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8/9/2012
Os pés levantam a poeira. De novo secura, de novo um calor sufocante às 10h da manhã. Uma luz tão intensa que mal consigo manter os olhos abertos. Ao meu redor, as arquibancadas de um coliseu imaginário. Um quadrilátero de muralhas erodidas pelo tempo, os restos de mais uma cidade perdida. Os restos da história me seguem. Entre os montes de barro seco e farelento, chuto aqui e ali pedaços de porcelana. Aqui e ali, pequenos pedaços de azul e branco, ou verde, ou verde e preto. Um lagarto passa correndo, quase atropela meu pé.
Esta é Sauran. Como Otyrar, outro fantasma da rota da seda. Suas origens estão imersas em mistério, um mistério que ecoa sua atual existência, uma interrogação não muito longe de Turkistan. Certamente era um ponto importante de parada para caravanas na via ancestral entre a China e a Europa antes mesmo do terror de Genghis Khan, marcando um merecido descanso entre o deserto e o Syr Darya. Todavia, diferentemente de Otyrar, Sauran se manteve de pé durante a carnificina mongol e permaneceu tão imponente que acabou sendo escolhida por um líder da Horda Branca - um dos impérios que surgiram da desintegração das conquistas de Genghis - como sua capital no século XIV. Forte e orgulhosa continuou, com minaretes que se viam à distância, durante o período de dominação dos cazaques, a partir do século XV. A queda, a demolição que se vê hoje, veio apenas depois, no século XVIII, com a invasão dos jungars, que também vitimaram definitivamente a então renascida Otyrar. No caso das duas cidades, a invasão dos bárbaros talvez tenha apenas acelerado um processo inexorável, com a mudança do curso do Syr Darya (por aqui tão evidente quanto em Turkistan). Então já condenada pela distância da água, sufocada pelas areias do deserto de Kyzylkum, Sauran nunca mais voltou. Seus derradeiros habitantes, uns teimosos, saíram na aurora do século XIX.
Encontrei as ruínas a cerca de 40 minutos de carro de Turkistan, à beira da estrada e perto da ferrovia entre Turkistan e as distantes Kyzylorda, Aralsk e o resto do oeste. Pensar que esses restos dos muros da cidade que vejo ao meu redor estão aqui há tanto tempo genuinamente me impressiona. Como isso tudo ainda não ruiu, como isso tudo ainda não virou uma grande planície, alimento para as nuvens de poeira? Talvez o próprio abandono do deserto, o cenário inóspito, o calor horroroso, tudo isso tenha ajudado a preservar Sauran, afastando os curiosos.
Não há ninguém por perto. Sequer uma alma viva. Basta entrar, não há que pagar nada.
O som é o do vento soprando, tão fraco que por vezes o silêncio absoluto toma tudo.
No chão, além do barro seco e dos lagartos, matos baixos, daquele tipo que nada no mundo é capaz de arrancar. Na arena entre os restos das muralhas - uma área de uns dois ou três campos de futebol - apenas uma pequena área parece ter sido escavada, como em Otyrar-Tobe. Lá afloraram e foram renascidas câmaras com paredes de tijolos, um caminho com chão de pedras planas, uma rua. Racionalmente, imagino que os soviéticos tenham explorado cada centímetro deste sítio. Mas novamente prefiro me iludir. Estará aqui ainda escondido um grande tesouro dos guerreiros da Horda Branca?
Passo nada menos que duas horas andando por Sauran. Virando pedras - mais e mais pedaços de porcelana colorida. Traçando com lentidão, com os olhos, a topografia do terreno e o desenho das fortificações há tanto tempo desaparecidas. Sem a presença do rio por perto, Sauran parece ser um local extremamente vulnerável a ataques de todos os lados. Imagino os exércitos dos jungars chegando, a toda velocidade, levantando uma nuvem com seus cavalos. Os guerreiros, sedentos de tesouros.
Não muito longe, uns três quilômetros daqui, vejo a ferrovia que vai para o oeste, e um trem passa. Não o ouço, só o vejo correndo, a toda velocidade, para conquistar destinos que nem imagino quais são.
Penso no Brasil. Penso em minha imensa São Paulo. Como é difícil ficar sozinho em um lugar público em São Paulo. Como é difícil se encontrar em São Paulo. Como é difícil ter tempo em São Paulo. Tempo. E espaço.
Ando até um ponto um pouco mais alto da muralha semidestruída. Há uma passagem onde deveria ter ficado um dia uma porta ou portão. Atravesso. Do outro lado, há um pequeno grupo de cavalos. Um pouco distantes, a uns cem metros, quem sabe. Lá embaixo. Estou em uma parte alta ainda. Jogo minha mochila para o lado. Sento no barro seco, entre um arbusto e outro. Olho os sete cavalos. Completamente alheios a mim. Testemunhas de uma era bem diferente.
O mistério das ruínas da Ásia Central quiçá aqui surja com o máximo de sua força. Muito mais do que em Otyrar. Porque estas muralhas de Sauran tornam tudo muito vivo - cavalos, súditos, guerreiros, artesãos; um cenário de velho oeste medieval centro-asiático à sombra de torres de argila. Uma versão cazaque das torres do Monument Valley nos filmes de John Ford.
O mistério de uma capital que sobreviveu ao teste do tempo e agora jaz etérea, quase irreal, no meio do nada, deixando a imaginação flutuar.
* * *
O povo aqui adora uma festa e, se há uma festa favorita, é o casamento. Já vi mais noivas desde que cheguei à Ásia Central nesta viagem do que em todo o resto da minha vida. Nos fins de semana, noivas e noivos, acompanhados por sua entourage de fotógrafo, cinegrafista e amigos, vão aos parques e monumentos mais bonitos vestindo as roupas formais da boda - as mesmas dos casamentos no Ocidente, smoking ou terno para o homem, vestido branco para a mulher. Aí, eles tiram fotos. Muitas fotos. No início achei graça e compartilhei a felicidade dos noivos cada vez que encontrava um casal diferente. Mas são tantos que agora eles já estão me incomodando - parece que toda vez que quero tirar uma foto de algo interessante, tem um casal de pombinhos que entra na frente da paisagem.
Depois, é claro, eles se casam e tem o festão. Na frente do meu hotel em Turkistan contei dois salões de festa, ou toikhanas, como são chamados por aqui. As festas de casamento são as mais chamativas, mas as casas recebem eventos de todo tipo. Às vezes até mais de um ao mesmo tempo. Ontem foi difícil pegar no sono: uma pequena multidão comemorava a circuncisão de dois meninos em uma das toikhanas (veja no vídeo abaixo).
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A festa transbordava para a frente do salão, tomando parte da rua. Em meio à alegria, uma música incomum, uma melodia que não dá para assoviar. Dois homens sopravam com toda a força dos pulmões dois clarins - seria melhor descrever como vuvuzelas - gigantes. Feitas de metal, as peças soltavam um som horroroso, assustador. Ao lado, no meio da multidão, outro músico tocava uma espécie de oboé, cujo som namorava com o melódico, mas nunca seguindo uma lógica, nada previsível. Parecia que o sujeito estava executando o que lhe vinha à cabeça, não uma música. Como que em transe jazzístico.
No fundo, uma gravação, saindo dos alto-falantes, trazia a base rítmica, com tambores, e era isso, desconfio, que fazia as pessoas dançarem. Todos estavam sorrindo, todos estavam adorando a barulheira. Todos estavam dançando - pais abraçando suas crianças, mulheres sacolejando, algumas delas com vestidos longos e chiques. Novamente, se vestiam exatamente como as pessoas no Brasil se vestem nessas ocasiões, a maioria, bem formais, com alguns destoando, mas informais. Mas a roupa é toda ocidental, jeans, camisas, nada diferente do que conhecemos. Só a música é bem diferente - e estranhamente contagiante.
Mas nem todos comparecem assim a essas ocasiões. Depende da família, do grau de religiosidade e tradicionalismo delas, da riqueza daqueles que estão festejando, da idade dos presentes. Existem festas e festas.
De manhã, passo em frente a outro salão. Um casamento tinha acabado de acontecer. Dessa vez a cultura centro-asiática (ou, na verdade, a multicultura centro-asiática) estava muito bem representada nas vestimentas. Entre os convidados que conversavam alegremente ao redor dos noivos, vi uns velhinhos com vistosos chapéus ak kalpaks quirguizes abraçando fraternalmente outros com a tubeteika cônica que encontrei adornando cabeças no Cazaquistão e outros com o chapéu dope uzbeque. As mulheres todas com seus vestidos longos e coloridíssimos, de seda e algodão com detalhes brilhantes, e seus véus cobrindo o cabelo. Dentes de ouro por toda a parte, sorrisos maravilhosos. O Sol forte ressaltando as cores e o reluzir das roupas, dos dentes, dos olhos.
Foi uma boa despedida, a música estranha de ontem, o colorido brilhante de hoje. Adeus, Turkistan. Despeço-me do Cazaquistão jantando em um restaurante qualquer na cidade do nobre mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi. Novamente acompanhado de uma caneca de Shimkentskoe. Tentando decifrar um videoclipe em russo que vejo em uma TV de plasma, um pop que me parece uma cópia sem vergonha de alguma música que já ouvi bilhões de vezes em inglês. O restaurante, coincidência, parece decorado para um casamento - até as cadeiras estão revestidas com panos brancos. Um brinde às festas, à alegria das festas, às pessoas se abraçando, rindo e bebendo para celebrar a vida.
E que eu não mais seja atrapalhado por casais querendo tirar fotos nupciais nos lugares turísticos. Saúde!
Tashkent, 9/9, 22h
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