Sunday 26 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XVII): Bukhara

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Este texto faz referência à minha visita anterior a Bukhara, relatada nos capítulos VI e VII de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); clique aqui para relembrar

11/9/2012

Inacreditáveis ecos brasileiros na Ásia Central.

Ontem, antes de dormir, ainda com os shashliks e a cerveja choca festejando na barriga, decidi assistir um pouco de TV. No hotel, por US$ 15 por noite (incluindo café da manhã), me deram acesso a um quarto coletivo, com quatro camas. Tirando o barulho do entrar e sair dos mochileiros, a cama era confortável, tudo estava limpo, não havia mosquitos e, a cereja no sundae, o quarto tinha uma TV colorida com TV a cabo digital - centenas e centenas de canais. Zapeando, descobri canais em uma dezena de línguas diferentes. E, entre eles, um canal brasileiro. Se me falassem, eu não acreditaria. Ou acreditaria que poderia ser a Globo Internacional. Não, tratava-se de um canal religioso chamado "Canção Nova". Na tela, uma mulher pregando, em minha língua, para uma numerosa plateia. "O leão do pecado ruge... RUGE... RUGE..." Eis a mensagem que viajou milhares de quilômetros para falar só comigo. Fico pensando se há algum significado oculto por trás disso.

Hoje, novo assombro. Em um internet café/central telefônica em frente à Labi-Hauz, eu estava enfrentando o mouse com defeito para mandar notícias para a família e para os amigos. Um casal que nem vi chegar estava de pé em frente ao balcão, falando com o responsável pelo lugar. Logo se percebe que estavam tentando fazer uma ligação para o exterior de um dos telefones disponíveis. O dono do local coloca o telefone no viva-voz para que o casal possa entender o problema que está acontecendo na conexão. Ouve-se a gravação dizendo "este número de telefone não existe". Em português brasileiro e volume bem alto, invadindo os ouvidos de todos.

Levanto na hora. Foi uma reação completamente impulsiva. Fiquei muito surpreso, de verdade, meu coração disparou. Muito estranho ouvir a voz na sua cabeça passar para o mundo real. Após levantar, fui direto ao balcão e perguntei em inglês: "Quem diabos é do Brasil?"

O casal era formado por um homem mais velho, grisalho, uns 60 anos, e sua esposa, de uns 35 anos, ambos morenos de Sol. Risonhos e calmos, não demonstraram nem metade de minha surpresa. Eram de Minas. Estavam acompanhados de uma guia uzbeque que falava espanhol. Com ela, estavam fazendo o circuito básico do Uzbequistão, o mesmo que fiz em 2003 - Tashkent, Samarkand, Khiva e Bukhara. Armaram a excursão com uma operadora do Brasil e esta parte do Uzbequistão se seguiu a uma visita à Armênia. Uma viagem certamente com um preço bem salgado.

Conversamos por uns dez minutos, caminhando pela cidade. Foi muito agradável. Falamos justamente de como é caro vir do exterior para cá, mas como é barato viajar dentro do Uzbequistão. Falaram que estavam adorando tudo o que viam no país. Tentei incentivá-los a continuar o bate-papo - tudo era tão surreal para mim, falar com brasileiros que encontrei por acaso tão longe de casa. Mas o casal na verdade não parecia querer conversar tanto quanto eu. Especialmente quando eu incluía, na conversa, elementos sobre a história de Bukhara e do Uzbequistão. Senti uma certa tristeza ao perceber que eles pareciam não se importar, ou não pareciam entender, o meu deslumbramento em estar nesta terra tão distante, num lugar praticamente desconhecido pelo Ocidente e fora do radar do mundo até o final da União Soviética. Num lugar onde estrangeiros, há 170 anos, corriam o risco de serem executados em praça pública como espiões por estarem aqui. Um fato que realmente aconteceu.

Trata-se do trágico destino, em 1842, de dois oficiais do Exército britânico, o coronel Charles Stoddart e o capitão Arthur Conolly, em um dos episódios mais notórios do chamado "Grande Jogo", como ficou conhecido o período em que os impérios britânico e russo lutavam pelo controle da Ásia Central durante o século XIX. Stoddart fora enviado ao Emirado de Bukhara em 1838 com a missão de obter uma aliança com o emir Nasrullah Khan contra o avanço dos russos na região. Contudo, Stoddart, provavelmente com a arrogância típica dos militares britânicos da época, cometeu uma gafe diplomática atrás da outra no seu encontro inicial com o emir, levando o monarca a ficar furioso e prendê-lo, colocando-o em um buraco infestado de insetos.

O governo britânico, ocupado então com guerras no Afeganistão e na China, não deu muita importância para a prisão. Uma missão de resgate, porém, foi montada por Conolly, um experiente "jogador" do "Grande Jogo" - aliás, ele fora o próprio criador do termo, usado pela primeira vez em uma carta enviada por Conolly a um amigo em 1840.

Ao se encontrar com o emir, Conolly, porém, foi novamente alvo da fúria do monarca - que esperava receber uma carta da rainha Vitória em resposta a uma missiva que ele havia enviado a Londres. Incentivado pela percepção de fraqueza dos britânicos devido a uma recente derrota no Afeganistão, acreditando que não viriam represálias, Nasrullah Khan decidiu decapitar os dois britânicos em praça pública, em frente à Ark, a fortaleza do monarca na cidade.

Este é um resumo da história, que tem nuances incríveis e que resumem bem um dos períodos mais fascinantes da história da Ásia Central. Quem melhor colocou essas histórias no papel foi o britânico Peter Hopkirk, em um estilo, claro, um tanto tendencioso, ressaltando a glória dos emissários da rainha. Assim, segundo ele, foi o momento da decapitação.

Primeiro, sob o olhar da multidão em silêncio, os dois oficiais britânicos foram forçados a cavar suas próprias sepulturas. Então eles foram ordenados a se ajoelhar e se preparar para a morte. O coronel Stoddart, depois de denunciar em voz alta a tirania do emir, foi o primeiro a ser decapitado. Em seguida, o carrasco se virou para Conolly e o avisou que o emir lhe havia oferecido a oportunidade de ter a vida poupada se ele abdicasse do Cristianismo e abraçasse o Islã. Ciente de que a conversão forçada de Stoddart não o havia salvado da prisão e da morte, Conolly, um cristão devoto, respondeu: "O coronel Stoddart era muçulmano há três anos e vocês o mataram. Eu não me tornarei um e estou pronto para morrer". Então ele esticou o pescoço para o carrasco, e um momento depois sua cabeça rolou na poeira ao lado da de seu amigo.
- Peter Hopkirk, The Great Game

De volta à realidade, à muito diferente Bukhara de hoje. Quem sim ficou muito curiosa comigo, já que o casal de brasileiros estava mais interessado em ficar sozinho, acabou sendo a guia, que parecia perplexa em saber que esta era minha terceira viagem ao país e me perguntava por que eu gostava tanto do Uzbequistão. Não é a primeira vez que um uzbeque me pergunta isso. Respondo com sinceridade e simplicidade: "Olhe à sua volta!"

O encontro com os visitantes brasileiros provou como Bukhara de fato está se tornando um polo turístico internacional, como não é mais um destino apenas para aventureiros audaciosos. É claro que Bukhara ainda não é uma Paris e nunca será - é simplesmente longe demais de qualquer grande centro, do Ocidente e mesmo do Oriente; por isso sempre será caro chegar aqui e, quem vier, tem que estar disposto a uma longa viagem. Até mesmo os brasileiros estão passando a explorar a mítica Rota da Seda. Que bom! Quem sabe se, com mais dinheiro do turismo, alguma das velhas mesquitas caindo aos pedaços nas ruas ao redor da Labi-Hauz possam ser salvas.

Por outro lado, me bate o medo de que a cidade vá virando cada vez mais uma armadilha para turistas, seguindo o modelo americano, e perca completamente a sua alma. Os preços explodiriam, apenas ônibus de excursão tomariam as ruas, a vida deste centro maravilhoso seria espremida para fora dele, lembrando o museu a céu aberto que é a cidade velha de Khiva, no oeste do Uzbequistão - linda, mas quase morta.

Sinto que isso já está acontecendo. Mas torço para que a transição nunca se complete.


* * *

Não havia visitado este santuário do kitsch em Bukhara antes.

No palácio de verão do último emir, a cerca de 6 km da Labi-Hauz, o monarca Alim Khan (bisneto de Nasrullah), que governou de 1911 a 1920, combinou os esforços de arquitetos russos e artesões locais para criar em sua propriedade um jardim com rosas, árvores frutíferas, pavões... e uma orgia decorativa nos seus aposentos. Chamado Sitorai Mokhi Kosa (algo como "Palácio das estrelas parecidas com a Lua"), ele foi erguido no final do século XIX e inaugurado auspiciosamente em 1917, o ano em que os bolcheviques tomaram o poder em Moscou, três anos antes de acabar com o Emirado de Bukhara e anexá-lo à URSS.

Foi um capricho arquitetônico de Alim Khan e, pelo jeito, ele adorava cores. O teto da primeira casa do complexo do palácio, a que encontrei mais perto da entrada, é uma estonteante combinação de vidros coloridos, espelhos, áreas folhadas a ouro, alto relevos, pinturas. Uma mistura maluca. As paredes seguem a mesma regra. Em cada sala, padrões estéticos diferentes, detalhes que se chocam com força. Obviamente tudo é muito bonito, mas isoladamente. Juntos, todos os detalhes fazem doer os olhos, criando uma extravagância enjoativa e sem sentido. Na terceira e última casa do complexo era onde ficava o harém, e à beira dela o emir mantinha uma piscina para suas cortesãs. Também ao lado da piscina, até hoje está uma plataforma de madeira na qual se sobe por uma escada. Lá o monarca ficava em seu trono, olhando maravilhado a formosura das formas femininas se banhando à sua frente. Dizem que do alto da plataforma ele escolhia sua "vítima" e jogava à bem-aventurada uma maçã para indicar à moça que teria que trabalhar.

O complexo é hoje ocupado por museus com roupas, bordados e objetos do último emir. Os objetos são belos, mas a impressão que causam não é nada comparada com a das cores e brilhos dos tetos e das paredes do palácio. A mente é transportada para o mundinho do emir, suas preocupações fúteis e sua vida de luxos e banalidades como fantoche do Império Russo, explorando seus pobres súditos, até ser eliminado após uma longa sobrevida pela máquina bolchevique com a ajuda de aliados locais. Refletindo sobre os traidores e o destino do Emirado de Bukhara, passei um pouco pelos jardins, devorando uma ou outra maçã colhida das árvores, pensando depois se não estavam contaminadas por agrotóxicos vencidos desde os tempos do comunismo.

De volta à cidade, à perfeição suave de suas madrassas e mesquitas, atravesso vielas rumo à Ark. No meio do caminho, entro por ruas que nunca explorei, seguindo um mapa que nunca vi em meu guia. Logo estou no lar de um dos responsáveis pela derrocada do vaidoso último emir.

Estou na casa de Fayzullah Khojaev, quem, pode-se falar sem receio, é um dos pais do Uzbequistão moderno. Nascido em 1896 uma família de ricos mercadores em Bukhara, Khojaev logo seguiu pelo caminho da contestação ao absolutismo do emir. Seus anos formadores foram em Moscou, para onde seu pai o mandou para estudar na juventude. Percebendo como sua Bukhara era atrasada em relação ao mundo do czar, uniu-se a um movimento chamado jadidismo, que pregava o reformismo islâmico e a união dos povos turcos. Posteriormente, com astúcia, vendeu-se como um contato confiável para os bolcheviques, convidando-os a tomar o anacrônico emirado à força. Quando finalmente o emir caiu, em 1920, Khojaev assumiu o controle sobre o executivo da breve República Popular Soviética de Bukhara. Em 1925, com a mudança dos mapas estabelecida por Stálin, Bukhara se fundiu a territórios vizinhos e surgiu a República Socialista Soviética do Uzbequistão, com Khojaev como seu primeiro chefe de governo. Mas a carreira política, como a de tantos outras estrelas ascendentes da União Soviética nessa época, seria abreviada pelos expurgos de Stálin durante o Grande Terror dos anos 30.

O legado de Khojaev é um tanto maldito. No país, nunca vi monumentos a ele. De fato, não encontrei ruas nem praças com seu nome. Pode-se interpretar que, na verdade, Khojaev incitou os bolcheviques a acabar com o que restava do orgulho de Bukhara e do khanato de Khiva (também protetorado russo até então) antes de os dois se tornarem o Uzbequistão soviético. Ao estimular o surgimento de um novo país, fez um pacto maldito pelo poder, sendo inegavelmente ambicioso e inteligente como todo bom político. Assim, "vendeu" o Uzbequistão aos bolcheviques. Na independência, Karimov não o resgatou, preferiu Tamerlão.

Sua casa é hoje um museu. O luxo da propriedade da família Khojaev não é comparável com o da residência de verão de seu nêmesis emir. Entretanto, não faltou fartura e requinte aos seus familiares. A casa foi toda restaurada; especialmente elegantes são as colunas feitas de troncos inteiros, cheias de detalhes esculpidos com esmero. Elas seguram o teto em amplas varandas com vista para o pátio-jardim. Nessas amplas varandas, as camas tradicionais, miniplataformas quadradas onde se pode recostar para tomar chá e comer frutas secas. O pátio está colorido de flores. As paredes brancas da casa traz elementos decorativos cuidadosamente desenhados em azul.

A combinação torna o ambiente leve, lembra até um ambiente praiano. Bom gosto. Que contraste em todos os sentidos com o que se vê no palácio do emir.

Que lindo fim de tarde de verão.

Trem Bukhara-Samarkand, 12/9, 09h07

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2 comments:

  1. Rafael, a foto de abertura é um dos mais belos contra-luz que já vi! parabéns!

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