Tuesday, 25 April 2023

Novas Fronteiras (XXI) - Mar de Aral, Uzbequistão














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22/8/2018

Subia o sol, lentamente.

Eu estava morrendo de sono. 5h30 da manhã. Acordei com o alarme do celular e pulei para fora da iurta sem nem pensar, enrolado no cobertor, para enfrentar o vento frio vindo diretamente do Aral. Me sentei em um banquinho à beira do penhasco, logo na frente da minha barraca. Lá embaixo, a praia. Ao longe, via um espelho prateado que, a cada minuto, ia ficando mais brilhante.


Lentamente magnífico.


E então apareceu um ponto de raios dourados no horizonte.

E tudo ficou alegre.

Em cinco minutos, o círculo de fogo já estava inteiro. O espelho refletindo ele era imenso. Lindo, perfeito.

O vento trazia uma poeira salgada, a areia do deserto do Aralkum.

Lacrimejei. Olhos ardendo. Fui forçado a fechar os olhos.

Os abri de novo em uns dez segundos, de volta à glória. A beleza lenta, quase estática. Mais uma hora se seguiu — repetidamente olhos abertos, lágrimas pela poeira salgada e claridade, olhos fechados, depois olhos abertos para testemunhar o cada vez mais raro fenômeno diário. Até que me chamam para o café.


Quantas vezes ainda será possível ter esse privilégio de assistir o amanhecer no Mar de Aral do Uzbequistão? É mais realista dizer que poucas. Mas isso pode ser um erro causado pelo pessimismo extremo de quem sabe que a maior parte da água já foi embora. A eliminação total certamente ainda pode ser evitada — existe um precedente. No Cazaquistão, o Mar de Aral do Norte, parte do antigo lago gigante, parou de encolher. Isso foi conseguido com a construção de um dique, o Kokaral, que foi concluído em 2005. O dique fechou a ligação entre essa parte norte do Aral e as demais. Com isso, a água que chega pelo rio Syr Darya no norte pode ficar acumulada e é suficiente para sustentar o volume daquele filho do Aral. Em comparação com o volume de 2003, o volume de água no Mar de Aral do Norte havia crescido 12 metros até 2008. Com isso, a alta salinidade da água, que mata os peixes, também foi sendo revertida. Hoje, até mesmo uma pequena indústria pesqueira voltou a ser viável por lá.

Quem sabe um sistema de diques pudesse selar o lado oeste do Mar de Aral uzbeque, esse que salgou meus olhos, permitindo salvá-lo da mesma forma. Mas Tashkent não dá sinais de que pretende seguir esse caminho.

Tomei chá preto no café da manhã. Meus companheiros ficaram falando amenidades que nada tinham a ver com o cenário. Eu fiquei em silêncio olhando para outro lado, o lado de onde vinha a luz, chorando um pouco.


* * *

Umas três horas se passaram e, então, estávamos ao lado de um arquipélago. Um arquipélago de verdade. Não uma miragem.

Ilhas, ilhas e mais ilhas, pequenas, cobertas de juncos, cercadas de uma água rasa e evaporante num sol de rachar. O lago onde elas se encontram se perdia no horizonte. Algumas ilhas se encontravam, formavam minicontinentes, mas, em sua maior parte, eram independentes, criando um padrão estranhamente atraente, provocando os olhos, fazendo-os circular entre elas como se dentro de um labirinto, procurando uma saída. Um labirinto de juncos boiando, ilhas próximas e afastadas. A água era azul. Seria incrível explorar esse arquipélago com um caiaque, passear entre as ilhotas uma tarde inteira, uma semana inteira, passar meses conhecendo seus meandros.

Essa era a visão em um mirante em algum ponto do planalto de Ustyurt. Tínhamos acabamos de vir lá de baixo, da beira do lago Sudochie, o lar das ilhas. É o maior lago que resiste no delta do rio Amu Darya, ao sul do vizinho Aral.

O Sudochie é hoje o melhor lugar da região para se observar a riqueza da fauna que existia no Aral. Ele sobrevive como resultado de um plano de recuperação do governo uzbeque usando reservatórios e a água do aqui raquítico Amu Darya. Em anos com mais precipitação, mais água chega ao lago e o nível dele sobe; em outros anos, o lago permanece como um grande poça rasa de alta salinidade. Com uma área de 333 km², ele tem uma profundidade média de apenas 1,5 metro. Antigamente, ele se conectava com o Aral. Hoje em dia ele fica a cerca de 80 km do que sobrou do mar. Cientistas preferem se referir ao Sudochie como um sistema de lagos em vez de apenas um corpo d'água. Há pelo menos quatro lagos na mesma região, sendo que, novamente dependendo do regime pluvial, eles podem acabar se unindo. Sendo tão raso, o Sudochie permite o crescimento dos juncos que formam as ilhas que vejo do mirante. Essas ilhas, por sua vez, ajudam a prover alimento para as espécies que ainda habitam a região. Um levantamento de 2009 indica que vivem no Sudochie 230 espécies diferentes de pássaros. Muitas são raras. Em alguns casos, o lago é um dos poucos pontos que restam de descanso para espécies migratórias que, antes, podiam desfrutar de todo o Aral.

À beira do lago, visitamos uma vila (quase fantasma) de pescadores chamada Urga. O primeiro sinal de existência de um assentamento é um cemitério no alto de um morro vizinho, um cemitério cristão. Cruzes ortodoxas e outras como as que conhecemos da igreja católica, de madeira, sem nenhuma identificação. Aos poucos vão sendo vencidas pelo sol e pelo sal trazido pelo vento. Estão meio enterradas na areia, mas permanecem de pé, testamento da imigração de eslavos nos tempos soviéticos para trabalhar na pujante indústria pesqueira. Na vila, ou o que sobrou dela, há uma única casa habitada, pequena e praticamente em ruínas, como o restante das edificações. A maior das casas é o que parece ter sido um dia um grande galpão onde as pessoas recolhiam os peixes e os acondicionavam para transporte. Os pescadores os salgavam e os mandavam para Moynaq, onde eram enlatados e levados aos quatro cantos da URSS. Urga era um dos dezenas de vilarejos que forneciam os peixes para Moynaq. Com o lago Sudochie ficando mais raso e o concomitante aumento da salinidade e a diminuição dos peixes, a pesca em larga escala se tornou impossível. Entretanto, os moradores que permanecem no casebre em pedaços, que não estavam quando nós visitamos o povoado, incrivemente ainda sobrevivem com isso. À vista, em um dedo de água rasa que se liga ao lago, havia algumas canoas usadas por eles para adentrar o Sudochie. Para chegar nesse dedo, é preciso andar uns 50 metros a partir do povoado. Depois, por esse canal, ainda é preciso remar muito mais até chegar a algum ponto do lago onde seja possível realisticamente encontrar alguma coisa para pescar.

O Sudochie não parece destinado ao fim como o Aral uzbeque. Fica mais a montante no curso do Amu Darya, o que o beneficia em relação ao mar. Mas é possível ver em suas margens onde ele estava há alguns anos e onde está hoje. Será que estou errado, será que este resto de paraíso também está destinado a desaparecer?

O casebre semidestruído, ainda casa para pescadores que não encontraram opção melhor na vida. Os restos do centro de processamento de pesca. E o cemitério varrido pelo vento, com as cruzes secas ainda de pé, por enquanto. Mesmo com a natureza ainda viva, teimosa, Urga é o carrasco de qualquer otimista. Há uma sensação de tristeza permanente, uma depressão que aumenta mais quanto mais tempo você permanece e olha o que sobrou.

Quase tudo acabou.

Vamos embora.


* * *

No caminho de volta para Nukus, atravessamos mais vazios do platô do Ustyurt e do deserto do Aral, com a navegação inconcebível do nosso motorista — quase sem nenhuma referência, nem uma estrada, nem placas, nem montanhas. Apenas arbustos de saxaul e uma pequena família de dromedários, três adultos e um filhote. Passamos ao lado deles enquanto descansavam parados no nada. O motorista disse que esses animais são muito comuns por aqui.

À distância, apareceram então casas. Um modesto conjunto de casebres antigos. O carro parou, e o motorista entrou em um deles sem nos falar nada. Ficamos confusos no carro. Em um quintal ao lado, uma mãe, um menino e um dromedário nos olharam curiosos. Há famílias que vivem aqui, criam suas crianças aqui. Do que vivem?

O motorista ressurgiu pela porta. Chamou todos os turistas para tomar shubat, leite de dromedário fermentado. Meus companheiros de jornada soltam algumas exclamações.

O dono da casa, um senhor de meia-idade, com camisa e calça sociais surrados e uma pele brilhante de suor, conseguiu encaixar eu e os dois casais que viajavam comigo em sua pequena sala de estar. Encontrou rapidamente frutas secas e pão para criar um pequeno banquete para todos. Já está acostumado com a visita dos forasteiros, sempre quando voltam do Aral. Deve ganhar uns trocados do nosso motorista. Assim, se mantém a magia de pura e desinteressada hospitalidade, o que é sem dúvida uma característica de todos os centro-asiáticos, mas uma característica que pode matar de fome famílias como estas, que provavelmente dividiriam tudo o que têm com suas visitas mesmo que não ganhassem nada com isso. Além de trazer os tira-gostos, o senhor coloca em uma cadeira, como um trono, no meio dos turistas, um velhinho falador. Tem uns 90 anos. Viu tudo na vida. Pena que ninguém entende russo, só eu. Com o motorista fora de vista temporariamente, fui recrutado como intérprete, tentando fazer sentido do sotaque carregado dele.

O velhinho explicou que o vilarejo se chama Komsomolsk-na-Ustyurte (Comsomol era o nome da União da Juventude Comunista da URSS, certamente uma referência ao fato de que a liga local tinha aqui algum tipo de presença dessa instituição no passado). Perguntei como este vilarejo apareceu no meio do nada. Simples: ele surgiu por determinação das autoridades soviéticas, que relocaram para cá a mão-de-obra necessária para trabalhar em uma planta de extração de gás natural nas redondezas. O velhinho e sua família vieram de não muito longe, da região de Moynaq. Perguntei a ele o ano em que isso aconteceu. Ele não conseguiu se lembrar: "Muito tempo". Quase certamente nos últimos anos da URSS, com o Aral já desaparecido do porto de Moynaq e as comunidades pesqueiras desesperadas para encontrar um ganha-pão substituto.

Fiquei curioso com seu chapéu, cônico e baixo. Eu o reconheci como uma tubeteika cazaque. Sabendo a resposta, aticei o velho, perguntando a ele se era uzbeque. "Não!", respondeu, com uma veemência e força não completamente inesperadas. "Sou cazaque! Todos aqui são cazaques!" afirmou, com o dedo indicador direito apontado para o teto, em um gesto que me lembrou Lênin em um discurso.

— Cazaque? Não caracalpaque? O senhor não é caracalpaque, é cazaque, mesmo?
— Sim! Cazaque! — repetiu ainda mais alto, com fogo no olhar, para depois amenizar seu tom e abaixar o volume da voz — Mas cazaque do Uzbequistão. (Pausa). Com orgulho!

Coçou a barbicha e, sem sequer meu incentivo, mudou o assunto. Passou então a descrever a região onde nos encontramos. "Aqui era muito bom. Havia muitos antílopes. Muitos! Eu adorava ir caçar. Íamos com motos e era só atirar, PÁ!" — faz o gesto de rifle sento disparado. "Hoje, não há um único antílope. Todos dizimados." Liberdade nas pradarias, grandes horizontes, céu azul, caça, sangue de antílopes e carne fresca na boca. O idílio ancestral dos nômades cazaques. Um estilo de vida igualmente dizimado que sobrevive, nítido, na cabeça de um nonagenário na remota Komsomolsk-na-Ustyurte.

Fomos interrompidos. A mulher de seu filho, que descubro ser o senhor de meia-idade que nos recebera, nos trouxe então uma travessa com tigelas e um jarro com o shubat, o momento tão antecipado pelos turistas. Shubat é uma delícia ancestral dos nômades cazaques, caracalpaques e turcomenos. Nos limites do leste da Ásia Central soviética, no Quirguistão e nas montanhas perto de Almaty, a bebida é a mesma, igualmente branca e levemente alcoólica, mas feita com leite de égua. Chama-se kumiz. Eu a provei em 2012 à beira da estrada entre Bishkek e Almaty. Por aqui, no oeste, a bebida é mais comum no Turcomenistão, onde o shubat é chamado çal e é um orgulho nacional. Como vou para lá amanhã, decidi passar esta oportunidade de beber o líquido branco e denso, feito com o leite da fêmea que nos observou antes no quintal. Os casais olharam para mim com estranhamento, me perguntando como eu poderia passar a oportunidade de provar o líquido sagrado dos nômades? "Bom, amigos, prefiro fazer isso com acesso rápido a um banheiro. Ainda temos umas horas de estrada até voltar a Nukus." Eles riram, nervosos. Mas já estavam com a tigela na mão e o líquido a caminho dos lábios. Tarde demais para mudarem de ideia. "Muito bom, diferente. Gostoso, mas diferente. Meio azedo. Meio gasoso", disseram, olhando para a mulher que trouxe a bebida.

Bem perto da casa havia o que restou de um aeroporto. Impressionante pensar que Komsomolsk-na-Ustyurte um dia teve importância a ponto de ser servida por uma pista de pouso. No sol, surgiram para nos encontrar dois garotos com uma moto barulhenta e um sidecar, um assento para um passageiro ao lado do condutor. Pararam ao lado de nós para conversar entre eles, sem nos dirigir a palavra, como se tivessem se aproximado com o único objetivo de serem vistos. O nosso motorista, que havia reaparecido na sala quando eu estava conversando com o velhinho, veio atrás de mim. "Era assim, o que senhor estava falando. Vê essa moto? Ia o motoqueiro e o sujeito na garupa com as pernas amarradas na moto, para ter firmeza. Ia de pé com a espingarda, com a moto a toda velocidade. Quando via o antílope, atirava. PÁ!", repetindo o mesmo gesto do velhinho. Não explicou se o sidecar também era usado nas caçadas.

Perguntei a ele se a planta de extração de gás que fez surgir Komsomolsk ainda existe. Disse que sim.

— Mas então, por que há tão pouca gente vivendo aqui hoje?
— Ah, mas é claro. O lugar não tinha antes apenas trabalhadores da fábrica. Várias pessoas que também não trabalhavam com gás vieram para cá. Tinha pessoas que ainda se dedicavam à pesca, a água não ficava longe. Havia caçadores, também, como estava te falando. Hoje, só há o gás. Mas há outras fábricas maiores, melhores, em outras partes, atraindo mais gente. E toda a região está assim, seca. Difícil viver. Talvez tenha mais camelos por aqui que gente.

As fábricas maiores, melhores, com capital estrangeiro, voltaram a aparecer no panorama depois que saímos de Komsomolsk. As duas Land Rovers de nossa excursão continuavam correndo completamente off-road no vasto plano de arbustos, areia e sol, com as chaminés metálicas das usinas de gás brilhando à distância. O motorista da outra Land Rover, mais experiente, seguia na frente, claramente sofrendo para encontrar o caminho correto de volta à civilização. Uma das fábricas se tornou uma referência, como uma estrela. Fomos como uma flecha em direção a ela. Mais uns 30 minutos de solavanco e encontramos, de forma totalmente repentina, uma estrada de verdade, asfaltada, a chave para nosso retorno a Nukus. Já nela, passamos à frente do complexo que usamos como referência, do qual se sobressaía um conjunto com quatro chaminés baixas e uma maior, todas cobertas com um intrincado emaranhado de tubulações metálicas e brilhantes. É como se de repente tivéssemos deixado a idade média e entrado no futuro, visitando uma base terrestre em um planeta quente e inóspito.

A estrada à frente da usina de gás desembocava numa maior, com duas pistas, a rodovia principal ligando o Uzbequistão à cidade de Beyneu, no Cazaquistão, passando pelo sul do finado Aral.

Pela estrada, em alta velocidade (com os suspiros de alívio pelo fim dos buracos), encontramos mais usinas de processamento de gás com as mesmas tubulações, o mesmo ar futurista. Uma, imensa, com placas em coreano e em uzbeque, parecia ser uma joint venture de Seul com os uzbeques. Uma outra tinha algo escrito em chinês na fachada. Outra tinha placas em inglês. Já havia visto na ida para o Aral uma com placas em alemão. Outra, de russos. No moderno Uzbequistão, o gás do Aral se tornou um caminho para a riqueza do país, atraindo o olho gordo e o investimento dos estrangeiros. Isso explica a estrada lisa e perfeita, com as placas de sinalização novas e reluzentes. Mas, tirando isso, vi pouco desse dinheiro se convertendo em algo mais para Komsomol e para Moynaq. A miséria perdura, a questão de como dar sustento a toda uma população cuja vida antes era tão simples, dependendo apenas de um barco, ainda continua sem uma resposta. Para quem investe e quer tirar o gás daqui, porém, o deserto do Aral é uma pechincha. O dinheiro passa pela capital uzbeque, para onde tantos jovens daqui acabam imigrando em busca de um pouco da riqueza de sua própria terra.

Os que ficam talvez logo façam algo a respeito do fato de que não estão recebendo a parcela que merecem dos seus tesouros.

Nukus, 22/8, 22h13

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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