Friday 28 July 2023

Novas Fronteiras (XXXIV) - Ashgabat, Turcomenistão



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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

31/8/2018

Eram 11h40 da manhã no mercado Teke, um dos principais do centro de Ashgabat. Um mercado coberto, não muito grande, com uns 200 ou 300 metros quadrados. É bem organizado e limpo, com corredores de vendedores com seus tabuleiros de frutas, verduras, legumes, especiarias. O lugar não estava muito lotado. Havia mais gente fora da área coberta, onde havia barracas vendendo artigos escolares para os pais preocupados com a volta às aulas dos filhos.

Uma fila se formou.

Foi a primeira vez que vi uma fila em um dos mercados que visitei no Turcomenistão. O normal nos mercados turcomenos parece ser o funcionamento perfeito, sem filas, mesmo quando há muita gente. À primeira vista, tudo sempre inspira tranquilidade, tudo expira normalidade. Uma fila, uma simples fila, que começou com três pessoas e logo cresceu para seis e oito, é algo realmente difícil de ver especialmente a poucas quadras do Palácio Presidencial. É um acontecimento. Foge do script.

Depois aumentou depois para umas 20 pessoas. Era ainda uma fila curta. As pessoas esperavam, pacientemente, sem demonstrar qualquer sinal de impaciência. Esperavam para comprar... bananas, que pareciam ter acabado de chegar. Trata-se de algo raro, exótico por aqui. Artigo de luxo para um público seleto, de fato. Todos na fila estavam bem nutridos. Homens e mulheres redondos e com boas roupas. Imaginei que devessem viver não muito longe, quem sabe até nos fantásticos edifícios brancos que são abundantes no centro.

Preço: seis manas (algo como US$ 2) a penca com seis. Parecia ser um preço bom em se tratando de um produto que, diferentemente do que ocorre no Brasil, tem que ser trazido de muito longe. Achei normal ser algo disputado, não vi nada de errado em haver uma fila. Só achei curioso, já que filas são incomuns no país. E, achando curioso, com um pouco de instinto jornalístico, tirei o celular-câmera do bolso. A ideia era documentar a paixão turcomena por algo que nós, brasileiros, naturalmente subestimamos. Minha lógica era — nada de errado na fila, então nada de errado em tirar uma foto dela. Certo?

Foi uma questão de segundos. Um funcionário do mercado que eu não tinha notado até então, uniformizado e de crachá, estava por perto tentando (e conseguindo sem problemas) organizar a fila. Ao me ver tentando tirar a foto, ficou absolutamente possesso. A primeira reação dele foi um violento grito na minha direção, dizendo algo que não entendi. As pessoas na fila, os vendedores por perto, os compradores entrando e saindo do mercado, todos de repente ficaram paralisados e olharam na minha direção. O mundo parou. Fez-se silêncio. Vi, na fila, muitos olhares de pura raiva.

Não cheguei a tirar a foto. Abaixei a câmera imediatamente. Coloquei no bolso da calça. O funcionário se aproximou como um raio.

Rosto no rosto, olhos no olhos. Ele falou algo de novo. No canto de sua boca, espuma.

Parecia prestes a dilacerar minha jugular. Não entendi nada. Era em turcomeno.

Trocou para o russo. Entendi. "Apague agora."

No meu rosto, uma sequência de mudanças. Primeiro, a não-expressão de fazer algo prosaico, tirar uma foto. Depois, o susto (devo ter ficado momentaneamente branco ao perder minha suposta, inocente, anonimidade). Agora, me tomava uma certa calma inconcebível. Minha mão direita estava no bolso, segurando com força a câmera. Não tirei a foto. Logo, não havia o que temer. Disse a ele, "não", com desdém. Dei meia-volta e me encaminhei para a saída do mercado.

Meus passos em direção à saída foram firmes, fortes, sonoros, rápidos, mas sem correr. A minha expectativa era sentir alguém, a qualquer momento, agarrando meu ombro. Ou meu pescoço. Ou me dando um chute. Me transformei, inconscientemente, em um improvável super-herói. Me concentrei em elevar a gravidade terrestre no meu caminho ou aumentar minha densidade corporal infinitamente. Meus passos eram para colar minhas pernas ao chão, como raízes, para não ser derrubado de jeito nenhum em caso de agressão.

Ouvi gritos atrás, sem sentido.

O sol forte lá fora. O portão do mercado. A rua.

Tudo deve ter demorado um ou dois minutos, entre tirar a câmera e sair do mercado.

Ao ver os carros na avenida do lado de fora, de repente, me veio a consciência que, no ato em si, não me veio. A sensação que tantos impulsivos conhecem bem. A sensação que vem com a frase "Meu Deus, o que foi que eu fiz?"

Burro. Burro.

A sensação cresceu exponencialmente. Virou pânico. Julguei óbvio que, nesta altura, a polícia estivesse atrás de mim e, como em Ashgabat não faltam policiais, e como meu ato foi uma clara demonstração de rebeldia, uma demonstração hostil a um regime que fundamenta tudo na palavra controle, eu, repentinamente, em questão de minutos, virei inimigo do regime. Na minha cabeça, inadvertidamente, com minha impulsividade e burrice, eu havia me tornado um subversivo, o líder de uma pequena revolução.

Vi policiais numa esquina. Falavam por walkie-talkie. Um deles olhou para mim.

Não olhei para trás em nenhum momento. Apressei o passo. Atravessei uma larga avenida.

Imaginava que estavam atrás de mim, acelerando na minha direção.

Lembrava constantemente de não olhar para trás. Suor em minha testa.

Pensava em meu celular. Pensava que iam pegar meu celular e estraçalhar ele. 1,4 mil fotos. Todas as fotos da minha viagem. Estraçalhadas.

Apressei o passo. Quase, quase correndo.

Entrei à esquerda em uma avenida vasta em aclive, com várias faixas, com os prédios brancos brilhantes dos dois lados.

Peguei o primeiro ônibus que passou.

Desci após duas paradas.

Olhei ao meu redor, na calçada. Vi pessoas andando, subindo a avenida. Dois homens à paisana. Olharam para mim.

Apressei o passo. Quase, quase correndo.

Entrei em uma rua saindo da avenida. Mais aclive. Estava com as axilas molhadas. O sol estava incidindo diretamente sobre meu rosto.

Só ouvia minha respiração. Não olhava para trás.

Ofegante.

Cheguei a um parque, as árvores eram todas novas, tinham acabado de ser plantadas. Lá longe, do outro lado do parque, vi uma edificação de arquitetura incomum que já estava planejando visitar.

Tive que parar para respirar.

Olhei para trás. Não havia ninguém subindo a rua. Ninguém atrás de mim.

Sentei no meio-fio. Esperei um minuto sem piscar.

Coloquei as mãos sobre o rosto e curvei a cabeça com os cotovelos sobre os joelhos.


Quando eu finalmente consegui me acalmar, quando eu finalmente me livrei do episódio de paranoia repentino, refleti sobre o que aconteceu.

Foi um pequeno exemplo do que pode ser o trabalho de um jornalista independente neste país. Para o governo, a única função do jornalismo no Turcomenistão (se é se pode chamar jornalismo essa atividade) é justamente manter as aparências de que tudo vai muito bem. Essa função ganha particular importância durante as eleições, sempre vencidas pelo presidente da vez com margens superiores a 90% dos votos (como na eleição de 2017, vencida por Berdimuhamedow oficialmente com apoio de 97,69% do eleitorado), sem nenhuma oposição de verdade. Interessante notar que justamente perto do mercado Teke fica a sede da agência oficial de notícias do país. E, literalmente ao lado dela, fica a sede da Comissão de Organização de Eleições e Referendos.

Mas, nesse ambiente de controle total, por que o funcionário do mercado não correu e tentou me parar? Ou por que não me denunciou para que alguém me prendesse? Se tivesse denunciado, sem a menor dúvida em questão de minutos eu estaria atrás das grades (visto que eu sequer corri). A hipótese que me ocorreu, sentado na calçada, era que o funcionário estava ocupado demais com o que é pago para fazer, organizar filas, manter a ordem no mercado. Parar tudo e ir atrás de um policial só para pedir a ele que persiga um turista maluco o afastaria de sua função nem que fosse uns cinco minutos, e, nesses cinco minutos, a desordem da fila poderia chamar a atenção de algum supervisor, o que seria pior para ele. Não. Eu não valia o esforço. Ele abandonar seu trabalho, em si, seria um descontrole.

Por outro lado, na fuga, me passou pela cabeça o que poderia ter acontecido se ele, diferentemente da minha avaliação, sim, me julgasse um problema sério demais. Prisão, embaixada sendo chamada. Minhas fotos, todas deletadas. Meu destino, roubado até que alguma autoridade raivosa decidisse me libertar. Então, extradição, banimento do país, para nunca mais voltar. Vergonha.

Evidentemente, quem tem dinheiro para comprar bananas na cidade é ligado ao governo, só essas pessoas podem comprar artigos de luxo. Isso explicaria os olhares raivosos. O controle intenso em Ashgabat é mantido não apenas pela polícia, mas por boa parte de sua população, funcionários públicos bajulados que são sem dúvida uma base de sustentação do regime. Tamanha é a fé da ditadura no controle que possui que ela deixa turistas circularem livremente na capital. As autoridades pensam, provavelmente, que ninguém seria louco o suficiente de fazer algo para desafiá-las. Ou talvez pensem que nada pode desafiá-las... e ponto final. Excesso de confiança, algo que pode ter consequências desastrosas. Qual seria o efeito de minha foto da mísera fila, caso eu a tivesse tirado? Imaginando que eu a compartilhasse nas imprevisíveis redes sociais, a imagem poderia chegar aos olhos de turcomenos, levando-os a falar de filas, depois dos preços de produtos nos mercados, depois da falta de alimentos, de fome, de miséria, do regime omisso. Um maremoto poderia começar com uma marola. No exterior, a foto poderia levar a incômodos questionamentos.

Assim, ao me deixar livre e impune, impossível não concluir que o regime totalitário falhou. Tive sorte.


O que as autoridades de Ashgabat gostam que os turistas façam, certamente, é o que fiz com prazer a seguir: ver monumentos. Admirá-los. Tirar fotos deles e, assim, em seguida, espalhar aos ventos, pelas redes, a glória da capital turcomena. Esse turismo é como o turismo em qualquer cidade: o visitante vê o mapa, encontra um ponto de interesse, vai até ele e o registra com o olho curioso e virgem. A experiência, entretanto, é um pouco diferente — não apenas porque todos os monumentos de Ashgabat parecem novos, reluzentes e piscantes, bem diferentes dos monumentos que primeiro vêm à cabeça, mas também porque são muitos e, alguns, com temas incomuns. A materialização deles, o fato de terem recebido investimento e horas de trabalho para se tornarem realidade, é, em primeira análise, sem sentido, absurda. Ao visitá-los, porém, surge a lógica: as obras são uma manifestação-chave da ideologia estatal. Eis algo que é um legado soviético, com a diferença de que, na URSS, havia uma limitação muito maior nos temas: Lênin, Marx, Revolução, Proletários, Guerra.



Primeiramente, não é possível negar. Os monumentos de Ashgabat ficam na sua memória, ou por serem magníficos... ou por serem o contrário. Fico imaginando o artista encarregado de dar vazão à sua criatividade em um deles: o governo faz uma encomenda com uma palavra, e se espera dele que surja algo que traduza de forma deslumbrante essa palavra, essa ideia. Há monumentos medíocres, dolorosamente medíocres, medíocres ao ponto de sugerir que são o resultado de um tédio profundo do artista. Em uma das praças centrais da cidade, há um monumento ao Rukhnama. Na época de Saparmurat Niyazov, o livro, de autoria do então presidente, se tornou leitura obrigatória. Algo como o Corão turcomeno. Morreu Niyazov, veio o Arkadag Berdimuhamedow e, hoje, os monumentos do primeiro presidente do Turcomenistão estão desprestigiados, enquanto que os novos monumentos do atual presidente parecem ganhar todo o destaque. Mas um dos monumentos de Niyazov que ainda permanece em destaque justamente é o erguido em homenagem a seu livro. O que se esperaria desse monumento? Algo grandioso, falando da essência da obra. O que é ele, na prática? Simplesmente um livro. Um livro gigante de metal, num pedestal. Nada mais do que isso.

Até ouço o artista, que deve ser de Itu, na minha cabeça: "Me pediram um monumento ao Rukhnama. É um grande livro. Eis um grande livro... sobre um pedestal."

Nos limites da cidade, quando acabam as avenidas e prédios brancos e começa o deserto que se estende até o Kopet Dag, é onde está hoje, realocado, o monumento mais famoso da cidade durante os tempos de Niyazov. Trata-se do Arco da Neutralidade, o grande orgulho do Turkmenbashi, sua criação mais conhecida no exterior. Trata-se de uma estátua banhada a ouro do grande líder, de braços abertos, na frente de uma bandeira também de ouro. Está montada sobre uma alta plataforma que se parece com um foguete espacial, no total com 15 metros de altura. Quando o presidente estava vivo, a estátua era móvel; acompanhava o movimento do sol, sempre permanecendo de frente para o astro, refletindo seus raios, ofuscando com sua luz os observadores boquiabertos. Algo nada menos do que gloriosamente megalomaníaco. Hoje, a estátua não mais dá voltas. E sua localização força uma jornada longa, de táxi, ônibus ou a pé, a partir do centro. Imagino que poucos vêm até a beira do deserto para ver o Arco. Ainda assim, a realocação mantém uma moldura de luxo para obra: ela fica em um parque com lindas flores e bancos para se sentar e observá-la. Muito dinheiro foi gasto para criar essa moldura tão bonita. Mas isso não tira da obra uma certa melancolia que vem de hoje não ser mais a joia da coroa de Ashgabat. Lembro das estátuas de Lênin, arrancadas de tantos pedestais na ex-URSS e jogadas em parques menores, tratadas como curiosidades incômodas, ou mesmo tiradas de vista e destruídas.

Como já tinha ficado claro no Museu de História da capital, neste mundo, a história é trocada como uma peça de roupa, de acordo com o gosto do patrão.

De todos os prédios e monumentos da cidade, o que mais me impressionou positivamente foi o que vi ao longe quando parei para me recuperar após o susto e a fuga do mercado Teke. A edificação fica no alto de uma colina cercada pelo parque aparentemente recém-construído, com árvores baixas e sem ninguém. Trata-se do Palácio de Casamentos, ou Bagt Koshgi. Na época soviética, com a religião sendo rejeitada pelas autoridades, a população ficou órfã de locais onde podia, oficialmente, vivenciar em estilo esse grande acontecimento. Por isso, as autoridades criaram estes prédios onde ocorria o registro civil e, depois, a celebração. Alguns deles, como o de Bishkek, foram construídos como verdadeiras "catedrais", embora desprovidos de qualquer iconografia religiosa. Este de Ashgabat foi construído em 2011, portanto já durante a presidência de Berdimuhamedow, o que prova a resistência do legado comunista. É extremamente curioso, parecido com nenhuma outra obra que já vi: um grande cubo com faces que são estrelas de oito pontas, um símbolo do país, trazendo em seu interior uma esfera prateada com um diâmetro de 32 metros, na qual é possível ver, em relevo, o mapa do Turcomenistão. O cubo e a esfera estão montados sobre um complexo de três andares que inclui tudo o que necessário para fazer um grande casamento — por exemplo, salão de banquetes, estúdio fotográfico, lojas de roupas e um hotel para os convidados. Todos os detalhes decorativos, no exterior e no interior (o qual não visitei) foram feitos seguindo o simbolismo nacional, aprovado pelo governo que, evidentemente, encomendou a obra, feita por uma empresa de arquitetura turca. Lindo, estranho. Um perfeito símbolo da Ashgabat atual.

Ao lado do Bagt Koshgi, o Arkadag deu sua bênção para a única estátua que encontrei na cidade que o mostra em pessoa. O presidente está presente por toda a parte em fotos e outdoors; mas sua modéstia, talvez, não lhe permitiu, pelo menos ainda, que sua imagem em pedra ou metal ocupasse os plintos da cidade como se poderia esperar. Esta exceção, porém, tenta, sozinha, fazer valer todos monumentos que ainda não vieram. Foi inaugurada em 2015: O presidente jaz montado em um lindo cavalo no alto de uma plataforma de pedra branca, usando o chapéu telpek típico. Tem um dos braços controlando a rédea do cavalo, o outro, erguido, como se acenando para Ashgabat, abençoando sua cidade. Ao lado de sua mão aberta no céu, voa uma pomba da paz. Trata-se de uma cópia do Cavaleiro de Bronze, a famosa estátua de Pedro, o Grande, em São Petersburgo. Em Ashgabat, porém, o conjunto tem 21 metros de altura (o de São Petersburgo, aproximadamente 13 metros) e o cavalo, o presidente e até a pomba são folheados a ouro. Berdimuhamedow, o Grande. Ou melhor: Berdimuhamedow, o Maior.

Em outro ponto da cidade, foi construída uma roda gigante muito peculiar. Visível de muito longe, foi erguida dentro de uma estrutura de pedra e metal dourado, uma espécie de moldura ou proteção, dentro da qual circula. Fica em um complexo cultural e de lazer chamado Älem ("universo"). No momento de sua inauguração, em 2012, a roda gigante (chamada, ela própria, também de Älem) era a maior estrutura fechada do tipo em todo o mundo, com 57 metros de diâmetro e quase 50 metros de altura. O complexo fica em mais uma das fronteiras da cidade antes do deserto — de fato, Ashgabat parece estar engolindo rapidamente o deserto ao redor, se expandindo justamente com, entre outros recursos, a construção de monumentos. A roda gigante é hipnotizante. Sua moldura a faz se parecer a um imenso relógio de luxo incrustrado com os símbolos das cinco principais tribos turcomenas, os mesmos da bandeira nacional. Quando cheguei, iluminada pelo sol da tarde, refletindo os raios nos detalhes dourados, ela estava fechada. O lugar todo ao redor, com árvores e bancos para sentar e relaxar, estava sem pessoas, completamente às moscas. Tudo parecia não ser real, parecia ser uma miragem.

Após tomar um táxi, do outro lado da cidade, bem longe, encontrei o mais importante conjunto de monumentos da cidade. Algo colossal, tão grande que fiquei intimidado e até preguiçoso de explorá-lo. Chama-se Halk Hadysasy, ou "Memória do Povo", e foi inaugurado em 2014. Um museu e três monumentos fazem parte do complexo. Todos os monumentos estavam antes no centro de Ashgabat, tendo sido inteiramente desmantelados e reconstruídos aqui. São homenagens aos mortos do país no esforço de resistência contra a conquista pela Rússia czarista no século XIX, nas batalhas da Segunda Guerra Mundial e no grande terremoto de 1948, que deixou Ashgabat irreconhecível.

Começa com uma escadaria triunfal. São 314 degraus, cada um deles judiando de minhas pernas e de meus pulmões no sol de rachar, no ar fervente. Cheguei ao alto com a testa encharcada, exausto. Lá, no centro de uma área plana e descoberta, havia um conjunto de cinco colunas de granito vermelho, cada uma no formato, desde a base até o seu ápice, da familiar estrela de oito pontas. Os pilares alcançam 27 metros de altura. É claramente uma criação soviética. As colunas são minimalistas; nenhum detalhe, nem ouro, nem metal. Como se fossem estacas cravadas no coração da terra, ou árvores mortas, apenas caules. Tem algo de violento, de brutal, até por ter a cor vermelha, do sangue. O monumento chama-se Baky Şöhrat, ou "Glória Eterna", e é o que homenageia as vítimas turcomenas da Segunda Guerra.

Ao seu lado esquerdo, sob a perspectiva de quem veio subindo a escadaria, fica o memorial do terremoto de 1948. É a mais estranha obra do conjunto. Têm um quê de religiosa. Sobre um plinto de mármore jaz um touro, feito de bronze, erguendo em seus chifres uma esfera que parece ser o mundo. Desse mundo, surge uma mulher estilizada. E essa mulher carrega um bebê. Só o bebê é folheado a ouro, o resto é bronze nu ou a sua base, de pedra vermelha. O touro é associado a uma crença ancestral de que o mundo existe erguido justamente nos chifres de um grande animal como esse, e que seu mugido é ouvido como os sons que vêm da terra nos terremotos. O bebê, acredita-se, seria uma representação de Saparmurat Niyazov, o que explicaria o fato de ser dourada — assim como as demais estátuas do Turkmenbashi na cidade.

Ao seu lado direito, por fim, há o monumento menos impressionante dos três, mas talvez o mais tocante. Um grande arco de granito, novamente vermelho, cobre uma mulher, com ar de santa, com os braços estendidos, suplicantes. A mãe, entende-se, perdeu o filho. Em cada ponta do arco, há estátuas que parecem representar guerreiros turcomenos, com sua indumentária típica. É o monumento aos mortos nas guerras da pátria-mãe turcomena, sobretudo a batalha mais sangrenta com a Rússia czarista, na cidade de Geok Tepe, perto de Ashgabat, em 1881. Foi uma carnificina inimaginável, um eco das barbaridades de Gengis Khan e Tamerlão, na qual os russos chacinaram pelo menos 15 mil turcomenos (ou, segundo outra contagem, até 150 mil). O rio de sangue selou o destino do país, ligando-o oficialmente à Rússia até 1991. Tamanho trauma também poderia ser uma das raízes do isolamento da nação.


Sentei-me na escadaria para descansar as pernas, olhando para uma avenida, lá embaixo, e para um morro quase sem árvores, do outro lado.

Fiquei lembrando de outros monumentos com que cruzei pela cidade.

Muitos.

Monumento à Constituição.
Monumento ao Trigo.
Monumento à Terra.
Monumento à Continuidade.
Monumento à Ciência.
Monumento aos Cavalos.
Monumento à Vida Saudável.
Outros quantos, nem sequer vi.

Todos limpos. Todos brilhantes, reluzentes.

Todos caríssimos.

Todos cercados de muito espaço pouco frequentado.

É Ashgabat, enfim. É um grande, desconcertante vazio decorado de forma estranha, em que os habitantes mais humildes, na verdade irrelevantes, sobrevivem com medo de tirar fotos.

Que dor deve ser viver cercado de toda essa beleza coagida, desse gasto absurdo, como numa gaiola de ouro. Que loucura ter tanta estética, tanto nacionalismo, e tão pouca alegria.

Tudo é tão sem sentido.

Que bom que vou embora.

Ashgabat, 31/8, 22h

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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1 comment:

  1. Aterrorizantes "belezas" artificialmente construídas. Da gaiola de ouro o melhor é escapar.

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