Saturday, 28 September 2013

Diário de Almaty (I)



O ano de 2011 foi incomum. Para os países da antiga União Soviética, foi o momento de relembrar o monumental cataclisma que os transformou para sempre, 20 anos antes. A memória, nostálgica, também foi amarga para muitos. Amargo era o gosto das promessas não cumpridas pelo fim do maior experimento sociopolítico da história da humanidade. Um experimento corajoso, o do Comunismo, e essa coragem hoje ecoa nas ruas de todo o mundo quando os movimentos sociais reclamam a necessidade de um novo paradigma. Um experimento corajoso, o do Comunismo, ainda que fracassado. Mas o fracasso também é relativo. Apenas quem tenta um novo mundo pode fracassar.

Neste caso, o fracasso veio nas mãos do sangrento e monstruoso Stalin, nas reformas feitas sem nenhuma compaixão, sem a necessária compreensão da alma humana. Veio na brutalidade inimaginável das deportações, dos expurgos, das fazendas tomadas à força pelo Estado e pelos milhões de esqueletos criados pela fome. Na destruição da natureza, na ilusão do Homo sovieticus: o ataque ao indivíduo e sua centelha divina. Na guerra, quente e Fria, e seu maniqueísmo. Na supressão da liberdade, na alienação profunda. Acima de tudo, o experimento fracassou ao imaginar que, para a utopia se transformar em realidade, basta a mobilização pelo Estado, bastam os decretos, basta o Estado policial, basta propagar a ideia de que o mal vale a pena pelo bem comum. Mas eis o erro: a utopia, como era o Comunismo, é apenas utopia. A realidade é a realidade. Uma não se transforma na outra, ainda que tenhamos sempre esse desejo de que isso aconteça. Ainda que uma, a utopia, inspire a outra. E aqui está sua importância, a sua necessidade, pois a realidade sem utopia não faz sentido. Sem utopia, não há sonho. Os árabes foram às ruas em 2011 justamente para lembrar da importância da utopia. Ditadores, leia-se devoradores de utopias, foram derrubados. Muita esperança surgiu, a busca de uma nova utopia. O mesmo ocorreu no Brasil, em junho deste ano.

Para mim, 2011 também foi um ano dedicado a essa busca. Minhas viagens aos Uzbequistão, em 2001 e 2003 (clique aqui para ler a série Um Brasileiro no Uzbequistão), e ao Irã, em 2006 (clique aqui para ler a série Sombras Persas), foram motivadas pelo fascínio em entender como a utopia inspirou a realidade nas duas arenas: o comunismo inspirando o pós-comunismo e ditadura, nas terras de Islam Karimov, e a revolução islâmica inspirando a ditadura teocrática, no Irã. Como essas sociedades conviviam com a memória do sonho. Há muito, fervia em mim o desejo de aprofundar esse estudo. Novos caminhos precisavam ser trilhados, novas fronteiras precisavam ser cruzadas para entender melhor essas questões.

Mas, para fazer isso, decidi desta vez obter novas ferramentas. Parti para minha querida Inglaterra, onde vivera por seis anos na década passada. Lá, iniciei em setembro um mestrado em estudos da Ásia Central. O mestrado me trouxe perspectivas diversas, algumas quase dogmáticas, algumas vagas a ponto de criarem mais questionamentos incômodos. Lembro-me e lembrar-me-ei com carinho dos debates acalorados com meus saudosos colegas em seminários sobre temas completamente alienígenas para os brasileiros em geral: as raízes da guerra civil no Tajiquistão; a conquista do Turquestão pelo império russo no século XIX; e o Islã, o Islã e sua paz, nas estepes, nos desertos.

O mestrado também me mostrou caminhos de interpretação da realidade que, embora eu soubesse que existissem, não imaginei trilhar até então. Caminhos paralelos, que levam a elucidações que se complementam sobre a utopia. Os principais foram a política e a economia. Meus passos por eles, hesitantes, descortinam horizontes vastos, fascinantes. E tudo cria um universo multidisciplinar. Possivelmente a melhor forma de ver qualquer tema neste mundo. A Universidade de Birmingham, que se tornou minha segunda alma mater, foi uma grande guia, nutrindo minha curiosidade. E nesse processo, por um intercâmbio promovido pelo meu departamento, em abril de 2012, embarcamos, eu e meus colegas, para um período de três semanas em Almaty, no Cazaquistão. Lá, pude fazer um pouco de pesquisa para meu trabalho final no mestrado, focado em política, mas com a abrangência multidisciplinar que tanto me atraia. Foram três semanas de descoberta e reflexão. Aqui as apresento, na forma de crônicas, como fiz antes no Irã e no Uzbequistão, convidando você a viajar comigo. A descoberta e a reflexão, nestas linhas, precisam ser lidas de três ângulos.

Um é o do eu como brasileiro e minha cultura, tentando encontrar sentidos onde eles não serão evidentes. No choque cultural, no choque de vidas, no choque de sociedades. É o brasileiro e sua cultura apaixonado por algo diferente, tentando ver - nos séculos de história e de Islã, nas décadas de comunismo e nos 20 anos de capitalismo - um fio condutor, desvendando relações. Isso é também lúdico. É como se o narrador fosse uma criança descobrindo o mundo, brincando com ele. Algo sem linha teórica, sem estrutura.

O segundo ângulo é o ângulo do acadêmico, do jornalista: sua obsessão por explicações, por narrativas, por debate, por estudo e por analogias. E nesse contexto, ser político o foco da pesquisa para minha dissertação em Almaty foi algo auspicioso. O Cazaquistão viveu uma rara ebulição nas ruas em 2011 e 2012 – talvez refletindo o momento da Primavera Árabe, ou os protestos contra Putin em Moscou. Os protestos foram a prova da existência de oposição em países onde há muito se julgava que ela havia sido neutralizada. E eis que, em 2013, enquanto relembrava e reescrevia minhas memórias do período, o Brasil vive seus protestos. Que paralelos existem entre regimes políticos tão distintos? No Cazaquistão e sua ditadura, no Brasil e sua democracia imperfeita, de desigualdade e injustiça social? Sem dúvida, um desejo de mudança por parte da população. Uma sede de utopia. Uma utopia que é a mesma, em todo lugar. Que este diário fomente uma reflexão sobre isso.

E o terceiro ângulo, igualmente importante, é o psicológico e filosófico, extremamente pessoal e intimista. É a cidade de Almaty como meu espelho, eco de viagens passadas e futuras, proporcionando uma reflexão sobre minha própria existência, o que me motiva a viver. Trata-se de uma reflexão que já vem das crônicas passadas e que ganha em riqueza se o leitor puder reler meus diários passados no Uzbequistão e no Irã. Tudo isto é um pedaço de minha alma, e um convite ao leitor para, sem juízo prévio, se unir a ela.

Juntando-se os três ângulos, o que é possível dizer que aquelas três semanas em Almaty em 2012 trouxeram para mim? Suas esquinas me apresentaram São Paulo, no trânsito e na poluição. Me apresentaram a União Soviética, em seus prédios imponentes; me apresentaram o Islã, em sua dourada mesquita central, e o Cristianismo, em suas lindas catedrais ortodoxas. Me apresentaram um sorriso acalentador, de estranhos na rua e na universidade onde permaneci fazendo minha pesquisa. A solidariedade de desconhecidos, mas também uma ocasional falta de empatia, uma sensação de total falta de conexão entre eu e aquelas pessoas, aquele mundo, e uma imensa solidão. Me apresentaram a imponência de suas montanhas nevadas, com os ecos de uma história tão antiga que nem eu nem ninguém jamais poderá colocá-la em palavras. Povos que existiram e não existem mais, fantasmas cossacos, mongóis, chineses, turcos.

Me apresentaram o incomensurável e o incompleto, mas também, enfim, a realidade. Minha e da cidade. Para produzir mais utopias. Para inspirar novas realidades.

Leia aqui o próximo capítulo

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