Thursday 29 June 2023

Novas Fronteiras (XXX) - Mary, Turcomenistão



O que é "Novas Fronteiras"?
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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

28/8/2018

Seu panorama plano era perturbado por pequenas pilhas e longas fileiras de escombros onde nada a não ser arbustos atrofiados cresciam. Também havia o ocasional fragmento de alvenaria, os restos de uma edificação, separados por uma grande distância do próximo e do seguinte. Tão isolado era cada resto que, coletivamente, eles chamavam a atenção como um conjunto de cupinzeiros. E isso era tudo o que sobrava da ancestral Merv (...) Que tal metrópole possa ter sido obliterada sem explosivos é a demonstração de um tipo de genialidade, uma ousadia brutal. Isso também levanta questões sobre a influência, a natureza, a trajetória, as origens do mal. (...) Deveria eu permanecer desconcertado diante das ruínas de Merv e da memória de seus mortos, ou deveria desprezá-las com um triste dar de ombros porque essa era apenas a forma como o mundo era 700 anos atrás?
- Geoffrey Moorhouse, Apples in the Snow (1990)

Um cubo. Um cubo perfeito no sol do deserto. Coberto por uma cúpula, uma meia esfera. Sua superfície inteira é de tijolos. Sobre a entrada, uma série de cinco sacadas que me lembraram a arquitetura de Sevilha, de Marraquexe. Um prédio do século XII, de suprema elegância em sua simplicidade.

Dentro, o ambiente é fresco, prazeroso, com sua sombra reconfortante. No chão, há uma tumba de mármore decorada com as serpentes do alfabeto árabe. No alto, janelas, logo abaixo da cúpula, deixam entrar a luz. Do chão até o topo da cúpula interior são uns 20 metros. As paredes estão sendo, aos poucos, recuperadas. Há desenhos gloriosos em linhas vermelhas e negras, parecem ser as molduras de elementos decorativos que se perderam. Linhas do teto também foram trazidas à vida. Geometrias tentadoras. Outras partes das paredes ainda estão completamente nuas, brancas.

Olhando para o teto, senti a garganta secar e repentinamente tossi. Me assustei com o eco, ele pareceu persistir por 10, 15 segundos, até morrer. Um eco perfeito. Um mausoléu perfeito.

Os turcomenos têm mesmo que se orgulhar do mausoléu do Sultão Sanjar, a principal joia da sua mais famosa cidade do passado, Merv. Uma vasta ruína, mais vasta até que Konye Urgench, ela ocupa realmente o espaço de uma cidade de bom porte, com resquícios de séculos e povos completamente distintos, com histórias que capturam a imaginação. Orgulho turcomeno, orgulho do mundo.

Resumir a história deste lugar, ou sua importância na história da humanidade, é difícil. Há sinais de que a sua área já era ocupada desde a idade do bronze, como parte da mesma civilização de Gonur-Tepe, e sua existência é atestada pelo Avesta, o livro litúrgico do Zoroastrismo, que tem sua origem nos ensinamentos de Zoroastro entre os anos 1500 a.C. e 1000 a.C. Para os seguidores da religião, Merv era Mouru, uma das "16 Terras Perfeitas" criadas pelo Deus supremo, Ahura Mazda. Seguiu-se a anexação pelos persas Aquemênidas e por Alexandre, o Grande, cujas forças fundaram aqui uma Alexandria (não tinham muita criatividade). Não demoraria para que o assentamento nas margens do rio Murghab, também como Gonur, ganhasse status de centro regional desta região, conhecida ancestralmente como Margiana — passou a ser capital de uma satrapia (província) do Império Selêucida (séculos IV a.C.- I d.C.), renomeada como Antioquia Margiana; depois, foi uma das capitais dos partas, dos kushanos e finalmente dos persas sassânidas. Na conquista árabe (século VIII), foi a capital de fato dos árabes nos territórios adquiridos em toda a Ásia Central (o centro de poder, por exemplo, sobre Bukhara, Samarkand e todas as terras conquistadas ao norte do rio Amu Darya); foi o centro de uma rebelião da dinastia Abássida contra a dinastia Omíada, o presságio do domínio de Bagdá sobre o califado.

Mas o grande período de glória viria mesmo nos séculos XI-XIII, quando a cidade passou a ser uma das mais importantes do Império turco Seljúcida. Sultão Sanjar (governou de 1118 a 1157) é considerado o último grande líder dos seljúcidas, controlando terras desde Jerusalém até o atual Cazaquistão, e Merv foi sua capital. Nesse período, as crônicas atestam que a população de Merv cresceu a ponto de esta se tornar a cidade mais populosa do mundo. Em 1210, seus habitantes teriam chegado a meio milhão, mais que Constantinopla ou Bagdá, metrópoles muito mais conhecidas do período. A cidade ganhou, então, o apelido de Marw al-Shahijan ("Merv, a Grande", em árabe), sendo um centro destacado de cultura e ciência. Tamanha era sua glória que surgiu a crença de que alguns contos de As Mil e Uma Noites, a obra que contribuiu como nenhuma outra para construir no imaginário Ocidental a Civilização Islâmica, tenham sido inspirados em Merv.

A decadência após a morte do Sultão Sanjar em 1157 foi rápida. Como costumava acontecer com os grandes impérios medievais da Ásia Central, o Seljúcida foi rapidamente palco de intensas disputas internas, o que o tornou mais vulnerável à ameaça dos mongóis. Merv foi alvo das tropas de Gengis em 1221, sob a liderança de um dos filhos do Khan, Tolui. Foram seis dias de cerco até que a cidade cedeu. Um cronista árabe da época, Ibn Al-Athir, nos deixa um relato baseado nos depoimentos de refugiados da cidade. Segundo ele, os soldados sobreviventes de Merv, responsáveis por resistir tão bravamente aos invasores, foram trazidos à presença de Gengis e executados sem mais delongas na frente de outros prisioneiros. Os moradores ricos capturados foram mortos mais lentamente; foram primeiro espancados e torturados até que revelassem onde estavam escondidas todas as suas posses mais valiosas. A cidade então foi incendiada, incluindo o túmulo do Sultão Sanjar (que antes seria escavado em busca de tesouros). Os mongóis teriam contado os mortos, chegando ao inacreditável número de 700 mil. Evidentemente, com a história sendo contada por um árabe, sem uma versão imparcial ou uma do lado mongol para se buscar um equilíbrio, e ainda por cima sem que Al-Athir tenha sido uma testemunha ocular do ocorrido, é muito possível que o relato tenha sido exagerado. Porém, há uma verdade incontestável: como ocorreu em várias cidades atacadas pelos mongóis na Ásia Central, Merv nunca se recuperou plenamente. Seu status de capital nunca foi retomado. Seu renome como uma das grandes cidades da civilização islâmica, sim, e talvez justamente por isso, por atiçar o imaginário, renasceu.

O fim, desta vez definitivo, veio no século XVIII. Naquela época, Merv era parte do império xiita da Pérsia, mas por sua posição geográfica se tornou peça importante da expansão territorial dos reis de Bukhara. Em 1795, o emir de Bukhara Shah Murad Beg, um sunita, tomou uma decisão drástica para evitar que ela pudesse ser anexada novamente ao império xiita do sul. Ele destruiu toda a cidade, inclusive o dique no rio Murghab que levava água a Merv. Paralelamente, decidiu deportar toda a sua população, umas 100 mil pessoas, todas ou quase todas xiitas, para o território do emirado, ao norte. Enfrentando resistência ao tentar se integrar com os sunitas locais, essa população se espalhou, buscou cantos remotos, passou a esconder suas raízes. Foi a origem da comunidade chamada até hoje no Uzbequistão de ironis, talvez a origem do mausoléu de Ali que visitei na vila de Gazgan, perto de Nurata.

Deveria eu permanecer desconcertado diante das ruínas de Merv e da memória de seus mortos, ou deveria desprezá-las com um triste dar de ombros porque essa era apenas a forma como o mundo era 700 anos atrás? Por mais que entenda a reflexão de Geoffrey Moorhouse ao ver estas ruínas, não consigo dar de ombros ao ver os restos de Merv. O mundo era assim há 700 anos, sim. A história, a lenda, e o cenário de "cupinzeiros" que formaram os dias de glória deste colosso arqueológico tornam, porém, qualquer indiferença impossível para mim.

Vejo uma foto colocada no salão do mausoléu do Sultão Sanjar para ilustrar o processo de restauro. É assustador ver como este prédio glorioso estava antes dos soviéticos. As primeiras fotos do complexo são de por volta do início do século XX; uma delas mostra que a cúpula havia desabado, tudo estava em péssimo estado. O processo de reconstrução é tão complicado que já dura décadas e talvez dure muitas mais. Os primeiros trabalhos de recuperação, aparentemente, foram feitos ainda na década de 1930. Algumas das obras modificaram a estrutura interna do mausoléu, o que é lamentável. Apenas torço para que o mausoléu não seja um dia tão artificial que perca o respeito que seu passado merecidamente lhe atribui.

Além do mausoléu do Sultão Sanjar, há tanta coisa para se admirar nos cerca de 3,5 quilômetros quadrados de Merv que passamos, eu e o pobre F (com uma paciência penitente de me acompanhar em cada monumento) mais de cinco horas passeando pelo sítio. Virando pedras em busca de porcelana antiga. Tirando fotos. Encontrando maravilhas históricas que só podem ser reconstruídas na cabeça.

A ruína de Merv na verdade são cinco, cada uma delas chamada Qala. As Qalas são núcleos fortificados, cercados por muralhas, cada um deles ligado a um período histórico específico. A Merv persa aquemênida (do império de Ciro e Cambises) sobrevive na fortaleza Erk-Qala. Construída por volta do século VII a.C., é hoje um círculo alto de terra batida, que constitui sua antiga muralha, com uns 600 metros de diâmetro. Quase tudo, no círculo em si e dentro dele, é de uma terra tão compactada e curtida pelo Sol que não há nem vegetação rasteira, com exceção de em seu centro, onde se acumula um pouco de água. Sua aparência evoca o impacto de um asteroide. A sensação que me causou foi de estar visitando um local fora do planeta, uma cratera lunar. Tão pequena, Erk-Qala está inteiramente integrada à muralha norte de outra cidadela ancestral, Giaur-Qala, erguida a partir do período do Império Selêucida e então crescendo nos séculos seguintes, se tornando depois o centro nervoso da administração persa sassânida (séculos III-VII). Estudiosos são capazes de identificar nos muros as partes erguidas e reforçadas por cada império como se lessem os círculos concêntricos de um grosso tronco para determinar a idade de uma árvore. No interior da muralha sassânida, há montes de terra, fantasmas sem nome, e a área toda parece ser a favorita para criadores de dromedários locais manterem seus rebanhos.

A leste de Giaur-Qala, uma nova cidade foi construída pelos árabes após eliminar os sassânidas, Sultan-Qala. E é exatamente no seu centro, cercado do nada que um dia fora a cidade, que fica o mausoléu do Sultão Sanjar.

Do outro lado de Sultan-Qala, mais a oeste, há outros fantasmas muito interessantes, as fortalezas grande e pequena Kyz-Qala. A grande, erguida entre os séculos VII e XII, tem os restos de um poderosíssimo muro construído de uma forma incomum. São grossas colunas octogonais todas unidas e inclinadas, como se desabando e paralisadas por obra de um mago que as teria ordenado quietas até o nosso tempo. Os tijolos usados para construí-la ainda estão perfeitamente visíveis, e, dentro da fortaleza, sendo restauradas, ainda estão as paredes usadas pelos seus ocupantes. A fortaleza grande Kyz-Qala foi usada pelos seljúcidas como uma intimidadora proteção a sua Sultan-Qala. É difícil encontrar na Ásia Central, quiçá no mundo, algo que se pareça com tais muralhas. Impossível imaginar que catapultas pudessem colocá-las abaixo, de tão grossas que são.

Outros pontos de interesse em Merv não são exatamente fantasmas; eles mantêm sua vida e atraem os fiéis sufis, que vem a eles oferecer suas preces e buscar suas bênçãos. O primeiro deles fica não muito longe das fortalezas Kyz-Qala, perto da entrada principal do sítio. O mausoléu de Mohammed Ibn Zeid é facilmente identificado pela árvore sagrada em sua porta, sufocada por centenas de pedaços de pano em seus galhos, representando pedidos dos visitantes. O complexo em si, que data do século XII, parece ter sido reformado há não muito tempo e tem um aconchegante interior com lindas paredes de tijolos aparentes. Não se sabe ao certo se o sábio enterrado sob o marco de mármore negro em seu interior é mesmo Ibn Zeid, que morreu séculos antes da construção do mausoléu. Ficamos pouco tempo no lugar, guardado ferozmente por um velho turcomeno com uma longa barba, sentado impassível como uma estátua em um banco em um pequeno morro ao lado da entrada. Parecia contrariado com o fato de que os infiéis cristãos estivessem adentrando seus domínios. A uns dois quilômetros dali, no perímetro das muralhas de Sultan-Qala, dois curiosos mausoléus gêmeos parecem ainda mais novos. É supostamente o local onde estão enterrados dois companheiros (Askhab) do Profeta, e é assim mesmo que são chamados, Mausoléus dos Dois Askhab. Totalmente reconstruídos, eles seriam as ruínas mais antigas de Sultan-Qala, tendo sido erguidos ainda no século VII, no início da expansão árabe pela Ásia Central (eles teriam chegado a Merv por volta do ano 650). Os portais dos mausoléus, entretanto, são timuridas (século XV), ecoando os grandes monumentos do Uzbequistão. Pela janela de um dos mausoléus, não muito distante, chama a atenção a colossal muralha de perimetral de Sultan-Qala, ainda de pé, ainda alinhada.

É difícil acreditar que Merv, construída e reconstruída, com suas fortalezas impenetráveis e sua muralha até hoje impressionante, pôde de fato ter caído em uma ofensiva militar. Mas caiu, inúmeras vezes. E morreu. Se já não há moradores na vasta área da ancestral Merv, a uma pequena distância surgiu um vilarejo, Bayram Ali, um subúrbio de Mary. Essas são as bases obrigatórias para qualquer visitante que queira conhecer a lenda de Merv.

Os visitantes, poucos, ficam diluídos na vastidão entre as ruínas. Fomos de carro de um ponto de interesse a outro — sem transporte, como fizemos em Konye Urgench, teríamos demorado talvez o dobro das horas que consumimos no local. Além disso, também em comparação com as ruínas de Konye Urgench, Merv é bem menos frequentada pelos locais, que só se interessam pelo mausoléu de Mohammed Ibn Zeid e pelos dois mausoléus dos Askhab. E essas edificações ficam distantes entre si. Na antiga capital khoresmshah, há uma sequência de pontos de interesse para os sufis, que vêm caminhando desde a entrada até completar o circuito.

Acima de tudo por uma diferença de tamanho, Merv tem uma atmosfera diferente de sua ruína irmã do norte. Uma magia indelével, e uma igualmente indelével eternidade.

Um vazio.

Mas, se já quase não há vida, ao menos, finalmente, há paz.

***


Saindo de Merv, em uma avenida de Bayram Ali encontramos fileiras e fileiras de casas novas, recém-construídas. Pareciam ter sido erguidas no ano passado, no máximo. O asfalto era ruim fora do centro da vila, mas, no centro dela, ele era muito bom e havia excelente sinalização de trânsito. Possivelmente (reflito eu em silêncio), tão à vista dos turistas que vêm a Merv, as casas eram um esforço de marketing do governo para mostrar que a riqueza do país vai além dos limites de Ashgabat. Seja isso verdade ou não, esse esforço habitacional não chega, ao meu ver, aos pés do que os soviéticos fizeram no mesmo sentido. Chegando à periferia de Mary, a caminho do hotel, nosso carro passou por uma grande sequência de prédios residenciais com o estilo característico dos soviéticos, caixas de concreto de uns cinco andares, feias, mas funcionais. O que de praxe se encontra em qualquer cidade da ex-URSS. Não há charme, as edificações estão gastas, precisando de uma urgente reforma e muita manutenção, mas as pessoas têm um bom teto pelo menos desde o fim do império, há quase 30 anos. Me perguntei se as novas residências em Bayram Ali, brancas e reluzentes, poderiam ter a mesma longevidade. Compartilhei em espanhol com F minha reflexão.

"Eu acho, na verdade, que este governo está fazendo tudo bem", me disse meu companheiro de viagem, novamente semeando um pouco de controvérsia. "O que vejo é muito dinheiro sendo investido. Casas novas, ruas asfaltadas, até os palácios em Ashgabat. O dinheiro está sendo usado no país. O povo está vendo os efeitos dele. Em países da África, o povo não vê nada dele, nenhum investimento, tudo é roubado."

Balancei a cabeça em concordância, não queria debate, queria apenas harmonia com F. Dentro de minha cabeça, retruquei: "Em um país riquíssimo, como é o Turcomenistão, em que bilhões e bilhões são produzidos pela exportação de gás, alguns trocados desse total são usados para construir casas para mostrar que 'existe investimento' no país. Será o gasto proporcional ao que o governo fatura? O povo não é trouxa. Em troca desse 'investimento', qual é o preço que o povo tem que pagar? A ausência de liberdade, a ausência de democracia. Não será esse preço alto demais? E os palácios, construir para os mandarins do governo residências deslumbrantes na capital é um 'investimento' válido no país?"

Como mato crescendo sobre os prédios soviéticos de Mary, outra coisa voltou a me chamar a atenção — muitas, muitas antenas parabólicas. Havíamos visto isso no mais inusitado dos lugares, a vila de Erbent, no meio do deserto do Karakum. Aqui, a quantidade era multiplicada por cem, ocupando todo o telhado de vários prédios. "Perceba", disse T, nosso motorista, em russo, "estão viradas totalmente para um ou para outro lado, não há meio termo. Um lado é para pegar a TV da Turquia, via Azerbaijão, do outro lado do Cáspio. O outro lado, é para pegar a TV russa, via Uzbequistão e Cazaquistão." Eu havia visto um pouco da TV turcomena em um canal de TV a cabo na minha visita a Talas, no Quirguistão, em 2012. Trata-se de uma sucessão de programas de dança e música folclóricas e de propaganda do governo. Todos os canais. É compreensível que a TV nacional não goze de muita popularidade. Não é possível que as autoridades vejam essas parabólicas com bons olhos, mas talvez tolerem essa pequena rebeldia dos turcomenos pensando no que ocorreria se lhes fosse retirado esse pouco, muito pouco, circo eletrônico, essa possibilidade tão limitada de fugir da realidade. A raiva que sentiriam. Imagino como essa raiva poderia se transformar em uma faísca, e a faísca, numa explosão horrorosa, fazendo voar sangue por todos os lados.

No hotel em Mary dava para assistir, mas não muito bem, o canal de TV estatal Altyn Asyr, ou "Era Dourada", a nomenclatura usada pelo governo para se referir à atual fase histórica do Turcomenistão (um nome aliás muito polivalente no país: é usado para identificar a emissora, um jornal, um shopping center, uma operadora de celular, uma cidade... até um time de futebol). Liguei a TV para ver um pouco esse canal antes de dormir.

Primeiro, o noticiário. Duas reportagens longíssimas, de mais ou menos oito minutos, mostrando exclusivamente imagens de fábricas. Os repórteres responsáveis sequer deram as caras. As matérias pareceram abordar a questão da produtividade e do uso de novas tecnologias. Também evidentemente falavam de metas do governo para este ano, ou talvez das metas para o atual período de cinco anos (seguindo a tradição soviética), e como os operários, gloriosamente, estão se esforçando para bater essas metas. Legados históricos que permanecem.

Terminada a aparente ode ao Plano Quinquenal, apareceu a linda apresentadora, uma senhora com seus 30 anos usando a tradicional tiara imensa coberta com um véu, e trajando um vestido típico, com seu lindo bordado na gola. Propagandas vieram a seguir, uma após a outra, sem parar, longos minutos, infinitos minutos, promovendo exclusivamente dois livros, os dois escritos pelo presidente. Um de cada vez. Primeiro, exibe-se a capa do primeiro livro. Depois, com a câmera exibindo apenas o livro, folheiam-se as páginas, destacando trechos, ilustrações. Para tornar tudo menos entediante, no fundo é usada uma trilha sonora dramática, música instrumental, emocionante, triunfal, que poderia ser encaixada no ápice de um filme de aventura. Enquanto isso, a imagem do livro na tela flutua, de cá para lá e de lá para cá, folhas sendo folheadas, dando dinamismo. Até mesmo a página do índice do livro ganha tempo de exibição. Depois, vem o mesmo para o outro livro. Caio no sono.

Quando acordo, é hora de jantar e saio para encontrar um restaurante. Como em outros países centro-asiáticos, é comum que os restaurantes tenham no salão uma TV ligada mostrando... videoclipes. Costumam ser de canais russos, com as músicas todas em russo. Um tremendo contraste com os programas de músicas folclóricas do canal Altyn Asyr: os videoclipes russos repetem o universo dos rappers e das mulheres hipersexualizadas dos videoclipes americanos. Que mistura na cabeça dos turcomenos e ainda mais das turcomenas, pressionadas de todos os lados para observar as regras de vestimenta tradicional.

Tanto em Ashgabat quanto em Mary, nos hotéis em que me hospedei, os canais russos estavam disponíveis e com boa imagem. Aliás, em Ashgabat, só era possível assistir no quarto do hotel canais russos na TV, nada dos canais turcomenos. Em Mary, a única opção turcomena era o Altyn Asyr. E pegando mal.

O soft power russo se mantém vivo, e muito, no Turcomenistão, apesar de todo o nacionalismo da "Era de Ouro" turcomena.

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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