Monday 31 July 2023

Novas Fronteiras (XXXV) - Fim



O que é "Novas Fronteiras"?
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1/9/2018

Última hora antes de ir para o aeroporto. Uma mistura de nostalgia prematura e ansiedade.

Ontem, voltando ao hotel após a longa odisseia de monumentos, parei no mesmo restaurante onde eu e F almoçamos no primeiro dia em Ashgabat. Novamente, pedi kakmach, o prato de carne de carneiro com cebolas e pimentões. Gostoso, mas tem um problema comum nos pratos da Ásia Central: é gorduroso demais. Muito cheio de óleo. Faltam especiarias. Fácil enjoar. Quem dera fosse ao menos um pouco mais picante.

Também pedi unaş: uma sopa com macarrão, alguns vegetais, pedaços de carne. O menu dizia que era picante, até a garçonete me alertou. Puseram uma pimenta (inteira) em cima. Mas não estava muito ardida. Me decepcionei.

Apesar de ter pratos como esses que, embora diferentes, lembram os dos demais países da região, algumas coisas à mesa são bem singulares no Turcomenistão. A principal diferença que notei em relação a seus vizinhos do norte é o pão. Em toda a Ásia Central, inclusive no próprio Turcomenistão, o pão é considerado sagrado. Entretanto, no norte, os pães, redondos, brilhantes, cheirosos, com gergelim e sementes de papoula, sempre são um grande destaque. Lembro do primeiro dia desta viagem, no mercado à beira da estrada rumo ao Vale de Fergana, que delícia aquele cheiro de pão. Aqui, não vi pães assim. Encontrei eles com formato diferente, alongados, sem toda a criatividade decorativa do non uzbeque. Nos mercados, não os vi com o mesmo destaque. Até o nome é diferente. Todos no norte, uzbeques, quirguizes, cazaques e tajiques, o chamam de non. Aqui, é çörek. Notada semelhança com o idioma falado na Turquia, onde a palavra também existe, mas, curiosamente, lá ela significa muffin.

Outra semelhança com os turcos: a relação dos turcomenos com o chá. Em quase todos os países da Ásia Central, na Rússia e no Irã, é uma paixão. A Turquia também toma chá, mas é conhecida pelo seu café. E eis que, no Turcomenistão, tomar chá não é uma unanimidade como nos vizinhos do norte. Tive que pedir nos restaurantes, enquanto que no norte traziam sem pedir. Imensa foi minha surpresa ao ouvir um turcomeno dizendo na recepção de meu hotel em Ashgabat, um desses dias, que preferia tomar café em vez de chá.

Ou preferem çal. Isso, sim, me lembrou o norte, mas não o Uzbequistão ou o Tajiquistão. Çal é leite de dromedário ou camelo fermentado. Em Komsomolsk-na-Ustyurte, na região do Aral, me ofereceram a versão encontrada normalmente no Cazaquistão, chamada shubat, e recusei temendo uma diarreia. Neste café da manhã, agora que estou numa cidade grande e a caminho de casa, tive coragem de experimentar. Me trouxeram uma garrafa do produto industrializado, meio litro. Tem gosto de iogurte salgado, um pouco gasoso. Diferente, mas nada indigesto ou difícil de apreciar para o paladar ocidental. Muito parecido com o kumyz, leite de égua fermentado, comum no Cazaquistão e no Quirguistão.

Um brinde sozinho, ergui a tigela de porcelana com çal, virei o que restava nela olhando nos olhos de Ashgabat pela janela à minha esquerda. O garçom me observou como se eu fosse o que sou mesmo por aqui, um bicho exótico.

Sobre os dromedários, me vem à cabeça que o governo turcomeno deveria lhes mostrar mais gratidão. Esses animais dão aos cidadãos o çal, dão carne, disponível sem problemas nos açougues. Dão vida para povoar cantos estéreis do deserto do Karakum. Enquanto isso, o presidente prefere homenagear o cão da raça abai ou o cavalo turcomeno. Seria porque são mais bonitos, porque ficam melhor nos outdoors?

Chega de reflexões.



O motorista chegou pontualmente na hora marcada. O dia estava, como todos os outros, sempre, eternamente, solar, quente, lindo. Com um céu azul deslumbrante. Que diferença da despedida de Bishkek, coberta de neve, em 2012.

A luz faz resplandecer a fachada do aeroporto internacional de Ashgabat. Não me surpreendi. Trata-se sem dúvida nenhuma do aeroporto mais luxuoso em que já botei os pés. Um devaneio arquitetônico, mais um. Evidentemente, branco, com mármore, como o resto da cidade. A fachada é na forma de uma águia estilizada, alçando voo, com as asas cobrindo os terminais. Um interior com colunas e teto ricamente decorados, detalhes dourados. Parece uma grande hotel cinco estrelas. O mesmo exagero das edificações de Dubai. Para variar, quase que completamente vazio. Conseguia ouvir meus passos no saguão imenso.

Poucos voos internacionais partiam de dia neste sábado. Havia serviços apenas para Paris, Londres, Frankfurt, Minsk e Moscou, todos saindo entre as 11h10 e as 14h10. Depois deles, o próximo só saia por volta da meia-noite, para a China.

Entrei no avião para Londres da Turkmenistan Airlines. Estava tomado de indianos. O voo, pelo que contaram, se originou em Amritsar, cidade sagrada dos sikhs. Muito inteligente a estratégia da empresa aérea. Se ninguém vai para Ashgabat, pelo menos o voo é disputado pelos sikhs que vão e voltam da cidade. Muitos homens com turbantes sentados à minha direita, à minha esquerda, atrás, na frente. Fazia tempo que não via tantos turbantes, tão coloridos. Os senhores à esquerda e à direita apertaram os cintos e me olharam balançando a cabeça, levemente, com uma saudação. Retribuí.

Ao lado do senhor à esquerda, a janela estava escancarada. Fixei o olhar na paisagem.

A nave começou a se mexer, lenta. Acelerou. Flutuou.

Lá fora, a cidade logo virou um borrão branco. O Palácio de Casamentos, aquele cubo incrível de ontem, apareceu e desapareceu rapidamente. E depois, a cordilheira Kopet Dag, filtrando o sol imenso.

A montanha, o deserto.

E depois... estava tudo muito longe. Tudo misturado. Tudo igual. Inseparável.



As fronteiras só existem na cabeça das pessoas.

Ashgabat, 1/9, 12h15



Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. É parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem visitado regularmente a região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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2 comments:

  1. MUNDO ESTRANHO MUNDO... como muitos e até infinitos que poderíamos conhecer, mas viajar é um prazer especial, que tem que ser saboreado, tido aos poucos, caro em todos os sentidos. Inimaginável mais esse país estranho, a forma de viver estranha... quantos outros existem assim? quantos lugarejos remotos teriam condições para nós impressionantes, inexplicáveis e insólitas?
    viajar é bom. Curtir a viagem (antes e depois) melhor ainda. A vida dá oportunidades, agente escolhe as que quer...

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  2. "O mapa não é o território". E a viagem não tem fim

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