Saturday 17 June 2023

Novas Fronteiras (XXVIII) - Ashgabat, Turcomenistão



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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

26/8/2018

T, nosso motorista desde que cheguei ao Turcomenistão, já virou um amigo. Hoje seria o dia da despedida dele. Ele havia sido contratado pela nossa operadora de turismo para nos trazer de Konye Urgench a Ashgabat, parando no meio do caminho para ver a cratera de Darvaza. Mas eu e F tivemos uma ideia. Teríamos dias suficientes para ver bem Ashgabat, então pensamos, por que não conhecer melhor a região ao redor da cidade? Chamamos AN, a russa gélida que era, na prática, a chefe do nosso motorista, e fizemos a proposta de que T ficasse um pouco mais conosco, nos levando a alguns lugares interessantes que vimos nos nossos livros-guia.

Embora com russo limitado, e inglês praticamente não-existente, T era um bom falador e sabia se fazer entender bem. Com ele, tive uma rara oportunidade de entender como os turcomenos encararam o regime totalitário no país.

— Concordo com você — me disse T quando conduzia o carro para fora de Ashgabat, para mais perto da cordilheira Kopet Dag, agora claramente visível. — Concordo que o mundo não deveria ter fronteiras. Mas eu me contentaria com menos.
— Menos como? — aticei.
— Já ficaria melhor se tivesse menos "não pode isso, não pode aquilo". Aqui em Ashgabat, olhe à sua volta. Estão te vigiando, vendo se você está tirando uma foto de prédios proibidos ou não.

Ele ficou quieto um instante e eu também. Depois, ele suspirou e continuou, sem tirar os olhos da estrada.

— Uma vez, eu estava com um turista. Como vocês. Estávamos passando perto de um prédio do governo quando ele tirou uma foto. Os policiais viram ele fazendo isso e saíram perseguindo meu carro. Parei, claro. Eles falaram que o passageiro tinha uma "foto proibida". Eu disse a eles que eu, pessoalmente, não tinha culpa. O turista, claro, deletou a foto da câmera na frente deles. Fomos embora, eu pensei que tinha sido apenas um susto. No mês seguinte, a minha empresa, a operadora de turismo, me ligou. Diziam que havia chegado uma multa para mim. 300 manats! Recebi uma multa de 300 manats por algo que não tive culpa nenhuma! Nós, os guias, avisamos os turistas sobre as regras. Por que eu tenho que pagar?
— Me lembra o que meu guia me disse uma vez no Uzbequistão quando eu visitei a primeira vez, em 2001. Ele me disse: "Você é turista, você pode fazer algo errado, mas vai embora amanhã. Eu vou ficar aqui e sofrer as consequências".
— Exatamente. Mas isso é errado. Ganhamos tão pouco, e, ainda por cima, tem isso. Por quê?

Mas não era apenas os excessos da polícia que incomodavam T. Durante o caminho, o motorista começou a me perguntar mais sobre a vida na Europa. A cada descrição de Londres, um sorriso sonhador tomava seu rosto, se desfazendo logo em seguida.

— É muito difícil entrar aqui no meu país. E também é bem difícil sair. Isso é tão ruim... Não deveria ser assim. Olha o Uzbequistão. Estão abrindo. Aqui, não.

Encontrei o mesmo questionamento dias antes, em Konye Urgench, conversando casualmente com um turcomeno no hotel. E, já em Ashgabat, após o anoitecer, em um parque pelo qual eu e F passamos ao voltar para o hotel depois de jantar, um casal percebeu que nós éramos estrangeiros e veio puxar conversa. O homem falava inglês. "Gostaríamos de viver no exterior, mas é difícil para nós, turcomenos. É muito, muito caro. O país é fechado demais, precisamos de visto para ir para praticamente qualquer lugar. Temos que pagar uma taxa para sair. As passagens são caras. Eu tenho sorte; já viajei bastante e continuo viajando. Mas, para o cidadão, em média, isso é impossível", explicou ele.

O isolamento do país vem se sustentando desde o governo de Saparmurat Niyazov, o Turkmenbashi, o primeiro presidente do país após o fim da URSS. É inegável que se trata de algo que vem do gosto de Niyazov, que morreu em 2006. Era sua visão para o destino do Turcomenistão. Certamente outras políticas poderiam ter sido adotadas pelo país após a independência, aproximando Ashgabat de outras nações e grupos, como ocorreu com outros países que fizeram parte da União Soviética. Mas isso não ocorreu, e o país tomou um caminho completamente diferente de seus vizinhos.

Trata-se de algo que está intimamente ligado ao status oficial de neutralidade adotado por Niyazov após a independência como o principal pilar da política externa turcomena. O Turcomenistão se tornou, em 1995, o único país do mundo a ter esse status oficialmente reconhecido pela ONU. Outros países adotam a neutralidade em suas Cartas Magnas ou em declarações formais de seus líderes, mas está claro que a neutralidade turcomena era tão importante para Niyazov que ele achou necessário levá-la ao conhecimento das Nações Unidas. E, desde então, o Turcomenistão tem sistematicamente se recusado a participar de diversas organizações bilaterais, particularmente as que incluem assistência militar mútua, sempre ressaltando o seu status neutro como motivação. Por exemplo, o Turcomenistão nunca ratificou a carta da Comunidade de Países Independentes, a organização multilateral que foi considerada a herdeira da URSS, formada por boa parte dos ex-países soviéticos após o fim do colosso comunista. Os turcomenos permanecem como estado associado, sem serem membros. O país é apenas observador no Conselho Túrquico, a organização liderada pela Turquia que busca unir todas as nações com tal identidade. Nunca foi membro da Organização do Tratado da Segurança Coletiva, a aliança militar liderada pela Rússia; da Organização para Cooperação de Shanghai, um organismo multilateral asiático liderado pela China e pela Rússia; ou da União Euroasiática, tão promovida por Moscou.

A explicação para tal ferrenha neutralidade — que foi mantida sob o presidente Gurbanguly Berdimuhamedow — é que ela seria uma característica própria, histórica dos turcomenos, o que é discutível (acima de tudo porque a existência pré-URSS de um povo "turcomeno" único, além de divisões tribais, não é um consenso). A independência entregou a Niyazov um Turcomenistão que, como os demais da Ásia Central, não tinha uma clara visão do que significava ser um cidadão do país. No período pré-soviético, os turcomenos eram membros das diversas tribos do país, os Teke, os Yomut e outros. Os soviéticos forjaram os turcomenos, deram a eles um status étnico que jamais existira, mas, ao mesmo tempo, criaram a utopia do "homem soviético", uma identidade unificante solidamente ancorada no estado. O fim da URSS destruiu essa identidade e mostrou como a outra era frágil. Com a independência, criar um sentimento de união do povo era vital para garantir a integridade do país, que, do contrário, poderia desmoronar. Isso ocorreu, por exemplo, no Tajiquistão (que viveu uma guerra civil na primeira década após a queda da URSS). Tamanho era o temor (ou paranoia) de Niyazov com o que poderia vir a seguir que ele decidiu se isolar do mundo. E adotar todas as medidas possíveis para criar uma "cultura nacional". Criou isso com a sua visão pessoal, megalomaníaca, excêntrica, até mesmo hostil a estrangeiros, que continua até hoje.

Assim, no processo de construção da identidade nacional que veio após a dissolução da URSS em todos os ex-países soviéticos da Ásia Central, essa política de estado de neutralidade se tornou fundamental. Inclusive, a política ganhou um nome: "Neutralidade Positiva". Na prática, analistas acreditam que, além de reforçar um fator de união do povo turcomeno, Niyazov esperava que a política lhe rendesse valiosos dividendos, mais do que os que obtiveram seus vizinhos da ex-URSS ao rejeitar o isolamento. Teria sido puro pragmatismo. Uma acadêmica, Mariya Omelicheva, assim explicou o cálculo de Niyazov e o que deu errado:

Durante os anos 1990, o status neutro do Turcomenistão permitiu ao governo de Niyazov se livrar de alianças políticas desconfortáveis e acordos econômicos com efeito vinculante que ameaçavam limitar suas alternativas de política externa. Também permitiu ao regime governante reduzir o exército do Turcomenistão e enxugar consideravelmente o gasto militar da república (...) Sob Niyazov, o lado construtivo da "Neutralidade Positiva" era apenas um recurso retórico usado enquanto o seu governo cautelosamente buscava acordos bilaterais e se afastava de laços multilaterais. Isso levou a um quase completo desengajamento do país das relações internacionais e organizações (...)
- Mariya Omelicheva, Eye on the International Image: Turkmenistan's Nation Branding, incluído em Nationalism and Identity Construction in Central Asia: Dimensions, Dynamics and Directions, 2015

Por sua vez, embora Berdimuhamedow tenha decidido manter essa política, o faz de uma forma diferente. Ele passou a usar a "Neutralidade Positiva" como uma espécie de "marca" do país, usando eventos internacionais para promovê-la. O "branding" se tornou parte de uma visão mais abrangente do segundo presidente turcomeno, a de que seu país entrou em uma nova era chamada Altyn Azyr ("Era Dourada"). O interessante é que, mesmo procurando mais contato com o mundo exterior para promover sua marca e assim melhorar sua reputação e atrair investimentos, o Turcomenistão continua isolado. Em resumo: antes, sob Niyazov, o país adotava uma postura de neutralidade que se traduzia em isolamento. Hoje, adota uma postura de neutralidade que se traduz em isolamento e a usa para se promover. Tudo isso, na verdade, seria insustentável se não existisse a imensa riqueza do país em hidrocarbonetos, gás e petróleo, que hoje beneficiam sobretudo a China. Essa riqueza, em última análise, financia o isolamento.

Se em relação ao mundo exterior prevaleceu após a independência o discurso de que a neutralidade e a paz eram características intrínsecas dos turcomenos, internamente havia o risco de narrativas de identidade alheias à oficial estraçalharem o país. Por isso, políticas prejudicando as minorias e, paralelamente, favorecendo a etnia turcomena, sem divisão por tribos, foram adotadas. Logo após a independência, em 1991, Niyazov decretou as medidas que viriam a ser chamadas coletivamente de "Turcomenização". Entre as inúmeras mudanças adotadas estava a exigência de que todos os candidatos a empregos no governo tivessem etnia turcomena. O ensino de russo na rede pública de educação praticamente deixou de existir; o alfabeto cirílico foi abandonado em 1993 em favor do alfabeto latino. A língua turcomena assumiu domínio total. O grau de extermínio da língua e cultura russos no país é notável mesmo comparado com o que ocorreu em outros países centro-asiáticos. Muitos dos russos que viviam no Turcomenistão e chamavam o país de lar há gerações optaram por sair e, segundo levantamentos, a população russa por volta de 2010 havia desabado a um terço do nível pré-independência. Não é à toa que o Turcomenistão é um dos países mais etnicamente uniformes entre todos os da Ásia Central ex-soviética, com a maioria esmagadora de sua população sendo turcomena ou alegando ser turcomena.


* * *

A mesquita mais suntuosa que já vi na vida.

Mármore branco, sinais de ouro por todos os lados. Do chão até o topo da cúpula, 55 metros. Espaço para abrigar 10 mil fiéis. Foram gastos US$ 100 milhões na construção do templo, chamado Türkmenbaşy Ruhy. Inaugurado em 2004, ele lembra, em seu formato e glória, em seu reluzir que sugere ter acabado de ser construído, mesquitas dos milionários países do Golfo Pérsico. Mas tem uma diferença fundamental: além de servir como refúgio para lembrar e louvar Alá, foi erguido para lembrar e louvar o Turkmenbashi, que aqui tem seu mausoléu. Num desrespeito profundo ao Islã, o templo foi profanado pela política. O poder terreno corrompeu o poder supremo de Deus. Frases de Saparmurat Niyazov, tiradas de seu livro Rukhnama ("Livro da Alma"), foram reproduzidas nos minaretes e até dentro do templo, circundando o salão onde os fiéis se ajoelham para orar. É a adoração ao pai do Turcomenistão pós-Soviético em um nível que, mesmo sem ser eu muçulmano, me causa repulsa. Entretanto, ao mesmo tempo que repulsa, não posso evitar sentir deslumbramento com a arquitetura, com o luxo, com o brilho, com as cores, com o tesouro que a construção representa. É contraditório. Uma sensação parecida com a de andar no centro de Ashgabat. Maravilhoso, mas, em última análise, triste e revoltante.

Não esperava que esse experimento do governo turcomeno, sua tentativa de afogar os pensamentos dissidentes usando a riqueza e a suntuosidade, fosse atingir até o Islã. Nesta visita ao vilarejo de Gypjak, onde nasceu Niyazov, eu esperava ver monumentos a ele, seu mausoléu e, claro, mesquitas, madrassas, palácios. Mas não uma mesquita-mausoléu como esta, em que as frases da Rukhnama parecem em pé de igualdade com o próprio Corão. O Islã centro-asiático tradicional incorpora elementos que são alienígenas aos seguidores mais conservadores da Fé. Um exemplo de manifestação desse Islã tradicional é a existência dos mazars, os mausoléus de homens santos sufis, idolatrados por muitos que visitam essas construções para rezar, esperando chegar mais perto de Alá por estar mais perto do local de descanso final desses venerados sufis. Mas em todos os mazars que visitei (como os do sul do Cazaquistão, em 2012), não vi fotos ou retratos dos santos, nem seus dizeres espalhados pelas paredes. Converter a casa de Alá em um exercício de vaidade ou de promoção, como ocorreu na mesquita Türkmenbaşy Ruhy, não me parece correto em nenhuma hipótese do alto do meu limitado conhecimento sobre a religião. Politicamente, contudo, faz todo o sentido. Afinal, o Turkmenbashi em si foi instrumentalizado pelo governo turcomeno para construir a identidade do povo. Essa idolatria se misturou à religião se aproveitando do desconhecimento dos preceitos do Islã (um legado soviético). Tudo agora é identidade turcomena, ou, pelo menos, é o que almejam as autoridades. Para elas, quem não aceita a versão do Islã, oficial, que permite a homenagem a Niyazov no Türkmenbaşy Ruhy, é um potencial insurgente. Religião é poder, e o governo se apossou dela. Além disso, o Islã não-oficial frequentemente é associado pelas autoridades ao extremismo, ao terrorismo, ao que é estrangeiro e quer destruir o país, o que só reforça o isolamento.

Me vem à cabeça a visita que fiz ao mausoléu de Islam Karimov em Samarkand; era uma construção bonita, mas muito mais singela. E não ficava dentro de uma mesquita, ficava fora. Nada nela sugeria que Karimov almejava ser lembrado como um Profeta. É exatamente essa a sensação que tive visitando a mesquita Türkmenbaşy Ruhy. Niyazov, o iluminado grande líder, foi seguido pelo presidente Gurbanguly Berdimuhamedow, que reivindicou para si o título de guardião do povo, ou Arkadag em turcomeno. Será que Berdimuhamedow também almeja ser lembrado como um Profeta quando morrer?

Um sinal, talvez, auspicioso. A mesquita estava completamente vazia durante minha visita. E, dizem, assim costuma permanecer, talvez porque, para muçulmanos praticantes, igualar a Rukhnama ao Corão nunca poderá ser aceito. Mesmo em um regime totalitário como este.


Depois de admirarmos e ficarmos entorpecidos com tamanha megalomania, circulamos pela região atrás de outros pontos de interesse. T sugeriu visitar a ruína da ancestral Nisa. Eu havia ouvido falar apenas vagamente de Nisa — algo que, aparentemente, é inconcebível para muitos turcomenos, afinal, é um dos sítios arqueológicos mais importantes do país.

A cidade, também chamada de Parthaunisa ou Mitradacerta, é um dos mais conhecidos centros do Império Parta, que existiu aproximadamente entre os séculos III a.C e III d.C. Dos partas, sabe-se que, como outros impérios que surgiram na região após a conquista de Alexandre, o Grande (356 a.C.- 323 a.C), tinha uma cultura com forte influência grega, tanto na arquitetura quanto nas artes decorativas. Surgiu como uma dissidência do Império Selêucida, império este fundado por um general de Alexandre. Em seu apogeu, o domínio dos partas se estendia até onde hoje fica o Afeganistão e o Paquistão, no leste; até o Golfo Pérsico, no sul, e o leste da Turquia, no oeste. No norte, suas terras ocupavam a costa sul do Cáspio e o atual Turcomenistão.

A importância dos partas para a história da Ásia Central pode ser vista de várias formas. O império representou a continuidade do processo de helenização iniciado por Alexandre, mas também o primeiro passo na construção de um centro de poder legitimamente centro-asiático, se consideramos centro-asiático apenas o território dos cinco países que faziam parte da URSS na região. Até então, o Turcomenistão era o território de tribos domadas e controladas por grandes forças que vinham de outras partes, como os persas aquemênidas de Ciro, os macedônicos de Alexandre e os seus sucessores selêucidas. Os partas, porém, eram uma tribo local, e, ao se expandirem, levaram elementos de sua própria cultura centro-asiática (como a língua parta), mesclando-os com outros que encontravam no caminho. Talvez, então, possam ser considerados o primeiro império genuinamente local, centro-asiático. Acredita-se que Nisa, localizada perto do berço da tribo, tenha sido uma das suas capitais. Teria sido um centro rico e influente, se beneficiando do comércio que já existia entre o extremo oriente e o Império Romano no que viria a ser a chamada de Rota da Seda.

Estacionamos o carro ao lado de um portão que, por sua vez, ficava ao lado de um terreno com terras altas de barro seco, quase sem vegetação, como é o contumaz no caso de ruínas escavadas da Ásia Central. Uma placa indicava que o sítio havia sido incluído pela Unesco em sua lista de patrimônios culturais mundiais, como ocorrera com Sarazm, que visitei no Tajiquistão. Mas este sítio tem uma diferença em relação ao tajique. Para visitar Nisa são cobrados 30 manats, ou quase US$ 9, enquanto que as visitas a Sarazm e à vizinha ruína de Penjikent têm entrada gratuita. Pagamos, considerando que, mesmo sendo cara para padrões centro-asiáticos, a entrada ainda ficava abaixo dos US$ 10, nada absurdo para nosso orçamento.

Os estudiosos acreditam que Nisa abrigava, além de um palácio real, templos e um mausoléu dos reis partas. Era incomum em vários sentidos se comparado a outros assentamentos helenísticos. A cidade tinha, por exemplo, um perímetro pentagonal e era cercada por uma muralha poderosíssima, feita de argila batida e com largura impressionante, estimada em até 9 metros, ainda visível na forma da elevação no terreno ao redor dela (ao lado da qual paramos nosso carro). Não apenas o muro era superdimensionado; outras edificações encontradas no local eram grandes demais para o padrão da época, assim como as estátuas de argila que foram encontradas. Os objetos escavados reforçam a impressão da imensa riqueza dos reis que aqui moraram. Em Nisa, foram encontradas as primeiras estátuas de mármore na Ásia Central, além de um conjunto inestimável de ritões, cálices no formato de chifres, ricamente decorados, para o consumo de vinho. Um cronista grego dos séculos II e III, Filóstrato, eternizou em uma tentadora descrição a exuberância do palácio real:

O teto estava coberto de cobre e tinha um brilho forte. Dentro, havia aposentos para homens e mulheres e pórticos reluzindo com ornamentos de prata e ouro. Pratos de puro ouro foram incrustados nos muros como retratos. Havia tapeçarias usando motivos da mitologia grega e cenas das guerras greco-persas. Um aposento para homens tinha o teto imitando o céu. Era completamente coberto de azulejos azuis (...)
- Filóstrato, Imagens (citado em Edgar Knobloch, Monuments of Central Asia - A Guide to the Archaeology, Art and Architecture of Turkestan, 2001)

O auge dos partas veio por volta do primeiro século antes de Cristo. Foi nessa mesma época que Nisa também começou a se despedir da história, sendo atingida por um terremoto na primeira década a.C. Um novo assentamento, chamado de Nova Nisa, foi logo construído não longe da Nisa dos reis partas, perdurando até a idade média. Mas a capital helenística seria abandonada em definitivo com a queda do império no século III. Os partas seriam sucedidos pelo Impêrio Sassânida, o último grande império persa antes da chegada do Islã.

As palavras de Filóstrato em nada me ajudaram a encontrar um sentido nos esboços de argila à minha frente. Nisa, se um dia foi gloriosa, exige uma igualmente gloriosa imaginação para que seja possível enxergar seus palácios e muralhas. Caminhamos pelas ruínas esperando ver alguma placa informativa para ajudar a colocar em ordem o quebra-cabeças de paredes e câmaras restauradas e reconstruídas no terreno de cerca de 700 metros quadrados. Elas existem, mais são pouquíssimas e quase inúteis, puramente descritivas, sem apresentar o contexto geral da ruína. O que se vê é uma sequência de aposentos escavados de barro no terreno árido, sem teto, varridos pelo vento, e completamente sem visitantes ou mesmo administradores.

Passamos uns 20 minutos circulando entre as paredes lisas, espiando o céu azul entre um muro e outro. Depois, mais meia hora apenas caminhando sobre o que fora um dia a colossal muralha, espiando as lindas montanhas vizinhas da cordilheira Kopet Dag, nem olhando mais direito para a escavação. Na minha cabeça, apenas repetia que um local como a velha Nisa poderia ser uma atração turística fantástica, imperdível, com o tratamento correto para receber visitantes. Mas não como está. Ter acesso a mais informações sobre as câmaras escavadas e reconstruídas para entender o que eram na antiga cidade, ou a um pequeno centro de visitação com alguns objetos resgatados da ruína (todos levados para museus), ou ao menos a um folheto em inglês com o básico sobre Nisa, seria algo natural tendo em vista que uma entrada foi paga.

Nisa é um bom exemplo de como o Turcomenistão encara o turismo. O esperado pelas autoridades é que o visitante se entregue a excursões caras com guias experientes que lhe expliquem tudo o que lhe for mostrado. Turistas sem guias: ou se preparem bem, com antecedência, para tudo o que irão ver ou corram o risco de terem uma experiência frustrante.

Ashgabat, 26/8, 22h

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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