponto, não havia absolutamente ninguém. Ficava ao lado de uma das áreas residenciais de Ichon-Qala. Por lá, junto ao muro, havia dois mausoléus bem simples. O primeiro era uma casinha que estava fechada, de tijolos, nada de especial. O segundo estava marcado com mastros com bandeiras, nada mais que pedaços de pano comuns, coloridos. Provavelmente esse, pelos mastros, guardava os restos de algum santo sufi. Os dois estavam cercados de tumbas em diversos tamanhos, em seus formatos tradicionais, como baús feitos de tijolos, com a parte superior arqueada e sem nenhuma identificação. Era um cemitério que surgiu espontaneamente, erguido por fiéis que, ao longo dos anos, desejaram descansar ao lado do inspirador bem-aventurado. As tumbas começavam no chão e iam subindo, nível a nível, até chegar ao caminho por onde eu seguia, no alto da muralha. O efeito da geometria me enfeitiçou, a geometria das tumbas e, no meio delas, os mastros, indicando o centro do complexo. Parecia uma grande colmeia na qual cada tumba era um dos hexágonos feitos pelas abelhas e, no centro, ficava o local que abrigava abelha-rainha. Qual o nome do santo sufi aqui enterrado? Por que ele está aqui? Por que seu mausoléu é tão simples? Nada no meu guia. Ninguém para perguntar. Talvez ninguém saiba ao certo.

A caminhada pelo alto do muro acabou aí, em um ponto por onde não dava mais para passar. Sentei e fiquei contando os hexágonos da colmeia. Passei meia hora fazendo isso, completamente em paz.

A chuva por fim não veio, e o sol descoberto foi ficando doce.

Havia estado em Khiva 15 anos antes. Agora, havia visitado outra Khiva.

E, a partir de amanhã, só vou passar por lugares onde nunca, jamais estive antes.

Khiva, 20/8, 9h30

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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