Sunday 19 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XV): Tashkent

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

9/9/2012

Comecei bem cedo - 6h20 estava de pé, arrumando a mochila, o Sol ainda nem tinha se levantado, e a movimentada rua do hotel em Turkistan estava vazia. É o início de um período mais intenso na minha viagem: a partir de agora, passarei menos tempo em cada lugar. Há muito, muito que quero ver. Já sinto falta da lenta contemplação do mausoléu de Yassawi, do faroeste de horas em Sauran, olhando fantasmas de argila e poeira.

Pego a van rumo a Shymkent na companhia de um francês incomum. Um ser franzino, alto, grisalho e com olhos saltados. Aparentava ter uns 45 anos. À primeira vista, me pareceu doente - sua pele branca tinha um aspecto pouco saudável, pálida, meio esverdeada. Também a princípio me pareceu meio assustado com a bagunça natural da negociação de preços para o transporte, como se não estivesse familiarizado sobre como as coisas funcionam por aqui. Descobrimos logo que estávamos hoje a caminho do mesmo lugar - Tashkent, a capital do Uzbequistão. Naturalmente, combinamos forças para cruzar a fronteira, sempre um evento potencialmente problemático por aqui. Nada melhor que ter um aliado, alguém para te ajudar se as coisas apertarem com guardas querendo propinas, por exemplo. Todo esse processo de enfrentar as fronteiras me enche de desconforto, mas hoje me sinto estranhamente confiante. Nesta negociação com o dono da van que nos leva a Shymkent, por exemplo, fui o líder - o motorista tentando nos extorquir ao máximo, vendo a mim e ao francês como cifrões ambulantes, como é natural para eles. Arranquei com teimosia um preço bom, sinto-me orgulhoso do meu russo básico, evoluindo lentamente.

Na estrada, conheço mais meu colega francês, e a impressão inicial muda um pouco. Não lhe perguntei o nome. Extremamente culto, com mestrados e PhD em estudos culturais, anos de livros nos olhos. Frágil como parece, vestido com uma bata indiana e levando uma bolsa com poucas roupas, esteve em muitíssimos países da Ásia, inclusive em pelo menos dois lugares que sonho em conhecer - o Afeganistão (visitou duas vezes) e o Turcomenistão (uma vez, com, naturalmente, um visto de trânsito, a única forma de viajar de forma independente pelo país). Descreveu como o momento mais difícil de todas suas jornadas pela Ásia a travessia da remota divisa turcomano-afegã, no meio do nada, sozinho, longe de qualquer ajuda, tentando entender todas as burocracias necessárias sem falar as línguas dos guardas de fronteira. Conta com empolgação como conseguiu (sortudo) o visto de trânsito de dez dias para o Turcomenistão (o cônsul francês na capital turcomana, Ashgabad, o ajudou). Em geral, os que tentam pegam vistos de três dias, ou, com sorte, de cinco ou sete. Dez, eu nunca havia ouvido falar.

Franzino é um exemplo exótico dos muitos viajantes estrangeiros que cruzam o Turquestão, uma espécie com diversas raças. Há quem se iluda e pense que são todos iguais - jovens movido por um espírito como o de David Livingstone, o famoso explorador britânico do século XIX. Entre esses é fácil incluir alemães ou australianos com mochilas cargueiras, mapas, com os olhos escancarados, buscando o mundo selvagem ou subdesenvolvido que não encontram em suas urbes. Contudo, há viajantes e viajantes. Franzino me sugere o viajante peregrino, sereno, buscando elucidação espiritual. Sem acompanhante, enfrentando a si mesmo, encontrando a si mesmo. Respirando o mundo invisível, indo até os confins do globo em uma tentativa de se aproximar de Deus, o Deus que o inspirou nos livros, ou que o inspirou em algum episódio doloroso que superou em sua vida. Ou que o inspira em um momento difícil, presente, de sua existência. Eu não sei o que sou nesse contexto. Quem sabe um pouco de franzino, quem sabe um pouco de Livingstone.

Franzino fala de histórias fantásticas de extrema falta de conforto (penitência?) no Tajiquistão, para onde me dirijo após rever as terras uzbeques. Mas quando ele começa a lembrar, em seu ritmo calmo e ponderado, dos inúmeros livros que leu sobre a região, entre tomos de viagem e filosofia, me perco no meu sono. Um sono confortável, envolvente, teoricamente impossível nesta estrada horrorosa de buracos e desvios. Com minha cabeça batendo no banco da frente da van, babando, sonho com praias e mulheres. Fui em um instante para muito longe. Litoral norte de São Paulo. Numa manhã de verão e mar calmo.

Foram, me pareceu, apenas segundos de desvario. De repente estou em Shymkent, novamente na rodoviária onde peguei a van para ir a Turkistan.

Encaramos a preocupação de não achar transporte para Tashkent. Nada de ônibus. O alívio veio quando descobrimos que a melhor opção nos aguardava nesta rodoviária mesmo - não teríamos que nos deslocar para outra da cidade, o que atrasaria tudo. A melhor opção é pegar uma van que nos deixará na fronteira, atravessá-la a pé e, do outro lado, pegar transporte para Tashkent. Como a divisa é do lado da capital uzbeque, não imaginei que teria muitos problemas em encontrar transporte para o centro depois de enfrentar os guardas fronteiriços.

Com o local de onde partiria nossa van localizado, e confirmado o preço do transporte, atacamos um café da manhã na rodoviária. Eu fico com uma grande caneca de kvas (uma bebida fermentada típica dos países eslavos) e três sansas incomuns. As sansas centro-asiáticas são parecidas com as samosas indianas - pequenos pastéis triangulares com recheios diversos. Mas enquanto a samosa indiana é frita, por aqui elas são em geral folhadas e assadas. Em geral. Estas daqui são diferentes. Se parecem a esfihas fechadas, bem gordinhas. Gostosas, mesmo sendo a carne do recheio cheia de gordura e nervos. Mesmo tendo a qualidade universal de comida de rodoviária.

Aproximadamente duas horas depois, já na fronteira, relembro com grande desgosto um problema fundamental de visitar o Uzbequistão: a obrigação de preencher, na entrada, um formulário descrevendo todo o dinheiro que se carrega, com detalhes, separando os montantes por tipo de moeda. Estou levando uma boa dinheirama, em dólares e libras, além de um pouco de tenges cazaques e soms quirguizes, e me incomoda revelar para guardas potencialmente corruptos que eu sou um alvo apetitoso. Uso duas estratégias. A primeira: arredondo o total para menos, bem menos, imaginando que se os senhores flagrarem que estou mentindo, digo que errei no cálculo. A segunda: descrevo apenas o que levo em libras esterlinas, que é de fato a maior parte do que levo, e ignoro o que tenho em dólares, que é bem menos. Isso porque imagino que, enquanto que a maioria das pessoas por aqui sabe exatamente o valor do dólar, do euro e do rublo russo, poucos sabem quanto vale a libra.

Uma hora de fila. Entrego o formulário e vivo o momento inevitável de tensão, mas atravesso a fronteira sem problemas após o carimbo entediado da burocrata de uniforme.

De fato, é surpreendentemente curta a distância entre o posto de fronteira de Chernyaevka e o centro de Tashkent. Logo ao pisar no Uzbequistão, encontramos um taxista e, 20 minutos depois, eu já estava entrando no metrô da ensolarada capital. No dia em que o Cazaquistão invadir o Uzbequistão, Tashkent será um alvo bem mais fácil para os cazaques do que a capital cazaque Astana, milhares de quilômetros ao norte, será para os uzbeques.


* * *

Rever Tashkent! Após nove anos! Ao entrar na cidade, não a reconheci. Mas logo o taxista nos deixou no mercado Chorzu, que eu visitei logo na minha primeira viagem em 2001 e revi em 2003, e logo uma sensação de déjà vu tomou conta de mim. De cara, mesmo reconhecendo o prédio principal do mercado - uma grande meia-laranja de concreto - percebi como o Chorsu havia mudado. Áreas que em 2003 estavam em construção estão agora terminadas, mais urbanizadas, menos caóticas. Me despeço rapidamente de franzino, que, por boas horas, foi um irmão para mim, me passando calma e otimismo.

O metrô, um maravilhoso legado da era soviética. O frescor do mármore subterrâneo e os trens da era comunista me receberam como velhos amigos. Este mundo sob a terra é todo um alívio frente ao calor intenso lá fora. Fui direto ao sul da cidade, onde eu já havia reservado um excelente hotel por uma noite. Fico em um bairro com grandes casas atrás de grandes portões que escondem e enganam, dando a impressão de que muitos desses châteaus são casas simples. Não, nada disso. São formidáveis residências, com pátios deliciosos, com árvores, sombra, deleites. São as casas tradicionais. E bem perto, descendo uma rua ou avenida, o que talvez hoje também pudesse ser chamado de "tradicional", a velha arquitetura soviética: grandes blocos residenciais, entediantes, feios. A feiura, amenizada com detalhes exóticos na fachada, como maquiagens dando um gosto centro-asiático a esses edifícios nascidos sem alma. Fachadas interessantes, entretanto, são apenas fachadas. O metrô, os prédios: os soviéticos ainda estão presentes e ficarão presentes por muito tempo.

O alfabeto. Nesta volta, tenho impressões chocantes que não tive antes. Em primeiro lugar, me sinto estranho em ver esse alfabeto. O governo uzbeque adotou o alfabeto latino, diferentemente do Cazaquistão e do Quirguistão. Embora o alfabeto cirílico dos tempos soviéticos ainda esteja presente em Tashkent, está ficando cada vez mais raro - certamente mais raro do que nas minhas visitas anteriores. Com o alfabeto latino, fica bastante evidente como o uzbeque se parece ao turco.

O segundo choque é em relação à propaganda estatal. Como no Cazaquistão, ela está por toda a parte - em outdoors, em cartazes em muros, em painéis gigantes em prédios. Mas, se no Cazaquistão há uma grande ênfase na figura de Nazarbayev, por aqui quase não se vê fotos do ditador local, Islam Karimov. Na fronteira, do lado uzbeque, logo vi uma frase atribuída a ele em um grande letreiro. No sul da cidade, em um parque, encontrei uma pequena foto dele juntamente com cidadãos do país. E foi só. O resto da quase unipresente propaganda estatal faz alusão ao recente Dia da Independência, primeiro de setembro, e aos 21 anos de vida da República do Uzbequistão. Há muitos temas patrióticos nesses cartazes de propaganda: a bandeira, prédios históricos, jovens e velhinhas com trajes típicos. O mais frequente, porém, é a figura de Tamerlão, adotado por Karimov como herói nacional e símbolo do orgulho da pátria logo após a independência. Assim, se tem a impressão de que o culto de personalidade de Karimov aqui é menos intenso do que no Cazaquistão.

Difícil dizer se a imagem de Karimov não é tão popular aqui como é a de Nazarbayev no vizinho do norte, se é por isso que ele não aparece mais nas propagandas. Analistas vieram com algumas interessantes teorias para explicar essa menor exposição. Em uma delas, Karimov, como pai fundador do recém-nascido país em 1991, estabeleceu uma estratégia para desenvolvimento da identidade nacional que passa por trazer ao presente um momento glorioso do passado uzbeque e usá-lo como inspiração, referência e matéria-prima para a união do povo de seu país. O passado escolhido foi o de Tamerlão, que nasceu no atual território uzbeque. Por outro lado, no Cazaquistão, a construção da identidade nacional seguiu o caminho do futuro - a inspiração está nos monumentos futuristas de Astana, nos planos mirabolantes de construção em Turkistan, no presidente prometendo que o Cazaquistão brilhará neste século e no início da construção desse sonho na forma de urbanismo. Visto que boa parte desse futuro ainda não existe, Nazarbayev, como um profeta ou arauto, ganha o destaque. O construtor do futuro, ao redor do qual todos os cazaques se unem.

Uma outra teoria acadêmica, igualmente interessante, foca as atenções no uso da imagem de Tamerlão não para exaltar um passado mítico e usá-lo como argamassa da nação, mas para ser a viga sólida que sustenta o regime atual. De acordo com essa teoria, Karimov tem no Uzbequistão também um culto de personalidade, quiçá ainda mais pronunciado do que em seus vizinhos. Mas, aqui, Tamerlão é a personalidade celebrada como símbolo do líder ideal, no que se refere a seu talento administrativo, sua habilidade de construir um império e ser justo, sábio, mas ao mesmo tempo, duro, implacável. Para Karimov, Tamerlão seria o modelo de estadista, a personificação de tudo o que ele acredita que seja necessário a um líder uzbeque. Assim, o conquistador ganha proeminência como uma máscara; as estátuas, as imagens de Tamerlão, todas são, dissimuladamente, de Karimov.

E, assim, o país vai se distanciando dos tempos soviéticos. Abraçando um passado muito mais distante para construir uma nova era.

O que foi este psicótico, tardio episódio de domínio soviético senão um esforço sustentado de por um fim à história de uma vez e expulsar esses fantasmas de todos os tempos? Agora chegou a hora do nacionalismo de Tamerlão, uma ideologia firmemente assentada no desenvolvimento de formas próprias de bizarrice antiquada, com seu gigante cavalo de ferro - estátuas erguidas em cada cidade e outdoors anunciando o decreto extático em grandes letras romanas: "O FUTURO DO UZBEQUISTÃO É COM CERTEZA GRANDE!"
- Larry Frolick, Grand Centaur Station


* * *

De noite, desfruto ao máximo do meu hotel três estrelas. De vez em quando, nessas longas viagens, é bom investir em um lugar mais confortável para recuperar as energias. Que diferença do hotel Turist de Shymkent! Me jogo na cama king size, no edredom branquíssimo e fofo, para delirar com a maravilhosa TV uzbeque, que me pareceu tão bizarra como nas vezes anteriores. Foi nela que, naquela distante noite de 11 de setembro de 2001, testemunhei o incidente que mudaria o destino da humanidade em Nova York. Em horário nobre, no jantar, como acompanhamento para a sopa, enquanto o Brasil e os EUA acordavam para o espanto.

No canal O'zbekiston, pontualmente às 21h, começa o noticiário. O cenário é high tech, nada de diferente dos noticiários das grandes TVs brasileiras. O conteúdo, porém, deixa milhas atrás a Globo e a Bandeirantes. Começa com uma "introdução" de uns dois minutos do âncora. Ele fala, sem o apoio de nenhuma imagem, a respeito de uma importantíssima visita de Karimov a Astana. Depois, segue-se a reportagem: dez minutos de minuciosa cobertura.

Primeiro, a chegada de Karimov, com pompa e circunstância, abraçando o "irmão" Nazarbayev. A execução dos hinos nacionais, a conversa cordial filmada sem áudio, os shots protocolares antes da reunião de trabalho, os discursos com todos os pormenores, de um, de outro. Os dois andando pela futurista Astana, uma "coletiva" (com longas, longas, longas declarações de Karimov). A despedida no aeroporto. Disse que tudo isso durou dez minutos? Talvez mais, uma hora. Chapa branca como a neve virgem nas estepes. Para mim, divertidíssimo. A linguagem televisiva é anacrônica demais. Tão diferente de qualquer TV no Brasil (mesmo os canais estatais do governo) ou da Europa Ocidental.

O relato sobre a visita se seguiu a outra longa reportagem ressaltando o excelente desempenho da indústria uzbeque em um país em que a economia enfrenta seríssimas dificuldades, onde um dólar se traduz em uma pilha de notas de mais de dez centímetros, testando a resistência de qualquer carteira. Como há nove anos, a economia paralela (o câmbio negro nas ruas, por exemplo) parece mais robusta do que a economia real. Alguém no governo deve lucrar com isso.

O resto do noticiário, não vi. Embarquei em um sono profundo ao final da reportagem das indústrias. Sonhos com praias e mulheres como na jornada Turkista-Shymkent, não mais. Desta vez, fui flutuando para o azul das cúpulas de Samarkand e Bukhara.

Trem Tashkent-Bukhara, 10/9, 9h

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